Se
houvesse na natureza de Caninos Brancos qualquer possibilidade, por
mais remota que fosse, de vir a confraternizar com a sua espécie,
essa possibilidade foi irremediavelmente destruída quando o
promoveram a líder da matilha do trenó. Pois agora os cachorros o
odiavam – odiavam-no pela carne extra que Mit-sah lhe dava;
odiavam-no por todos os favores reais e imaginários que recebia;
odiavam-no porque ele sempre corria à frente do grupo, o rabo peludo
abanando e a traseira perpetuamente afastando-se e enlouquecendo os
olhos dos companheiros.
E
Caninos Brancos com igual amargura lhes devolvia o ódio. Ser líder
do trenó era tudo menos agradável para ele. Ser compelido a correr
diante do bando a urrar, cada um dos cachorros já retalhado e
dominado por ele no passado, era quase mais do que podia suportar.
Mas devia suportar, ou perecer, e a vida que nele existia não tinha
vontade de perecer. No momento em que Mit-sah dava a ordem para a
partida, toda a matilha, com gritos ansiosos e selvagens, pulava
adiante em perseguição a Caninos Brancos.
Não
havia defesa para ele. Se virasse o corpo contra os companheiros,
Mit-sah lhe lançaria o açoite cortante do chicote na face.
Restava-lhe apenas fugir correndo. Ele não podia enfrentar aquela
horda uivante com o seu rabo e traseira. Não eram armas apropriadas
com que lutar contra as muitas presas impiedosas. Assim ele fugia,
violando a sua própria natureza e orgulho a cada salto que dava, e
saltando o dia todo.
Não
se podem violar os estímulos da natureza sem que essa natureza recue
para dentro de si mesma. Esse recuo é como o de um pelo, destinado a
crescer para fora do corpo, que se virasse inaturalmente contra a
direção de seu desenvolvimento e crescesse para dentro do corpo –
um espinho inflamado e ulcerado. Era o que acontecia com Caninos
Brancos. Todo impulso de seu ser o compelia a saltar sobre o bando
que gritava no seu encalço, mas era a vontade dos deuses que assim
fosse; e por trás dessa vontade, para reforçá-la, estava o chicote
de tripa de caribu com seu açoite cortante de nove metros. Assim
Caninos Brancos só podia engolir a sua amargura e desenvolver um
ódio e uma maldade proporcionais à ferocidade e ao caráter
indomável da sua natureza.
Se
jamais uma criatura foi inimiga da sua espécie, essa criatura era
Caninos Brancos. Ele não pedia clemência, nem dava cartel a
ninguém. Era continuamente desfigurado e marcado pelos dentes do
bando, e com igual frequência deixava as suas marcas no bando. Ao
contrário da maioria dos líderes de trenó, que, quando se armava o
acampamento e soltavam-se os cachorros, amontoavam-se perto dos
deuses em busca de proteção, Caninos Brancos desdenhava essa
proteção. Caminhava audaciosamente pelo acampamento, infligindo
durante a noite o castigo pelo que tinha sofrido ao longo do dia. Nos
tempos antes de ser promovido a líder da matilha, o bando aprendera
a sair do seu caminho. Mas agora era diferente. Excitados pela
perseguição de um dia inteiro a Caninos Brancos, influenciados
subconscientemente pela iteração insistente nas suas mentes da
visão de Caninos Brancos em fuga, dominados pela sensação de
domínio desfrutada durante todo o dia, os cachorros não podiam se
convencer de que deviam lhe ceder terreno. Quando Caninos Brancos
aparecia entre eles, sempre havia uma contenda. O seu avanço era
marcado por rosnados, mordidas e grunhidos. A própria atmosfera que
ele respirava estava sobrecarregada de ódio e maldade, e isso apenas
servia para aumentar o ódio e a maldade dentro dele.
Quando
Mit-sah dava a ordem para que a matilha parasse, Caninos Brancos
obedecia. A princípio, isso causava problemas para os outros
cachorros. Todos pulavam sobre o odiado líder, só para ver o
feitiço se virar contra o feiticeiro. Atrás de Caninos Brancos
estaria Mit-sah, o grande chicote cantando na sua mão. Assim os
cachorros vieram a compreender que, quando a matilha parava por causa
de uma ordem, Caninos Brancos devia ser deixado em paz. Mas, quando
Caninos Brancos parava sem ordens, então tinham permissão de pular
em cima dele e destruí-lo, se pudessem. Depois de várias
experiências, Caninos Brancos nunca mais parou sem ordens. Ele
aprendia rápido. Estava na natureza das circunstâncias que ele
deveria aprender rápido, se quisesse sobreviver às condições
inusitadamente severas em que a vida lhe era concedida.
