terça-feira, 5 de maio de 2020

O inimigo da sua espécie

Se houvesse na natureza de Caninos Brancos qualquer possibilidade, por mais remota que fosse, de vir a confraternizar com a sua espécie, essa possibilidade foi irremediavelmente destruída quando o promoveram a líder da matilha do trenó. Pois agora os cachorros o odiavam – odiavam-no pela carne extra que Mit-sah lhe dava; odiavam-no por todos os favores reais e imaginários que recebia; odiavam-no porque ele sempre corria à frente do grupo, o rabo peludo abanando e a traseira perpetuamente afastando-se e enlouquecendo os olhos dos companheiros.
E Caninos Brancos com igual amargura lhes devolvia o ódio. Ser líder do trenó era tudo menos agradável para ele. Ser compelido a correr diante do bando a urrar, cada um dos cachorros já retalhado e dominado por ele no passado, era quase mais do que podia suportar. Mas devia suportar, ou perecer, e a vida que nele existia não tinha vontade de perecer. No momento em que Mit-sah dava a ordem para a partida, toda a matilha, com gritos ansiosos e selvagens, pulava adiante em perseguição a Caninos Brancos.
Não havia defesa para ele. Se virasse o corpo contra os companheiros, Mit-sah lhe lançaria o açoite cortante do chicote na face. Restava-lhe apenas fugir correndo. Ele não podia enfrentar aquela horda uivante com o seu rabo e traseira. Não eram armas apropriadas com que lutar contra as muitas presas impiedosas. Assim ele fugia, violando a sua própria natureza e orgulho a cada salto que dava, e saltando o dia todo.
Não se podem violar os estímulos da natureza sem que essa natureza recue para dentro de si mesma. Esse recuo é como o de um pelo, destinado a crescer para fora do corpo, que se virasse inaturalmente contra a direção de seu desenvolvimento e crescesse para dentro do corpo – um espinho inflamado e ulcerado. Era o que acontecia com Caninos Brancos. Todo impulso de seu ser o compelia a saltar sobre o bando que gritava no seu encalço, mas era a vontade dos deuses que assim fosse; e por trás dessa vontade, para reforçá-la, estava o chicote de tripa de caribu com seu açoite cortante de nove metros. Assim Caninos Brancos só podia engolir a sua amargura e desenvolver um ódio e uma maldade proporcionais à ferocidade e ao caráter indomável da sua natureza.
Se jamais uma criatura foi inimiga da sua espécie, essa criatura era Caninos Brancos. Ele não pedia clemência, nem dava cartel a ninguém. Era continuamente desfigurado e marcado pelos dentes do bando, e com igual frequência deixava as suas marcas no bando. Ao contrário da maioria dos líderes de trenó, que, quando se armava o acampamento e soltavam-se os cachorros, amontoavam-se perto dos deuses em busca de proteção, Caninos Brancos desdenhava essa proteção. Caminhava audaciosamente pelo acampamento, infligindo durante a noite o castigo pelo que tinha sofrido ao longo do dia. Nos tempos antes de ser promovido a líder da matilha, o bando aprendera a sair do seu caminho. Mas agora era diferente. Excitados pela perseguição de um dia inteiro a Caninos Brancos, influenciados subconscientemente pela iteração insistente nas suas mentes da visão de Caninos Brancos em fuga, dominados pela sensação de domínio desfrutada durante todo o dia, os cachorros não podiam se convencer de que deviam lhe ceder terreno. Quando Caninos Brancos aparecia entre eles, sempre havia uma contenda. O seu avanço era marcado por rosnados, mordidas e grunhidos. A própria atmosfera que ele respirava estava sobrecarregada de ódio e maldade, e isso apenas servia para aumentar o ódio e a maldade dentro dele.
Quando Mit-sah dava a ordem para que a matilha parasse, Caninos Brancos obedecia. A princípio, isso causava problemas para os outros cachorros. Todos pulavam sobre o odiado líder, só para ver o feitiço se virar contra o feiticeiro. Atrás de Caninos Brancos estaria Mit-sah, o grande chicote cantando na sua mão. Assim os cachorros vieram a compreender que, quando a matilha parava por causa de uma ordem, Caninos Brancos devia ser deixado em paz. Mas, quando Caninos Brancos parava sem ordens, então tinham permissão de pular em cima dele e destruí-lo, se pudessem. Depois de várias experiências, Caninos Brancos nunca mais parou sem ordens. Ele aprendia rápido. Estava na natureza das circunstâncias que ele deveria aprender rápido, se quisesse sobreviver às condições inusitadamente severas em que a vida lhe era concedida.
