sábado, 16 de maio de 2020

O reino do ódio

Sob a tutela do deus louco, Caninos Brancos tornou-se um diabo. Era mantido acorrentado num cercado atrás do forte, e ali Beleza Smith o provocava, irritava e enlouquecia com pequenos tormentos. O homem logo descobriu a sua suscetibilidade ao riso e fazia questão, depois de lhe pregar uma peça dolorosa, de rir de Caninos Brancos. Esse riso era alto e desdenhoso, e ao mesmo tempo o deus apontava o dedo zombador para Caninos Brancos. Nessas ocasiões a razão sumia de Caninos Brancos, e nos seus acessos de fúria ficava até mais louco que Beleza Smith.
Antes Caninos Brancos fora apenas o inimigo da sua espécie, um inimigo feroz. Mas tornou-se então o inimigo de todas as coisas, e mais feroz do que nunca. A tal ponto era atormentado que odiava cegamente e sem a mais tênue centelha de razão. Odiava a corrente que o prendia, os homens que o espiavam pelas ripas do cercado, os cachorros que acompanhavam os homens e que rosnavam maldosamente contra a sua impotência. Odiava a própria madeira do cercado que o confinava. E em primeiro lugar, por último, e acima de tudo, odiava Beleza Smith.
Mas Beleza Smith tinha um propósito em tudo o que fazia com Caninos Brancos. Certo dia, vários homens se reuniram ao redor do cercado. Beleza Smith entrou, um pedaço de pau na mão, e tirou a corrente do pescoço de Caninos Brancos. Quando o dono já saíra, Caninos Brancos se soltou e correu ao redor do cercado, tentando pegar os homens no lado de fora. Era magnificamente terrível. Um bom metro e meio de comprimento e setenta e cinco centímetros de altura até o ombro, ele pesava bem mais do que um lobo de tamanho correspondente. Da mãe tinha herdado as proporções mais pesadas do cachorro, de modo que pesava, sem gordura e nem uma grama a mais de carne, mais de quarenta quilos. Era todo músculo, ossos e nervos – carne de luta nas melhores condições.
A porta do cercado estava sendo novamente aberta. Caninos Brancos fez uma pausa. Algo inusitado estava acontecendo. Esperou. A porta foi mais escancarada. Então um imenso cachorro foi jogado para dentro do cercado, e a porta fechou-se batendo atrás dele. Caninos Brancos nunca vira um cachorro assim (era um mastim); mas o tamanho e o aspecto feroz do intruso não o detiveram. Ali estava algo, que não era madeira nem ferro, em que podia exercer o seu ódio. Pulou sobre o cão com um lampejo das presas que rasgaram o lado do pescoço do mastim. Esse sacudiu a cabeça, rosnou áspero e mergulhou sobre Caninos Brancos. Mas Caninos Brancos estava aqui, ali e em toda parte, sempre esquivando-se e escapando, e sempre pulando sobre o cão, mordendo com as presas e pulando para longe a tempo de escapar da punição.
Os homens no lado de fora gritavam e aplaudiam, enquanto Beleza Smith, num êxtase de prazer, exultava com o dilaceramento e o estrago executados por Caninos Brancos. Não havia nenhuma esperança para o mastim desde o início. Era demasiado pesado e lento. No final, enquanto Beleza Smith batia em Caninos Brancos com um pedaço de pau, o mastim foi arrastado para fora do cercado pelo dono. Então pagaram-se as apostas, e as moedas tilintaram na mão de Beleza Smith.
Caninos Brancos passou a esperar ansiosamente a reunião de homens ao redor do seu cercado. Significava uma luta, e essa era a única maneira que agora lhe era concedida de expressar a vida que nele havia. Atormentado, incitado a odiar, era mantido preso para que não houvesse outro meio de satisfazer esse ódio a não ser nas ocasiões em que o seu dono julgava apropriado armar uma briga entre ele e outro cachorro. Beleza Smith tinha estimado bem os poderes de Caninos Brancos, pois ele era invariavelmente o vencedor. Certo dia, três cachorros foram lançados contra ele, um depois do outro. Noutro dia, um lobo adulto, recém-apanhado na Floresta, foi empurrado por uma porta do cercado. E ainda noutro dia, dois cachorros foram jogados contra Caninos Brancos ao mesmo tempo. Essa foi a sua briga mais séria e, apesar de no final ter matado os dois cães, ele próprio quase morreu ao realizar a façanha.
No outono do ano, quando as primeiras neves caíam e o gelo ainda mole corria pelo rio, Beleza Smith comprou passagens para ele e Caninos Brancos num vapor que devia subir o Yukon até Dawson. Caninos Brancos já tinha conseguido uma reputação na região. Como “O Lobo Lutador” era conhecido por toda parte, e a jaula em que era mantido no convés do vapor ficava geralmente rodeada por homens curiosos. Ele se enfurecia e rosnava para todos, ou deitava-se e os estudava com um ódio frio. Por que não os odiaria? Nunca se perguntara. Conhecia apenas o ódio e deixava-se arrebatar por essa paixão. A vida tornara-se um inferno para ele. Não fora feito para a prisão em lugares pequenos que os animais selvagens suportam nas mãos dos homens. Ainda assim, era precisamente esse o tratamento que recebia. Os homens o fitavam, enfiavam varas entre as barras para fazê-lo rosnar e depois riam dele.
Eles eram o seu ambiente, esses homens, e eles estavam moldando a sua argila em algo mais feroz do que fora projetado pela natureza. Ainda assim, a natureza lhe dera plasticidade. Quando muitos outros animais teriam morrido ou perdido o ânimo, ele se ajustava e vivia, sem prejuízo para o ânimo. Talvez Beleza Smith, o arquidiabo e torturador, fosse capaz de quebrar o ânimo de Caninos Brancos, mas até então não havia sinais de que estivesse conseguindo.