Mas
os cachorros nunca conseguiram aprender a lição de deixá-lo em paz
no acampamento. Todo dia, perseguindo-o e desafiando-o aos gritos, a
lição da noite anterior era apagada, e naquela noite teria de ser
aprendida mais uma vez, para ser com igual rapidez esquecida. Além
disso, havia uma maior consistência na sua aversão por Caninos
Brancos. Sentiam entre eles e o filhote de lobo uma diferença de
espécie – por si só causa suficiente para hostilidades. Como ele,
eram lobos domesticados. Mas tinham sido domesticados há gerações.
Grande parte da vida selvagem fora perdida, de modo que para eles a
Floresta era o desconhecido, o terrível, a ameaça e a guerra
constantes. Mas na aparência, ação e impulso, a Floresta ainda
aderia a Caninos Brancos. Ele a simbolizava, era a sua
personificação; por isso, quando lhe mostravam os dentes, eles
estavam se defendendo contra os poderes de destruição à espreita
nas sombras da floresta e na escuridão além do fogo do acampamento.
Mas
uma lição os cachorros realmente aprenderam, e essa foi a de sempre
andar em bando. Caninos Brancos era demasiado terrível para que
qualquer um deles o enfrentasse sozinho. Eles o desafiavam em
formação de massa, pois do contrário ele os teria matado, um a um,
numa noite. Nas circunstâncias, ele jamais teve a chance de
matá-los. Podia derrubar um cachorro fazendo-o rolar de patas para o
ar, mas o bando saltava sobre ele antes que pudesse prosseguir e
desferir o golpe mortal na garganta. No primeiro indício de
conflito, todo o bando se reunia e o enfrentava. Os cachorros tinham
brigas entre si, mas eram esquecidas quando se armava uma encrenca
com Caninos Brancos.
Por
outro lado, por mais que tentassem, eles não podiam matar Caninos
Brancos. Ele era rápido demais para eles, demasiado formidável,
demasiado sábio. Evitava lugares apertados e sempre recuava quando
eles ameaçavam rodeá-lo, enquanto, no que dizia respeito a
derrubá-lo, não havia cachorro entre eles capaz de realizar o
truque. As suas patas aderiam à terra com a mesma tenacidade com que
ele se agarrava à vida. Quanto a isso, vida e apoio sob as patas
eram sinônimos na interminável guerra com o bando, e ninguém sabia
disso melhor que Caninos Brancos.
Assim
ele se tornou o inimigo da sua espécie, os lobos domesticados,
suavizados pelos fogos do homem, enfraquecidos à sombra protetora da
força do homem. Caninos Brancos era amargo e implacável. A sua
argila fora assim moldada. Declarou uma vendeta contra todos os
cachorros. E tão terrivelmente viveu essa vendeta que Castor Cinza,
ele próprio um selvagem feroz, não podia deixar de se maravilhar
com a ferocidade de Caninos Brancos. Nunca, jurava, houvera um animal
semelhante; e os índios nas vilas estranhas juravam da mesma forma,
quando consideravam a história das suas matanças entre os
cachorros.
Quando
Caninos Brancos estava quase com cinco anos, Castor Cinza o levou
noutra grande viagem, e de lembranças duradouras foi o estrago que
realizou entre os cachorros das muitas vilas ao longo do Mackenzie,
através das Montanhas Rochosas e ao longo da corrente do Porcupine
ao Yukon. Ele se deliciava com a vingança que impunha à sua
espécie. Eram cachorros comuns, não alimentavam suspeitas. Não
estavam preparados para o modo rápido e direto de seu ataque sem
aviso anterior. Não o conheciam pelo que era, um relâmpago de
matança. Eriçavam o pelo à sua vista, enrijeciam as patas e o
desafiavam, enquanto ele, sem perder tempo com preliminares
elaboradas, entrando em ação como uma mola de aço, atacava as
gargantas e as destruía, antes que eles soubessem o que estava
acontecendo e enquanto ainda estavam convulsionados pela angústia da
surpresa.
Ele
tornou-se um adepto de brigas. Economizava. Nunca desperdiçava a sua
força, nunca pelejava. Entrava na briga rápido demais para isso e,
se errava o alvo, tornava a sair com igual rapidez. Tinha num grau
inusitado a aversão do lobo a ambientes apertados. Não podia
suportar um contato prolongado com outro corpo. Isso sabia a perigo.