Mas os cachorros nunca conseguiram aprender a lição de deixá-lo em paz no acampamento. Todo dia, perseguindo-o e desafiando-o aos gritos, a lição da noite anterior era apagada, e naquela noite teria de ser aprendida mais uma vez, para ser com igual rapidez esquecida. Além disso, havia uma maior consistência na sua aversão por Caninos Brancos. Sentiam entre eles e o filhote de lobo uma diferença de espécie – por si só causa suficiente para hostilidades. Como ele, eram lobos domesticados. Mas tinham sido domesticados há gerações. Grande parte da vida selvagem fora perdida, de modo que para eles a Floresta era o desconhecido, o terrível, a ameaça e a guerra constantes. Mas na aparência, ação e impulso, a Floresta ainda aderia a Caninos Brancos. Ele a simbolizava, era a sua personificação; por isso, quando lhe mostravam os dentes, eles estavam se defendendo contra os poderes de destruição à espreita nas sombras da floresta e na escuridão além do fogo do acampamento.
Mas uma lição os cachorros realmente aprenderam, e essa foi a de sempre andar em bando. Caninos Brancos era demasiado terrível para que qualquer um deles o enfrentasse sozinho. Eles o desafiavam em formação de massa, pois do contrário ele os teria matado, um a um, numa noite. Nas circunstâncias, ele jamais teve a chance de matá-los. Podia derrubar um cachorro fazendo-o rolar de patas para o ar, mas o bando saltava sobre ele antes que pudesse prosseguir e desferir o golpe mortal na garganta. No primeiro indício de conflito, todo o bando se reunia e o enfrentava. Os cachorros tinham brigas entre si, mas eram esquecidas quando se armava uma encrenca com Caninos Brancos.
Por outro lado, por mais que tentassem, eles não podiam matar Caninos Brancos. Ele era rápido demais para eles, demasiado formidável, demasiado sábio. Evitava lugares apertados e sempre recuava quando eles ameaçavam rodeá-lo, enquanto, no que dizia respeito a derrubá-lo, não havia cachorro entre eles capaz de realizar o truque. As suas patas aderiam à terra com a mesma tenacidade com que ele se agarrava à vida. Quanto a isso, vida e apoio sob as patas eram sinônimos na interminável guerra com o bando, e ninguém sabia disso melhor que Caninos Brancos.
Assim ele se tornou o inimigo da sua espécie, os lobos domesticados, suavizados pelos fogos do homem, enfraquecidos à sombra protetora da força do homem. Caninos Brancos era amargo e implacável. A sua argila fora assim moldada. Declarou uma vendeta contra todos os cachorros. E tão terrivelmente viveu essa vendeta que Castor Cinza, ele próprio um selvagem feroz, não podia deixar de se maravilhar com a ferocidade de Caninos Brancos. Nunca, jurava, houvera um animal semelhante; e os índios nas vilas estranhas juravam da mesma forma, quando consideravam a história das suas matanças entre os cachorros.
Quando Caninos Brancos estava quase com cinco anos, Castor Cinza o levou noutra grande viagem, e de lembranças duradouras foi o estrago que realizou entre os cachorros das muitas vilas ao longo do Mackenzie, através das Montanhas Rochosas e ao longo da corrente do Porcupine ao Yukon. Ele se deliciava com a vingança que impunha à sua espécie. Eram cachorros comuns, não alimentavam suspeitas. Não estavam preparados para o modo rápido e direto de seu ataque sem aviso anterior. Não o conheciam pelo que era, um relâmpago de matança. Eriçavam o pelo à sua vista, enrijeciam as patas e o desafiavam, enquanto ele, sem perder tempo com preliminares elaboradas, entrando em ação como uma mola de aço, atacava as gargantas e as destruía, antes que eles soubessem o que estava acontecendo e enquanto ainda estavam convulsionados pela angústia da surpresa.
