quinta-feira, 14 de maio de 2020

O mulá Faizullah

Uma das lembranças mais remotas de Mariam era o chiado das rodas de um carrinho de mão sacolejando pelas pedras do chão. Uma vez por mês, lá vinha ele, carregado de arroz, farinha, chá, açúcar, óleo, sabão, pasta de dentes. Dois de seus meio-irmãos o traziam; geralmente, Muhsin e Ramin, às vezes Ramin e Farhad. Na estradinha de terra, passando por pedras e seixos, contornando buracos e arbustos, os meninos se revezavam empurrando o carrinho ate chegarem ao riacho. Ali, paravam e tinham que atravessar, levando os pacotes nos braços. Depois, era a vez do carrinho que, ao chegar do outro lado, voltava a ser carregado. Tinham, então, mais uns duzentos metros pela frente, desta feita empurrando o veículo em meio ao mato alto, denso, e por entre as moitas cerradas. Sapos pulavam a sua frente. Os dois irmãos tinham que se abanar com as mãos, para afastar os mosquitos do rosto suado.
Ele tem empregados — observou Mariam. — Podia mandar um deles...
Para ele, isso e uma espécie de penitência — retrucou Nana.
O barulho do carrinho levava mãe e filha lá para fora. Mariam nunca se esqueceria do jeito que Nana ficava no dia em que os mantimentos chegavam: aquela mulher alta e magra, descalça, apoiada no umbral da porta, com aquele olho meio fechado, parecendo apenas uma fenda, e os braços cruzados, numa pose desafiadora e debochada. Já que ficava com a cabeça descoberta, o sol batia em seu cabelo crespo, cortado curtinho e despenteado. Usava uma bata cinza mal-ajambrada e abotoada até o pescoço.
E tinha os bolsos cheios de pedras grandes como nozes.
Os rapazes ficavam sentados no chão, junto do riacho, esperando que mãe e filha levassem os mantimentos para dentro da kolba. Sabiam que era mais prudente manter uma distância de uns trinta metros, embora a pontaria de Nana fosse bem ruim, e a maioria das pedras caísse longe do alvo visado.
Enquanto ia levando as coisas para casa, a mulher ficava gritando, chamando os meninos de uns nomes que Mariam não conhecia. Amaldiçoava suas mães, fazia caretas terríveis para os dois. Nenhum deles jamais revidou aqueles insultos.
Mariam tinha pena dos garotos. “Deviam ficar com as pernas e os braços tão cansados empurrando aquela carga pesada...”, pensava ela. Adoraria poder lhes oferecer um copo de água. Mas não dizia nada, e, se os dois acenavam na hora de ir embora, nem respondia. Uma vez, para agradar Nana, chegou até a gritar com Muhsin, dizendo que sua boca parecia o traseiro de um lagarto. Depois, ficou com vergonha, culpadíssima, e teve medo que ele contasse tudo para Jalil. Já Nana riu tanto, mostrando todos aqueles dentes da frente estragados, que Mariam achou que ela poderia ter um dos seus ataques. Depois que parou de rir, olhou para a menina e disse:
Você é uma boa filha.
Quando o carrinho estava vazio, os meninos o apanhavam e iam embora. Mariam ficava parada ali, esperando eles desaparecerem em meio ao mato alto e florido.
Vamos entrar?
Claro, Nana.
Eles estão rindo de você. Estão, sim. Dá para ouvir daqui.
Já estou indo.
Não acredita, não é?
Pronto, Nana.
Amo você, sabe, Mariam jo?
Toda manhã, as duas acordavam com o balido dos carneiros, ao longe, e o som estridente da flauta que os pastores de Gul Daman tocavam ao levar seus rebanhos para pastar nas colinas. Mariam e Nana ordenhavam as cabras, davam comida às galinhas e recolhiam os ovos. Faziam pão juntas. A menina aprendeu com Nana a sovar a massa, acender o tandoor e espalhar a massa lá dentro. Com ela também aprendeu a costurar e a fazer arroz com vários acompanhamentos: shalqam cozido com nabos, sabzi de espinafre, couve-flor com gengibre.