Deixava-o frenético. Ele devia estar longe, livre, firme sobre as
próprias patas, sem tocar nenhuma coisa viva. Era a Floresta que
ainda aderia à sua natureza, afirmando-se por meio de seu ser. Esse
sentimento fora acentuado pela vida de pária que tinha levado desde
seus tempos de filhote. O perigo estava à espreita nos contatos. Era
a armadilha, sempre a armadilha, o medo furtivo e profundo na sua
vida, tecido na sua própria fibra.
Em
consequência, os cachorros estranhos que encontrava não tinham
nenhuma chance contra Caninos Brancos. Ele fugia às suas presas.
Pegava-os ou afastava-se, ele próprio ileso em qualquer uma das duas
ocorrências. No curso natural das coisas, ocorriam exceções a essa
regra. Havia ocasiões em que vários cachorros, atacando-o de rijo,
castigavam-no antes que ele pudesse sair correndo; e outras vezes em
que um único cachorro deixava uma marca profunda no seu corpo. Mas
eram acidentes. Em geral, tornara-se um lutador tão eficiente que
seguia o seu caminho são e salvo.
Outra
vantagem que possuía era a de julgar corretamente o tempo e a
distância. Não que o fizesse conscientemente, entretanto. Ele não
calculava essas coisas. Era tudo automático. Seus olhos viam
corretamente, e os nervos carregavam a visão corretamente para o seu
cérebro. Suas partes eram muito mais bem ajustadas que as do
cachorro comum. Funcionavam juntas com mais facilidade e constância.
A sua coordenação nervosa, mental e muscular era muito, muito
melhor. Quando seus olhos transmitiam ao cérebro a imagem em
movimento de uma ação, o seu cérebro, sem esforço consciente,
sabia o espaço que limitava essa ação e o tempo requerido para que
fosse completada. Assim, ele podia evitar o pulo de outro cachorro ou
o ataque de suas presas, e ao mesmo tempo sabia aproveitar a fração
infinitesimal de tempo em que desfechar o seu ataque. Corpo e
cérebro, os seus eram um mecanismo mais aperfeiçoado. Não que
devesse ser elogiado por isso. A natureza fora mais generosa com ele
do que com o animal médio, só isso.
Foi
no verão que Caninos Brancos chegou a Forte Yukon. Castor Cinza
tinha cruzado a grande bacia entre o Mackenzie e o Yukon no final do
inverno, passando a primavera a caçar entre os contrafortes na
fronteira oeste das Rochosas. Mais tarde, quando rompeu-se o gelo no
Porcupine, ele construíra uma canoa e descera remando esse rio até
o ponto de sua junção com o Yukon, logo abaixo do Círculo Ártico.
Ali ficava o velho forte da Bay Company de Hudson; e ali havia muitos
índios, muita comida e uma excitação sem precedentes. Era o verão
de 1898, e milhares de caçadores de ouro estavam subindo o Yukon até
Dawson e o Klondike. Ainda a centenas de quilômetros de sua meta,
mesmo assim muitos deles já estavam na estrada há um ano, e o
mínimo que qualquer um deles já viajara para chegar até aquele
ponto eram oito mil quilômetros, enquanto alguns tinham vindo do
outro lado do mundo.
Ali
Castor Cinza parou. Um sussurro da corrida ao ouro chegara a seus
ouvidos, e ele trouxera vários fardos de peles e outros cheios de
luvas e mocassins de tripa costurada. Não teria se arriscado a fazer
uma viagem tão longa, se não esperasse lucros generosos. Mas as
suas expectativas não eram nada perto do que realmente lucrou. O seu
sonho mais louco não passara de um lucro de cem por cento, mas
conseguiu mil por cento. E como um verdadeiro índio, acomodou-se
para comerciar com cuidado e lentidão, mesmo que gastasse todo o
verão e o resto do inverno para vender as suas mercadorias.
Foi
no Forte Yukon que Caninos Brancos viu os primeiros homens brancos.
Comparados com os índios que tinha conhecido, eles eram para o
filhote de lobo uma outra raça, uma raça de deuses superiores. Sua
impressão era que eles tinham um poder superior, e no poder é que
repousa a divindade. Caninos Brancos não elaborava esse raciocínio,
não fazia na sua mente a generalização nítida de que os deuses
brancos eram mais poderosos. Era um sentimento, nada mais, mas nem
por isso menos potente. Assim como, nos seus tempos de filhote, os
volumes gigantescos das tendas erguidas pelo homem tinham lhe deixado
a impressão de serem manifestações de poder, assim ele agora se
impressionou com as casas e o imenso forte, feitos de toras maciças.