Ele tornou-se um adepto de brigas. Economizava. Nunca desperdiçava a sua força, nunca pelejava. Entrava na briga rápido demais para isso e, se errava o alvo, tornava a sair com igual rapidez. Tinha num grau inusitado a aversão do lobo a ambientes apertados. Não podia suportar um contato prolongado com outro corpo. Isso sabia a perigo. Deixava-o frenético. Ele devia estar longe, livre, firme sobre as próprias patas, sem tocar nenhuma coisa viva. Era a Floresta que ainda aderia à sua natureza, afirmando-se por meio de seu ser. Esse sentimento fora acentuado pela vida de pária que tinha levado desde seus tempos de filhote. O perigo estava à espreita nos contatos. Era a armadilha, sempre a armadilha, o medo furtivo e profundo na sua vida, tecido na sua própria fibra.
Em consequência, os cachorros estranhos que encontrava não tinham nenhuma chance contra Caninos Brancos. Ele fugia às suas presas. Pegava-os ou afastava-se, ele próprio ileso em qualquer uma das duas ocorrências. No curso natural das coisas, ocorriam exceções a essa regra. Havia ocasiões em que vários cachorros, atacando-o de rijo, castigavam-no antes que ele pudesse sair correndo; e outras vezes em que um único cachorro deixava uma marca profunda no seu corpo. Mas eram acidentes. Em geral, tornara-se um lutador tão eficiente que seguia o seu caminho são e salvo.
Outra vantagem que possuía era a de julgar corretamente o tempo e a distância. Não que o fizesse conscientemente, entretanto. Ele não calculava essas coisas. Era tudo automático. Seus olhos viam corretamente, e os nervos carregavam a visão corretamente para o seu cérebro. Suas partes eram muito mais bem ajustadas que as do cachorro comum. Funcionavam juntas com mais facilidade e constância. A sua coordenação nervosa, mental e muscular era muito, muito melhor. Quando seus olhos transmitiam ao cérebro a imagem em movimento de uma ação, o seu cérebro, sem esforço consciente, sabia o espaço que limitava essa ação e o tempo requerido para que fosse completada. Assim, ele podia evitar o pulo de outro cachorro ou o ataque de suas presas, e ao mesmo tempo sabia aproveitar a fração infinitesimal de tempo em que desfechar o seu ataque. Corpo e cérebro, os seus eram um mecanismo mais aperfeiçoado. Não que devesse ser elogiado por isso. A natureza fora mais generosa com ele do que com o animal médio, só isso.
Foi no verão que Caninos Brancos chegou a Forte Yukon. Castor Cinza tinha cruzado a grande bacia entre o Mackenzie e o Yukon no final do inverno, passando a primavera a caçar entre os contrafortes na fronteira oeste das Rochosas. Mais tarde, quando rompeu-se o gelo no Porcupine, ele construíra uma canoa e descera remando esse rio até o ponto de sua junção com o Yukon, logo abaixo do Círculo Ártico. Ali ficava o velho forte da Bay Company de Hudson; e ali havia muitos índios, muita comida e uma excitação sem precedentes. Era o verão de 1898, e milhares de caçadores de ouro estavam subindo o Yukon até Dawson e o Klondike. Ainda a centenas de quilômetros de sua meta, mesmo assim muitos deles já estavam na estrada há um ano, e o mínimo que qualquer um deles já viajara para chegar até aquele ponto eram oito mil quilômetros, enquanto alguns tinham vindo do outro lado do mundo.
Ali Castor Cinza parou. Um sussurro da corrida ao ouro chegara a seus ouvidos, e ele trouxera vários fardos de peles e outros cheios de luvas e mocassins de tripa costurada. Não teria se arriscado a fazer uma viagem tão longa, se não esperasse lucros generosos. Mas as suas expectativas não eram nada perto do que realmente lucrou. O seu sonho mais louco não passara de um lucro de cem por cento, mas conseguiu mil por cento. E como um verdadeiro índio, acomodou-se para comerciar com cuidado e lentidão, mesmo que gastasse todo o verão e o resto do inverno para vender as suas mercadorias.
Foi no Forte Yukon que Caninos Brancos viu os primeiros homens brancos. Comparados com os índios que tinha conhecido, eles eram para o filhote de lobo uma outra raça, uma raça de deuses superiores. Sua impressão era que eles tinham um poder superior, e no poder é que repousa a divindade. Caninos Brancos não elaborava esse raciocínio, não fazia na sua mente a generalização nítida de que os deuses brancos eram mais poderosos. Era um sentimento, nada mais, mas nem por isso menos potente. Assim como, nos seus tempos de filhote, os volumes gigantescos das tendas erguidas pelo homem tinham lhe deixado a impressão de serem manifestações de poder, assim ele agora se impressionou com as casas e o imenso forte, feitos de toras maciças. Ali havia poder. Esses deuses brancos eram fortes. Possuíam maior domínio sobre a matéria do que os deuses que conhecera, mesmo aqueles mais poderosos entre os quais estava Castor Cinza. Mas Castor Cinza era um deus-criança entre esses de pele branca.