Se Beleza Smith tinha dentro dele um diabo, Caninos Brancos tinha outro, e os dois se enfureciam um contra o outro sem cessar. Nos primeiros dias, Caninos Brancos tivera a sabedoria de se encolher e submeter diante de um homem com um pedaço de pau na mão, mas essa sabedoria agora o abandonava. A mera visão de Beleza Smith bastava para lançá-lo em arrebatamentos de fúria. E, quando entravam em contato e ele apanhava com o pedaço de pau, continuava a grunhir e rosnar e a mostrar as presas. Nunca se podia extrair dele o último rosnado. Não importava quão terrível tivesse sido a surra, ele sempre tinha mais um rosnado; e, quando Beleza Smith desistia e retirava-se, o rosnado desafiador seguia atrás, ou Caninos Brancos pulava contra as barras da jaula berrando o seu ódio.
Quando o vapor chegou a Dawson, Caninos Brancos desembarcou. Mas ainda levava uma vida pública, preso na jaula, rodeado por homens curiosos. Era exibido como “O Lobo Lutador”, e os homens pagavam cinquenta centavos de pó de ouro para vê-lo. Não tinha descanso. Se deitava para dormir, era atiçado por uma vara pontuda – para que o público visse o espetáculo pelo qual pagara. A fim de tornar a exibição interessante, era mantido em estado de fúria na maior parte do tempo. Mas o pior de tudo era a atmosfera em que vivia. Era considerado o mais temível dos animais selvagens, e isso lhe era incutido através das barras da jaula. Cada palavra, cada ação cautelosa, da parte dos homens, imprimia nele a sua própria e terrível ferocidade. Era muito combustível acrescentado à chama de sua fúria. O resultado só podia ser um, a sua ferocidade se alimentava de si mesma e aumentava. Era outro exemplo da plasticidade da sua argila, da sua capacidade de ser moldado pela pressão do ambiente.
Além de ser exibido, ele era um animal lutador profissional. Em intervalos irregulares, sempre que se podia arranjar uma luta, ele era tirado da jaula e levado para a mata a alguns quilômetros da cidade. Em geral isso ocorria à noite, para evitar interferência da polícia montada do território. Depois de algumas horas de espera, quando a luz do dia já aparecera, chegavam o público e o cachorro com que devia lutar. Dessa maneira, ele veio a lutar com todos os tamanhos e raças de cachorros. Era uma região selvagem, os homens eram selvagens, e as lutas geralmente terminavam em morte.
Como Caninos Brancos continuava a lutar, é óbvio que eram os outros cachorros que morriam. Ele jamais conheceu a derrota. Seu antigo treinamento, quando lutava com Lip-lip e todo o bando de filhotes, lhe valia nessas horas. Havia a tenacidade com que aderia à terra. Nenhum cachorro conseguia derrubá-lo. Esse era o truque favorito das raças dos lobos – precipitar-se sobre ele, quer com um ataque direto, quer com um guinada inesperada, na esperança de golpeá-lo no ombro e derrubá-lo. Os cachorros Mackenzie, os cachorros esquimó e labrador, os huskies e os malemutes – todos tentavam lhe aplicar o truque, e todos fracassavam. Nunca se soube que tivesse sido derrubado. Os homens contavam essa história uns para os outros, e olhavam para ver se acontecia, mas Caninos Brancos sempre os desapontava.
Depois havia a sua rapidez de raio. Isso lhe dava uma tremenda vantagem sobre os antagonistas. Fosse qual fosse a sua experiência de luta, eles jamais tinham enfrentado um cachorro que se movia tão rápido como Caninos Brancos. O que também devia ser levado em conta era o caráter imediato do seu ataque. O cachorro comum estava acostumado às preliminares de rosnar, eriçar o pelo e grunhir, e o cachorro comum era derrubado e derrotado antes que tivesse começado a lutar ou antes que tivesse se refeito da surpresa. Tão frequentemente isso acontecia que tornou-se costume segurar Caninos Brancos até que o outro cachorro passasse pelas preliminares, estivesse em forma e preparado, e mesmo até que fizesse o primeiro ataque.
Mas a maior de todas as vantagens a favor de Caninos Brancos era a sua experiência. Ele sabia mais sobre lutas do que qualquer um dos cachorros que o enfrentavam. Tinha travado mais lutas, sabia como fazer face a mais truques e métodos, tinha ele próprio mais truques, e o seu método nem precisava ser melhorado.
Com o passar do tempo, tinha cada vez menos lutas. Os homens já não alimentavam a esperança de encontrar um cachorro que fosse páreo para Caninos Brancos, e Beleza Smith foi compelido a lançar lobos contra ele. Os índios os agarravam em armadilhas para esse fim, e uma luta entre Caninos Brancos e um lobo sempre atraía uma multidão. Certa vez pegaram um lince fêmea adulto, e nessa ocasião Caninos Brancos lutou pela sua vida. A rapidez do lince estava à altura da sua; a ferocidade do lince igualava a sua; enquanto ele brigava apenas com as presas, ela também lutava com as patas de garras afiadas.
Mas depois do lince, cessaram as lutas para Caninos Brancos. Não havia mais animais com que lutar – pelo menos, não havia nenhum considerado digno de lutar com ele. Assim continuou a ser exibido até a primavera, quando um certo Tim Keenan, um carteador negociante, chegou à região. Com ele veio o primeiro buldogue a entrar no Klondike. Que esse cachorro e Caninos Brancos viessem a se enfrentar, era inevitável, e por uma semana a luta esperada foi a principal fonte das conversas em certas partes da cidade.
Jack London, in Caninos Brancos

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