Ali havia poder. Esses deuses brancos eram fortes. Possuíam maior
domínio sobre a matéria do que os deuses que conhecera, mesmo
aqueles mais poderosos entre os quais estava Castor Cinza. Mas Castor
Cinza era um deus-criança entre esses de pele branca.
Para
falar a verdade, Caninos Brancos apenas sentia essas coisas. Delas
não tinha consciência. No entanto, com mais frequência do que no
pensamento, é com base na sensação que os animais agem; e todo ato
que Caninos Brancos agora executava baseava-se na sensação de que
os homens brancos eram os deuses superiores. Em primeiro lugar, ele
nutria muitas suspeitas a respeito deles. Impossível dizer que
terrores desconhecidos possuíam, que dores desconhecidas poderiam
infligir. Sentia curiosidade de observá-los, temor de ser notado por
eles. Durante as primeiras horas, contentou-se em andar
sorrateiramente e em vigiá-los de uma distância segura. Depois viu
que nenhum dano acontecia aos cachorros que se aproximavam deles, e
chegou mais perto.
Por
sua vez, ele era objeto de grande curiosidade para os deuses brancos.
Sua aparência de lobo logo lhes chamou a atenção, e eles o
apontavam uns para os outros. Esse ato de apontar pôs Caninos
Brancos na defensiva, e quando tentavam se aproximar, ele mostrava os
dentes e se afastava. Ninguém conseguia pôr a mão nele, e ainda
bem que não conseguiam.
Caninos
Brancos logo aprendeu que bem poucos desses deuses – não mais que
uma dúzia – viviam no local. A cada dois ou três dias um vapor
(outra manifestação colossal de poder) chegava à margem do rio e
parava por várias horas. Os homens brancos saíam desses vapores e
mais tarde iam embora neles. Parecia haver números incontáveis
desses homens brancos. Nos primeiros dias, ele viu mais homens
brancos do que tinha visto índios em toda a sua vida; e com o passar
dos dias eles continuavam a subir o rio, parar, e depois continuar a
subir o rio e desaparecer da vista.
Mas
se os deuses brancos eram todo-poderosos, os seus cachorros não
valiam grande coisa. Isso Caninos Brancos logo descobriu,
misturando-se com aqueles que desembarcavam com seus donos. Eram de
formas e tamanhos irregulares. Alguns tinham patas curtas – curtas
demais; outros tinham patas longas – longas demais. Tinham pelos em
vez de peles finas e macias, e uns poucos ainda por cima tinham muito
pouco pelo. E nenhum deles sabia brigar.
Como
inimigo da sua espécie, era da competência de Caninos Brancos
brigar com eles. O que não deixava de fazer, e logo sentiu por todos
um poderoso desprezo. Eram moles e indefesos, faziam muito barulho e
espojavam-se ao redor desajeitadamente, tentando conseguir pela força
bruta o que ele conseguia com destreza e astúcia. Precipitavam-se
aos gritos em cima dele. Caninos Brancos pulava para o lado. Eles
ficavam sem saber onde ele se metera; e nesse momento ele os atacava
no ombro, derrubava-os e dava o seu golpe na garganta.
Às
vezes esse golpe era bem-sucedido, e um cachorro ferido rolava na
poeira para ser atacado e despedaçado pelo bando de cachorros dos
índios que esperava. Caninos Brancos era prudente. Aprendera há
muito tempo que os deuses se encolerizavam quando seus cachorros eram
mortos. Os homens brancos não eram exceção à regra. Por isso,
quando derrubava e abria a garganta de um de seus cachorros, ele
contentava-se em cair fora e deixar o bando entrar em ação e acabar
o trabalho cruel. Era então que os homens brancos se precipitavam,
descarregando a sua raiva pesadamente no bando, enquanto Caninos
Brancos saía lépido e faceiro. Ele mantinha-se a uma pequena
distância e observava, enquanto pedras, macetes, machados e todo
tipo de armas caíam sobre os companheiros. Caninos Brancos era muito
sábio.
Mas
os companheiros tornavam-se sábios, à sua maneira, e nisso Caninos
Brancos os imitava. Aprenderam que era na hora em que um vapor
aportava à margem pela primeira vez que eles tinham diversão certa.
