— e
somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós.
Em
verdade, com outros olhos, irmãos, buscarei então os que perdi; com
outro amor eu então vos amarei.
Assim
falou Zaratustra, “Da virtude dadivosa” (I, p. 76)
Em
seguida, Zaratustra retornou às montanhas e à solidão de sua
caverna e afastou-se dos homens: aguardando como um semeador que
espalhou suas sementes. Mas sua alma ficou plena de impaciência e
avidez por aqueles que amava: pois ele ainda tinha muito a lhes dar.
Isto é, de fato, o que há de mais difícil: por amor cerrar a mão
aberta e, fazendo dádivas, conservar o pudor.
Assim
transcorreram luas e anos para o solitário; mas sua sabedoria
cresceu e causou-lhe dor com sua abundância.
Um
dia, porém, ele despertou antes da aurora, refletiu longamente em
seu leito e falou enfim a seu coração:
“Com
o que me assustei tanto, em meu sonho, que acordei? Não me apareceu
um menino com um espelho?
‘Ó
Zaratustra’, disse-me ele, ‘olha-te no espelho!’
Ao
olhar no espelho, porém, soltei um grito e meu coração se abalou:
pois não foi a mim que vi nele, e sim a careta e o riso galhofeiro
de um demônio.
Em
verdade, compreendo bem demais o sinal e aviso do sonho: minha
doutrina está em perigo, o joio quer ser chamado de trigo!
Meus
inimigos tornaram-se poderosos e distorceram a imagem de minha
doutrina, de modo que os que mais amo se envergonharão das dádivas
que lhes fiz.
Perderam-se
para mim os amigos; chegou a hora de buscar os meus perdidos!”
Com
essas palavras levantou-se rapidamente Zaratustra, não como alguém
assustado que busca por ar, mas antes como um vidente e cantor que é
tomado pelo espírito. Sua águia e sua serpente olharam-no com
admiração: pois seu rosto, como a aurora, irradiava uma felicidade
iminente.
Que
me aconteceu, meus animais?, disse Zaratustra. Não estou
transformado? A bem-aventurança não chegou a mim como um vendaval?
Tola
é minha felicidade, e falará coisas tolas: é ainda jovem demais —
tende então paciência com ela!
Fui
ferido por minha felicidade: todos os sofredores me servirão de
médicos!
Posso
novamente descer para junto de meus amigos e também de meus
inimigos! Zaratustra pode novamente falar e presentear e fazer o
melhor para os que mais ama!
Meu
impaciente amor extravasa em torrentes, para baixo, para o nascente e
o poente. Desde silenciosas montanhas e tempestades de dor, minha
alma rumoreja rumo aos vales.
Por
tempo demais ansiei e olhei ao longe. Por tempo demais pertenci à
solidão: assim desaprendi o silêncio.
Tornei-me
apenas boca, e o bramir de um riacho a descer de altos rochedos: em
direção aos vales quero precipitar minha palavra.
E
ainda que a torrente de meu amor caia em terreno intransitável! Como
poderia uma torrente não encontrar enfim o caminho do mar?
Certamente
há um lago em mim, solitário e que basta a si mesmo; mas meu rio de
amor o arrasta consigo para baixo — para o mar!
Novos
caminhos sigo, uma nova fala me vem; como todos os criadores,
cansei-me das velhas línguas. Meu espírito já não deseja caminhar
com solas gastas.
Lento
demais, para mim, corre todo discurso: — pularei para tua
carruagem, furacão! E mesmo a ti fustigarei com a minha maldade!
Como
um grito e um júbilo viajarei por amplos mares, até encontrar as
ilhas bem-aventuradas onde se acham meus amigos: —
E
entre eles meus inimigos! Como amo, agora, todo aquele a quem puder
falar! Também meus inimigos são parte de minha ventura.
E,
quando quero montar meu corcel mais selvagem, minha lança é o que
mais me ajuda a nele subir: é o sempre disposto servidor de meu pé:
—
A
lança que arremesso contra meus inimigos! Como agradeço a meus
inimigos poder enfim arremessá-la!
Grande
demais era a tensão de minha nuvem: por entre os risos dos coriscos
lançarei rajadas de granizo à profundeza.
Fortemente
se inflará então meu peito, fortemente soprará sua tormenta sobre
os montes: assim terá seu alívio.
Em
verdade, como uma tormenta chegam minha felicidade e minha liberdade!
Mas meus inimigos devem pensar que o Maligno se enraivece por
sobre suas cabeças.
Sim,
também vós, meus amigos, vos assustareis com minha selvagem
sabedoria; e talvez dela fugireis, juntamente com meus inimigos.
Ah,
soubesse eu atrair-vos de volta com flautas de pastores! Ah, se minha
leoa sabedoria soubesse rugir meigamente! Muita coisa já aprendemos
juntos!
Minha
selvagem sabedoria ficou prenhe nos montes solitários; em ásperas
pedras deu à luz seu filhote mais novo.
Agora
corre desvairada pelo duro deserto, procurando um relvado macio —
minha velha sabedoria selvagem!
No
relvado macio de vossos corações, meus amigos! — no vosso amor
ela quer aninhar seu favorito!
Assim
falou Zaratustra.
Friedrich
Nietzsche, in Assim falou Zaratustra
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