sexta-feira, 15 de maio de 2020

Pensar sobre pensar


O cérebro humano é uma coisa tão complexa que nem o cérebro humano é complexo o bastante para entendê-lo. Era só o que eu queria contribuir para o desânimo geral destes dias, obrigado. Não, o certo é que nunca entenderemos o nosso cérebro como nunca entenderemos as últimas razões do Universo — ou, pensando bem, as primeiras. Os limites da especulação sobre o fim e a origem da matéria e os limites do pensamento sobre o pensamento são os limites do conhecimento humano. O que não impede alguns malucos de continuarem a tentar expandi-los.
No campo do conhecimento do cérebro, ou do pensamento sobre o pensamento, está havendo uma guerra de teorias parecida com uma questão religiosa de alguns séculos atrás. Que, pelo menos para os religiosos, continua. Discutia-se então a divisão entre corpo e mente. Ou alma, ou que outro nome tivesse uma essência humana separada da biológica. Na neurociência, chegou-se, não faz muito, a um consenso mecanicista do cérebro como uma planta eletroquímica e do seu funcionamento como os processos desta incrível usina, complicada além da imaginação, mas não além da biologia. O que desgostou os psicólogos mas parecia incontestável. Agora tem gente dizendo que mente e cérebro são duas coisas completamente diferentes. Usando uma analogia com que Santo Agostinho não contava, no seu tempo, dizem que o cérebro é um computador e a mente é um programa. Hardware e software, em português claro. Ou seja, dois cérebros exatamente iguais podem ter mentes diferentes. Há fantasmas, afinal, dentro da usina. A natureza dessa alma reabilitada, claro, continua um mistério. Os limites do nosso autoconhecimento só chegaram um pouco mais para lá.
Sempre me pareceu enlouquecedor que os sonhos, justamente a oportunidade que nosso cérebro tem de falar conosco a sós, sejam em código, em linguagem simbólica, geralmente ininteligível. Não estamos nem acordados para poder dizer “fala sério!”. A explicação seria que sonhos são o cérebro brincando de mente, o hardware sem um software para lhe dar coerência e objetivo exercitando seus circuitos, apenas mantendo-se aceso. De vez em quando surge um enredo, uma sequência, uma sugestão de sentido ou mensagem, e são destes sonhos que a gente se lembra. Mas não querem dizer nada. São como os rabiscos de um macaco, que de repente, sem querer, desenha uma cara. Se alguém um dia nos explicar o cérebro, não será o nosso cérebro.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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