Depois que os primeiros dois ou três cachorros estranhos tinham sido
derrubados e destruídos, os homens brancos empurravam seus cachorros
de volta para bordo, e vingavam-se selvagemente dos atacantes. Um
certo homem branco, depois de ver o cachorro, um setter, ser
despedaçado diante de seus olhos, puxou o revólver. Atirou
rapidamente, seis vezes, e seis do bando caíram mortos ou moribundos
– outra manifestação de poder que penetrou profundamente na
consciência de Caninos Brancos.
Caninos
Brancos divertia-se com tudo. Ele não amava a sua espécie, e era
bastante astuto para evitar danos a si próprio. A princípio, a
matança dos cachorros dos homens brancos fora uma diversão. Depois
de algum tempo, tornou-se a sua ocupação. Ele não tinha o que
fazer. Castor Cinza estava ocupado, negociando e acumulando riquezas.
Assim Caninos Brancos vivia ao redor do desembarque com a cambada
mal-afamada dos cachorros dos índios, esperando os vapores. Com a
chegada de um vapor, a diversão começava. Depois de alguns minutos,
quando os homens brancos tinham se recuperado da surpresa, a cambada
se dispersava. A diversão terminava até a chegada do próximo
vapor.
Mas
não se pode dizer que Caninos Brancos fosse membro da cambada. Ele
não se misturava com os outros, continuava à parte, sempre sozinho,
sendo até temido pelos companheiros. É verdade, ele agia com os
outros. Comprava briga com o cachorro estranho, enquanto a cambada
esperava. E depois que ele derrubava o cachorro estranho, a cambada
vinha terminar a matança. Mas é igualmente verdade que ele então
se retirava, deixando que a cambada recebesse o castigo dos deuses
ultrajados.
Não
era preciso muito esforço para armar essas brigas. Tudo o que ele
tinha de fazer, quando os cachorros estranhos desembarcavam, era
mostrar-se. Quando eles o viam, precipitavam-se sobre Caninos
Brancos. Era o seu instinto. Ele era a Floresta – o desconhecido, o
terrível, a ameaça perene, aquilo que rondava na escuridão ao
redor das fogueiras do mundo primevo, quando eles, encolhendo-se
perto do fogo, remodelavam os seus instintos, aprendendo a temer a
Floresta de onde tinham vindo, a Floresta que tinham abandonado e
traído. Geração após geração, ao longo de todas as gerações,
esse medo da Floresta fora carimbado nas suas naturezas. Durante
séculos, a Floresta simbolizara o terror e a destruição. E,
durante todo esse tempo, tiveram permissão, concedida por seus
donos, para matar as coisas da Floresta. Agindo dessa maneira, tinham
protegido tanto a si próprios como aos deuses cuja companhia
partilhavam.
E,
ainda recém-chegados do suave mundo do sul, esses cachorros, ao
descerem a prancha de desembarque e pisarem a margem do Yukon, não
precisavam mais do que a visão de Caninos Brancos para experimentar
o impulso irresistível de precipitar-se sobre ele e destruí-lo.
Talvez fossem cachorros criados na cidade, mas não deixavam de
possuir o medo instintivo da Floresta. Não era só com seus olhos
que viam a criatura de aparência lupina à luz clara do dia, parada
à sua frente. Eles o viam com os olhos de seus ancestrais, e por
meio da memória herdada reconheciam o lobo em Caninos Brancos, e
lembravam-se da antiga briga.
Tudo
isso servia para tornar os dias de Caninos Brancos agradáveis. Se a
sua visão impelia esses cachorros estranhos a atacá-lo, tanto
melhor para ele, tanto pior para eles.
Não
fora em vão que ele vira pela primeira vez a luz do dia numa toca
solitária e travara suas primeiras batalhas com a perdiz, a doninha
e o lince. E não fora em vão que os seus tempos de filhote tinham
sido azedados pela perseguição de Lip-lip e todo o bando de
filhotes. Tudo poderia ter sido diferente, e ele então teria se
tornado alguém diferente. Se Lip-lip não tivesse existido, ele
teria passado a sua infância com os outros filhotes e crescido mais
como um cachorro, gostando mais dos cachorros. Se Castor Cinza
tivesse possuído a inclinação do afeto e do amor, ele poderia ter
sondado as profundezas da natureza de Caninos Brancos e trazido para
a superfície toda sorte de qualidades bondosas. Mas nada disso
acontecera. A argila de Caninos Brancos fora moldada até ele
tornar-se o que era, soturno e solitário, sem afetos e feroz, o
inimigo de toda a sua espécie.
Jack
London, in Caninos
Brancos
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