terça-feira, 19 de maio de 2020

A travessia

O centenário do nascimento de Theodor Adorno [nasceu em 11/9/1903] está sendo devidamente comemorado este ano. Adorno foi um dos tantos intelectuais e cientistas europeus que fugiram dos nazistas para a América, no mais importante movimento migratório da história depois do provocado por outro flagelo, o do escravismo. Adorno foi para os Estados Unidos em 1938. Seu colega no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, Walter Benjamin, demorou a segui-lo. Ficou na França, foi internado pelos alemães, finalmente conseguiu um visto dos americanos e rumou para a fronteira com a Espanha. Sua passagem pela fronteira seria tranquila, mas, por uma pequena questão burocrática, foi adiada para o dia seguinte e o grupo de Benjamin teve que dormir na pequena cidade de Port Bou, ao pé dos Pirineus. Naquela noite, 26 de setembro de 1940, Benjamin se matou com uma overdose de morfina.
Nunca ficou claro por que Benjamin demorou para fugir e por que se suicidou. Ele tinha escrito que viera ao mundo “sob o signo de Saturno, o astro com a rotação mais lenta, o planeta dos desvios e dos atrasos”. Susan Sontag, num ensaio sobre Benjamin (intitulado “Sob o signo de Saturno”), disse que ele era dominado pela melancolia, e que tinha o pendor da personalidade saturnina pela solidão. Mas a sua era uma solitude ativa e desafiadora, que tanto lhe permitia a observação cosmopolita do flaneur tipificado por Baudelaire, outro melancólico em movimento e um dos seus heróis intelectuais, como independência das ortodoxias marxistas de Adorno e seus pares. Pode-se especular que, frustrado pelo adiamento na fronteira, enojado pelas indignidades acumuladas que sofrera e doente, Benjamin tenha apenas se negado mais vida e optado por outra forma de fuga. Segundo Sontag, ele achava que era um tipo em extinção, que tudo que ainda havia de valor no mundo era o último exemplar, como o surrealismo, que era a última expressão, apropriadamente niilista, da inteligência européia. Deixou incompleta a sua maior obra (publicada há pouco) sobre as “arcades”, as galerias de Paris, que chamava de a capital do século XIX. A capital de um mundo que — talvez tenha pensado, antes da morfina — terminava ali. Em vez de outro refugiado na América, preferiu ser também o último exemplar da sua espécie, e o ponto final de uma certa Europa.
Roberto Calasso conta no seu livro I quarantanove gradini que depois da guerra Hannah Arendt procurou em vão pela sepultura de Benjamin no cemitério de Port Bou, que descreveu como um dos mais belos que já conhecera. Hoje a sepultura existe. O interesse de turistas era tão grande que o cemitério providenciou uma com o nome dele. O lugar é bonito, diz Calasso, mas “a sepultura é apócrifa”. Ninguém sabe onde Benjamin está passando a eternidade.

Se não fosse o escravismo e a diáspora forçada da África nós não teríamos o samba, o jazz e todos os ritmos caribenhos, sem falar nas outras contribuições dos negros para a nossa cultura e alegria. O mesmo tipo de elogio por vias tortas pode ser feito ao comunismo, ao fascismo e outros ismos persecutórios, que mandaram tantos artistas e cientistas para a América. Gente como Billy Wilder, Saul Steinberg e Vladimir Nabokov teriam o mesmo talento se não tivessem que fugir de Hitler, de Mussolini e dos bolcheviques, mas sua arte não seria a mesma sem a marca do exílio — e sem a oportunidade que encontraram no lugar do seu desterro. Foi esta oportunidade oferecida pela rica e empreendedora América, a “chance” e os meios, mais, talvez, do que a liberdade, que atraíram os cientistas da Europa para também fazerem a sua arte no exílio. O exemplo mais notório dessa arte aplicada é a bomba atômica. Num universo sem relativização moral, um filme do Wilder, um desenho do Steinberg, um livro do Nabokov, e a bomba — e mais um solo do Charlie Parker — poderiam ser exibidos num mesmo espaço, ilustrando o mesmo tema: os frutos da travessia.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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