O
centenário do nascimento de Theodor Adorno [nasceu em 11/9/1903]
está sendo devidamente comemorado este ano. Adorno foi um dos tantos
intelectuais e cientistas europeus que fugiram dos nazistas para a
América, no mais importante movimento migratório da história
depois do provocado por outro flagelo, o do escravismo. Adorno foi
para os Estados Unidos em 1938. Seu colega no Instituto de Pesquisa
Social de Frankfurt, Walter Benjamin, demorou a segui-lo. Ficou na
França, foi internado pelos alemães, finalmente conseguiu um visto
dos americanos e rumou para a fronteira com a Espanha. Sua passagem
pela fronteira seria tranquila, mas, por uma pequena questão
burocrática, foi adiada para o dia seguinte e o grupo de Benjamin
teve que dormir na pequena cidade de Port Bou, ao pé dos Pirineus.
Naquela noite, 26 de setembro de 1940, Benjamin se matou com uma
overdose de morfina.
Nunca
ficou claro por que Benjamin demorou para fugir e por que se
suicidou. Ele tinha escrito que viera ao mundo “sob o signo de
Saturno, o astro com a rotação mais lenta, o planeta dos desvios e
dos atrasos”. Susan Sontag, num ensaio sobre Benjamin (intitulado
“Sob o signo de Saturno”), disse que ele era dominado pela
melancolia, e que tinha o pendor da personalidade saturnina pela
solidão. Mas a sua era uma solitude ativa e desafiadora, que tanto
lhe permitia a observação cosmopolita do flaneur tipificado
por Baudelaire, outro melancólico em movimento e um dos seus heróis
intelectuais, como independência das ortodoxias marxistas de Adorno
e seus pares. Pode-se especular que, frustrado pelo adiamento na
fronteira, enojado pelas indignidades acumuladas que sofrera e
doente, Benjamin tenha apenas se negado mais vida e optado por outra
forma de fuga. Segundo Sontag, ele achava que era um tipo em
extinção, que tudo que ainda havia de valor no mundo era o último
exemplar, como o surrealismo, que era a última expressão,
apropriadamente niilista, da inteligência européia. Deixou
incompleta a sua maior obra (publicada há pouco) sobre as “arcades”,
as galerias de Paris, que chamava de a capital do século XIX. A
capital de um mundo que — talvez tenha pensado, antes da morfina —
terminava ali. Em vez de outro refugiado na América, preferiu ser
também o último exemplar da sua espécie, e o ponto final de uma
certa Europa.
Roberto
Calasso conta no seu livro I quarantanove gradini que depois
da guerra Hannah Arendt procurou em vão pela sepultura de Benjamin
no cemitério de Port Bou, que descreveu como um dos mais belos que
já conhecera. Hoje a sepultura existe. O interesse de turistas era
tão grande que o cemitério providenciou uma com o nome dele. O
lugar é bonito, diz Calasso, mas “a sepultura é apócrifa”.
Ninguém sabe onde Benjamin está passando a eternidade.
Se
não fosse o escravismo e a diáspora forçada da África nós não
teríamos o samba, o jazz e todos os ritmos caribenhos, sem
falar nas outras contribuições dos negros para a nossa cultura e
alegria. O mesmo tipo de elogio por vias tortas pode ser feito ao
comunismo, ao fascismo e outros ismos persecutórios, que mandaram
tantos artistas e cientistas para a América. Gente como Billy
Wilder, Saul Steinberg e Vladimir Nabokov teriam o mesmo talento se
não tivessem que fugir de Hitler, de Mussolini e dos bolcheviques,
mas sua arte não seria a mesma sem a marca do exílio — e sem a
oportunidade que encontraram no lugar do seu desterro. Foi esta
oportunidade oferecida pela rica e empreendedora América, a “chance”
e os meios, mais, talvez, do que a liberdade, que atraíram os
cientistas da Europa para também fazerem a sua arte no exílio. O
exemplo mais notório dessa arte aplicada é a bomba atômica. Num
universo sem relativização moral, um filme do Wilder, um desenho do
Steinberg, um livro do Nabokov, e a bomba — e mais um solo do
Charlie Parker — poderiam ser exibidos num mesmo espaço,
ilustrando o mesmo tema: os frutos da travessia.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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