Nana não escondia de ninguém o quanto lhe desagradava a ideia de receber visitas — na verdade, não gostava de gente em geral —, mas abria uma exceção para uns poucos escolhidos. Havia Habib Khan, o arbab da aldeia, o líder da comunidade de Gul Daman, um sujeito barbudo, com uma cabeça miúda e uma barriga proeminente, que vinha vê-las mais ou menos uma vez por mês, sempre acompanhado de um criado que trazia uma galinha, uma tigela de arroz kicbiri ou um cesto com ovos tingidos para Manam.
Havia uma velha rechonchuda, que Nana chamava de Bibi jo, cujo falecido mando também tinha sido entalhador e amigo de seu pai. Bibi jo andava sempre acompanhada por uma de suas noras e um ou dois de seus netos. La vinha ela ate a clareira, mancando e resmungando, e, invariavelmente, fazia uma verdadeira encenação, esfregando os quadris e gemendo, ao se sentar na cadeira que Nana lhe oferecia. Bibi jo também trazia alguma coisa para Mariam, como uma caixinha de balas dishlemeh ou uma cesta de marmelos. Para Nana reservava, antes de mais nada, suas queixas sobre problemas de saúde, e, depois, mexericos envolvendo gente de Herat e Gul Daman, histórias que ela narrava em detalhe e com o maior prazer, enquanto sua nora ficava às suas costas, só ouvindo, com ar de incredulidade.
Mas a visita preferida de Mariam, além de Jalil, é claro, era o mulá Faizullah, o mais velho dos akhund, os guardiães do Corão na aldeia. Uma ou duas vezes por semana, ele vinha de Gul Daman para ensinar a Mariam as cinco preces namaz diárias e iniciar a menina na recitação do Corão, exatamente como havia feito quando Nana era criança. Foi o mulá Faizullah quem ensinou Mariam a ler. Ficava parado ali, atrás dela, olhando com toda paciência por cima de seus ombros enquanto os lábios da menina iam articulando as palavras, sem emitir som algum, fazendo tanta força com o dedo que a unha chegava a ficar esbranquiçada, como se fosse possível espremer assim o sentido de cada um daqueles símbolos. Foi o mulá Faizullah quem pegou a mão de Mariam, guiando o lápis para traçar o contorno de cada alef, a curva de cada beh, os três pontinhos de cada seh.
Era um homem magro e encurvado, com um sorriso desdentado e uma barba branca que lhe batia no umbigo. Em geral, vinha sozinho até a kolba; às vezes, porém, trazia consigo o filho Hamza, um menino de cabelo avermelhado, pouco mais velho que Mariam. Quando o mulá chegava, Mariam beijava a sua mão — era como beijar um feixe de gravetos recoberto por uma fina camada de pele — e ele lhe dava um beijo na testa. Só então entravam, para começar a lição do dia. Mais tarde, sentavam-se ambos do lado de fora da kolba, comendo pinhões, tomando chá verde e observando os pássaros bulbuls que voavam apressados de uma árvore a outra. De vez em quando, iam passear em direção às montanhas, margeando o riacho, andando por entre os tufos de amieiro e pisando nas folhas de bronze caídas pelo chão. O mulá Faizullah ia desfiando as contas do rosário tasbeh e, com aquela voz trêmula, contava à menina histórias de coisas que tinha visto na juventude, como a cobra de duas cabeças que encontrou no Irã, na ponte dos Trinta e Três Arcos, em Isfahan, ou a melancia que cortou diante da Mesquita Azul, em Mazar, e cujas sementes escreviam as palavras Allak, de um lado, e Akbar, do outro, formando a expressão Allah-u-Akbar, “Deus é grande”.
O mulá admitiu para Mariam que, por vezes, não compreendia o sentido das palavras do Corão, mas gostava dos sons encantatórios das palavras árabes que pareciam rolar em sua língua. Disse ainda que elas lhe traziam conforto, apaziguavam o seu coração.
Elas vão fazer isso por você também, Mariam jo — observou ele. — Sempre pode evocá-las em caso de necessidade, e elas não vão lhe faltar. As palavras de Deus nunca vão traí-la, minha menina.
Khaled Hosseoni, in A Cidade do Sol

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