Para falar a verdade, Caninos Brancos apenas sentia essas coisas. Delas não tinha consciência. No entanto, com mais frequência do que no pensamento, é com base na sensação que os animais agem; e todo ato que Caninos Brancos agora executava baseava-se na sensação de que os homens brancos eram os deuses superiores. Em primeiro lugar, ele nutria muitas suspeitas a respeito deles. Impossível dizer que terrores desconhecidos possuíam, que dores desconhecidas poderiam infligir. Sentia curiosidade de observá-los, temor de ser notado por eles. Durante as primeiras horas, contentou-se em andar sorrateiramente e em vigiá-los de uma distância segura. Depois viu que nenhum dano acontecia aos cachorros que se aproximavam deles, e chegou mais perto.
Por sua vez, ele era objeto de grande curiosidade para os deuses brancos. Sua aparência de lobo logo lhes chamou a atenção, e eles o apontavam uns para os outros. Esse ato de apontar pôs Caninos Brancos na defensiva, e quando tentavam se aproximar, ele mostrava os dentes e se afastava. Ninguém conseguia pôr a mão nele, e ainda bem que não conseguiam.
Caninos Brancos logo aprendeu que bem poucos desses deuses – não mais que uma dúzia – viviam no local. A cada dois ou três dias um vapor (outra manifestação colossal de poder) chegava à margem do rio e parava por várias horas. Os homens brancos saíam desses vapores e mais tarde iam embora neles. Parecia haver números incontáveis desses homens brancos. Nos primeiros dias, ele viu mais homens brancos do que tinha visto índios em toda a sua vida; e com o passar dos dias eles continuavam a subir o rio, parar, e depois continuar a subir o rio e desaparecer da vista.
Mas se os deuses brancos eram todo-poderosos, os seus cachorros não valiam grande coisa. Isso Caninos Brancos logo descobriu, misturando-se com aqueles que desembarcavam com seus donos. Eram de formas e tamanhos irregulares. Alguns tinham patas curtas – curtas demais; outros tinham patas longas – longas demais. Tinham pelos em vez de peles finas e macias, e uns poucos ainda por cima tinham muito pouco pelo. E nenhum deles sabia brigar.
Como inimigo da sua espécie, era da competência de Caninos Brancos brigar com eles. O que não deixava de fazer, e logo sentiu por todos um poderoso desprezo. Eram moles e indefesos, faziam muito barulho e espojavam-se ao redor desajeitadamente, tentando conseguir pela força bruta o que ele conseguia com destreza e astúcia. Precipitavam-se aos gritos em cima dele. Caninos Brancos pulava para o lado. Eles ficavam sem saber onde ele se metera; e nesse momento ele os atacava no ombro, derrubava-os e dava o seu golpe na garganta.
Às vezes esse golpe era bem-sucedido, e um cachorro ferido rolava na poeira para ser atacado e despedaçado pelo bando de cachorros dos índios que esperava. Caninos Brancos era prudente. Aprendera há muito tempo que os deuses se encolerizavam quando seus cachorros eram mortos. Os homens brancos não eram exceção à regra. Por isso, quando derrubava e abria a garganta de um de seus cachorros, ele contentava-se em cair fora e deixar o bando entrar em ação e acabar o trabalho cruel. Era então que os homens brancos se precipitavam, descarregando a sua raiva pesadamente no bando, enquanto Caninos Brancos saía lépido e faceiro. Ele mantinha-se a uma pequena distância e observava, enquanto pedras, macetes, machados e todo tipo de armas caíam sobre os companheiros. Caninos Brancos era muito sábio.
