terça-feira, 19 de maio de 2020

O mulá sabia ouvir


Além de contar histórias, o mulá também sabia ouvi-las. Quando Mariam falava, sua atenção nunca se desviava. Ele ficava assentindo ligeiramente com a cabeça, e sorria com um ar de gratidão, como se estivesse sendo digno de um privilégio dos mais cobiçados. Era fácil lhe contar coisas que nunca teria coragem de dizer a Nana.
Um dia, quando passeavam, Mariam lhe disse que adoraria poder ir para um colégio.
Um colégio de verdade, akhund sahib, daqueles que têm salas de aula. Como fazem os outros filhos de meu pai.
O mulá parou.
Uma semana antes, Bibi jo tinha contado que Saideh e Nahid, filhas de Jalil, iam para a Escola Mehri, um colégio para meninas em Herat.
Desde então, começaram a passar pela cabeça de Mariam imagens de salas de aula e professores, cadernos com páginas pautadas, colunas de números e canetas que traçavam linhas fortes e escuras. Podia ver a si mesma numa dessas salas, junto com outras garotas da sua idade. Morria de vontade de pôr uma régua numa página em branco e traçar, ali, aquelas linhas que pareciam tão importantes.
É isso que você quer? — indagou o mulá Faizullah, fitando-a com aqueles seus olhos brandos e úmidos, as mãos cruzadas nas costas encurvadas e a sombra do turbante se projetando sobre um canteiro cheinho de botões-de-ouro.
E.
E quer que eu peça permissão para sua mãe?
Mariam sorriu. Além de Jalil, achava que não havia ninguém no mundo capaz de entendê-la tão bem quanto o seu velho professor.
Então, o que posso fazer? Deus, em sua sabedoria, deu a cada um de nos algumas fraquezas, e, entre as tantas que possuo, está a incapacidade de recusar algo a você, Mariam jo — disse ele, dando-lhe umas palmadinhas no rosto com os dedos deformados pela artrite.
Mais tarde, porem, quando o mulá tocou no assunto com Nana, a mulher largou a faca que estava usando para cortar cebolas e perguntou:
Para que?
Se a menina quer aprender, minha cara, deixe que faça isso. Deixe que ela tenha instrução.
Aprender? Aprender o quê, mulá sahib? — indagou Nana rispidamente. — O que há para ser aprendido? — E voltou os olhos para a filha.
Mariam ficou fitando as próprias mãos.
Que sentido faz dar instrução a uma garota como você? — prosseguiu a mulher. — E como lustrar uma escarradeira. E, nessas escolas, você não vai aprender nada que preste. Só há uma coisa na vida que mulheres como você e eu precisamos aprender, e ninguém ensina isso nas escolas. Olhe para mim.
Você não devia falar assim com ela, minha filha — observou o mulá Faizullah.
Olhe para mim — insistiu Nana.
Mariam obedeceu.
Só uma coisa: tahamul. A capacidade de suportar.
Suportar o quê, Nana? — indagou a menina.
Não se aflija com isso — retrucou Nana. — Não vão faltar exemplos.
E prosseguiu contando que as esposas de Jalil diziam que ela era feia, uma mísera filha de entalhador. Mandavam que ficasse lavando roupa do lado de fora, no frio, até o seu rosto ficar entorpecido e os seus dedos, queimados.
E isso que a vida reserva para nós, Mariam — acrescentou. — Para as mulheres como nós. E suportamos. Temos de suportar. Está me entendendo? Além do mais, vão rir de você na escola. Vão, sim. Vão chamá-la de harami. Vão dizer coisas horríveis a seu respeito. Não vou permitir isso.
Mariam fez que sim com a cabeça.
E não se fala mais nessa história de escola. Você é tudo o que tenho. Não quero perdê-la para essa gente. Olhe para mim. Não se fala mais nisso.
Ora, vamos, seja sensata — principiou o mulá. — Se a menina quer…
E o senhor, akhund sahib, com o devido respeito, não tem nada que ficar incentivando essas ideias bobas. Se quer realmente o bem de Mariam, deve lhe fazer ver que o lugar dela é aqui, nesta casa, com sua mãe. Não há nada que possa lhe interessar lá fora. Nada além de rejeição e sofrimento. Sei muito bem disso, akhund sahib. E como…
Khaled Hosseini, in A Cidade do Sol

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