quinta-feira, 14 de maio de 2020

O relógio de sol e o de nuvens

Imagem: Kfleen/fotolia
São tão sofisticados os relógios de pulso anunciados pela televisão e pelas revistas, que o pintor Oscar Tecídio resolveu dar-se ao gosto de construir relógios de sol. E mais: a ensinar como se constroem.
Ter relógio de sol em casa é ter máquina antiga, que nos aproxima dos chineses e egípcios e nos confere dignidade intemporal.
Sentimos fisicamente a presença do tempo pelo fugir da sombra, e assimilamos o magno sentido da sombra, que é um estado de criação anterior à luz, e portanto à vida. Previvemos a aventura humana ao sentir que tudo se resume em jogo de luz e sombra, sobre a pedra indiferente, que, mesmo dominada, nos domina.
Sonhei com o relógio de sol e ele me conduziu até o limite em que, não havendo tempo, não havia relógio, e o sol era uma utilidade dispensável. Por que fomos utilizá-lo, meu Deus. Nasceram daí muitas civilizações e dores de cabeça, que o relógio de sol registra sem tomar partido. Porque o relógio de sol é belo em si, e dispensa utilização — ensinou-me a ninfa que se banhava na Cascatinha, antes do despertar dos guardas, e me confiou que fazia isso há não sei quantos milênios. Por faceirice, usava relógio de sol, feito de nuvem, e com ele mirava o céu mais longínquo, todo feito de olhos em forma de flores, ou de flores em forma de olhos: era a mesma coisa.
A partir de então, deixei de usar relógio de pulso — para quê? se o fundamento está do outro lado, que a ninfa me fazia entrever. Oscar Tecídio, me faz depressa esse relógio de nuvens.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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