Mas os companheiros tornavam-se sábios, à sua maneira, e nisso Caninos Brancos os imitava. Aprenderam que era na hora em que um vapor aportava à margem pela primeira vez que eles tinham diversão certa. Depois que os primeiros dois ou três cachorros estranhos tinham sido derrubados e destruídos, os homens brancos empurravam seus cachorros de volta para bordo, e vingavam-se selvagemente dos atacantes. Um certo homem branco, depois de ver o cachorro, um setter, ser despedaçado diante de seus olhos, puxou o revólver. Atirou rapidamente, seis vezes, e seis do bando caíram mortos ou moribundos – outra manifestação de poder que penetrou profundamente na consciência de Caninos Brancos.
Caninos Brancos divertia-se com tudo. Ele não amava a sua espécie, e era bastante astuto para evitar danos a si próprio. A princípio, a matança dos cachorros dos homens brancos fora uma diversão. Depois de algum tempo, tornou-se a sua ocupação. Ele não tinha o que fazer. Castor Cinza estava ocupado, negociando e acumulando riquezas. Assim Caninos Brancos vivia ao redor do desembarque com a cambada mal-afamada dos cachorros dos índios, esperando os vapores. Com a chegada de um vapor, a diversão começava. Depois de alguns minutos, quando os homens brancos tinham se recuperado da surpresa, a cambada se dispersava. A diversão terminava até a chegada do próximo vapor.
Mas não se pode dizer que Caninos Brancos fosse membro da cambada. Ele não se misturava com os outros, continuava à parte, sempre sozinho, sendo até temido pelos companheiros. É verdade, ele agia com os outros. Comprava briga com o cachorro estranho, enquanto a cambada esperava. E depois que ele derrubava o cachorro estranho, a cambada vinha terminar a matança. Mas é igualmente verdade que ele então se retirava, deixando que a cambada recebesse o castigo dos deuses ultrajados.
Não era preciso muito esforço para armar essas brigas. Tudo o que ele tinha de fazer, quando os cachorros estranhos desembarcavam, era mostrar-se. Quando eles o viam, precipitavam-se sobre Caninos Brancos. Era o seu instinto. Ele era a Floresta – o desconhecido, o terrível, a ameaça perene, aquilo que rondava na escuridão ao redor das fogueiras do mundo primevo, quando eles, encolhendo-se perto do fogo, remodelavam os seus instintos, aprendendo a temer a Floresta de onde tinham vindo, a Floresta que tinham abandonado e traído. Geração após geração, ao longo de todas as gerações, esse medo da Floresta fora carimbado nas suas naturezas. Durante séculos, a Floresta simbolizara o terror e a destruição. E, durante todo esse tempo, tiveram permissão, concedida por seus donos, para matar as coisas da Floresta. Agindo dessa maneira, tinham protegido tanto a si próprios como aos deuses cuja companhia partilhavam.
E, ainda recém-chegados do suave mundo do sul, esses cachorros, ao descerem a prancha de desembarque e pisarem a margem do Yukon, não precisavam mais do que a visão de Caninos Brancos para experimentar o impulso irresistível de precipitar-se sobre ele e destruí-lo. Talvez fossem cachorros criados na cidade, mas não deixavam de possuir o medo instintivo da Floresta. Não era só com seus olhos que viam a criatura de aparência lupina à luz clara do dia, parada à sua frente. Eles o viam com os olhos de seus ancestrais, e por meio da memória herdada reconheciam o lobo em Caninos Brancos, e lembravam-se da antiga briga.
Tudo isso servia para tornar os dias de Caninos Brancos agradáveis. Se a sua visão impelia esses cachorros estranhos a atacá-lo, tanto melhor para ele, tanto pior para eles.
Não fora em vão que ele vira pela primeira vez a luz do dia numa toca solitária e travara suas primeiras batalhas com a perdiz, a doninha e o lince. E não fora em vão que os seus tempos de filhote tinham sido azedados pela perseguição de Lip-lip e todo o bando de filhotes. Tudo poderia ter sido diferente, e ele então teria se tornado alguém diferente. Se Lip-lip não tivesse existido, ele teria passado a sua infância com os outros filhotes e crescido mais como um cachorro, gostando mais dos cachorros. Se Castor Cinza tivesse possuído a inclinação do afeto e do amor, ele poderia ter sondado as profundezas da natureza de Caninos Brancos e trazido para a superfície toda sorte de qualidades bondosas. Mas nada disso acontecera. A argila de Caninos Brancos fora moldada até ele tornar-se o que era, soturno e solitário, sem afetos e feroz, o inimigo de toda a sua espécie.
Jack London, in Caninos Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário