sexta-feira, 15 de maio de 2020

Toma este breve, Riobaldo

Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. E ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso! quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo ― me escutando com devoção assim ― é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto. Como eu estava, com o senhor, no meio dos hermógenes.
Destaque feito! Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós. E tivemos notícia! a légua dali, eles estavam chegando, no meio do dia, patrulhão de cavaleiros. Légua, não era verdade ― mas, obra de seis léguas, o sim. E eram só uns sessenta, por aí. Todo o tempo eu vinha sabendo que nosso fim era esse, mas mesmo assim foi feito surpresa. Eu não podia imaginar que ia entrar em fogo contra os bebelos. De certo modo, eu prezava Zé Bebelo como amigo. Respeitava a finura dele ― Zé Bebelo: sempre entendidamente. E uma coisa me esmoreceu a tôrto. Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem. Mudamos de acampo, para perto, para perto. ― E agora! E hoje!... O Hermógenes reunia o pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimo maior de munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me cortou de fazer mais perguntas. As armas. Diadorim ia, para aquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor. Que era que, aquele tempo, no arranchamento do Hermógenes, minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre em pedra, sem pêpa de barro nem pó de turvação. Da voz de homens e do tinir de armas em má véspera, não se podia deixar de receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, e muita coisinha se empequenava. ― Zé Bebelo é arisco de aviso, Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso, deve de ter outra tropa de guerra, prontos para virem dar retaguarda. Eu sei bem ― essa a norma dele... Carece de prevenir o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos... ― eu não retive, e disse. ― Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa... ― Diadorim me respondeu. E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não foi?
Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudo estava sendo determinado decidido, até o que a gente tinha de fazer depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal em punhados de quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo, devia de se reunir em lugar certo comum. Daquela hora em diante, íamos ter de brigar em pequenas quantidades. Pelas caras dos homens, eu via que estavam satisfeitos, parecia muito e pouco. Com regozijo, um golinho se bebeu. ― Toma este breve, Riobaldo. Foi minha mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu carrego dois... Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle de três canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca tinha dado fé daquele Feijó? ― A vamos. Hoj e se faz o que não se faz... ― um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus. Quem quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos, acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando, limpavam a boca com as duas mãos. ― Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo! ― explicavam alguns, que ainda careciam de ir por suas necessidades. Restantes risadas davam. Ao que faltava nem meia-hora para o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da jurití como um chamado acabado, junto com lobo guará já dando gritos de penitência. ― Presta uma demão, aqui... Ajudei. Era um montesclarense ― acho que o cujo nome esqueci ― que queria passar tiras de pano, por sola das alpercatas e peito dos pés, reforçando. Terminou, e fez os passos de dansa, maneiro nas juntas, assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? ― Riobaldo? ― Diadorim me disse ― arruma jeito de mudar de lugar, na hora, sempre que puder. E põe cautela! homem rasteja por entre as môitas, e vem pular nas costas da gente, relampeando faca. Diadorim sorria sério. Um outro me esbarrou, quando passava. Era o Delfim, violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar? Eu apertei a mão de Diadorim, e queria sair, andar, gastar.
Conto que chegou o Hermógenes. A voz do Hermógenes, dando ordens de guerra ― já disse ao senhor? ― ficava clara e correta; um podia dizer! que até ficava. Ao menos ele sabia aonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do traço. Que todos cumprissem, que todos soubessem! A partida dos zebebelos estava com posição no Alto dos Angicos ― tabuleirinho de chã.
Podiam ter espalhado sentinelas muito longe, até na beira do córrego Dinho, ou para lá, em volta, nas contravertentes. Mas, disso, logo se ia saber, porqual os espias nossos rondavam. O que se tinha era de chegar, já com o escuro, e engatinhar às ladeiras, no durado da noite, na arte vagarosa. Só íamos abrir fogo, de surpresa, no clarearzinho da madrugada. Cada um de seu ponto melhor, tudo tinha de valer em sonsagato e finice, até se carecia de respirar só por metade. Se algum topasse com inimigos, por má-sorte, antes, ele que escorresse como pudesse, ou dependesse na faca: atirar com arma é que não podendo. Sendo que podendo, mas só depois do Hermógenes ― que era quem era o dono: ― o primeiro tiro ele dava. Como cada qual tinha de atirar com sangue-frio, de matar exato. Porque nosso prazo seria acabar com todos, com brevidade; mais antes que outros deles pudessem vir, para um reforço. Mesmo assim, Titão Passos ia com uns trinta companheiros reguardar o caminho de vinda, à emboscada, num tombador de pedra. Já vai que o Hermógenes explicava, devagar, e tudo repetia, com paciência: o dever absoluto era que até o mais tonto aprendesse, e estava definido o rumo de tarefa por onde cada um devia de se pôr no chão e começar a engatinhar, virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de tudo já na primeira razão, e, de cada vez que ele repetia, eu reproduzia ― em minha ideia os acontecimentos se passando, eu já estava lá, e rastejava, me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil nas armas.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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