My
dear,
Chove
a cântaros. Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. Mãos
e pés frios sob controle. Notícias imprecisas, fique sabendo. É de
propósito? Medo de dar bandeira? Ouça muito Roberto: quase chamei
você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras que você
pediu. O dia foi laminha. Célia disse: o que importa é a carreira,
não a vida. Contradição difícil. A vida parece laminha e a
carreira é um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro é verdade
mas vem junto drama de desocupado. Agora fiquei ocupadíssima, ao
sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua (signo de
gêmeos).
Depois
que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção
esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava.
E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de
bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a
distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde
na lagoa no meio do bosque)?
Penso
pouco no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto:
dele, do pau dele, da política dele, do violão dele. Mas não tenho
mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o balanço
acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu, não liga
mais, estuda, milita e amor na sua Martinica de longos peitos e
dentes perfilados, tanta perfeição. Atraída pelo português de
camiseta que atendeu no Departamento Financeiro. Era jacaré e tinha
bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada.
Só
hoje durante a visita de Cris é que me dei conta que batizei a
cachorra com o nome dela. Tive discreto repuxo de embaraço quando
gritei com Cris que me enlameava o tapete. Cris fugiu mas Cris não
percebeu (julgando-se talvez homenageada?). Gil por sua vez leu como
sempre nos meus lábios e eclatou de riso típico umidificante.
O
mesmo Gil jura que são de Shakespeare os versos “trepar é humano,
chupar divino” e desvia o olhar para o centro da mesa, depois de
diagnosticar silenciosamente minha paranoia.
Deu
discussão hoje com Mary. Segundo ela Altmann é cruel com a classe
média e isso é imperdoável. Me senti acusada e balbuciei uma bela
briga. Ao chegar em casa pesou a mão imperdoável na barriga. Mary
tem sempre razão.
Gil
diz que ela não se abre comigo porque sabe que minha inveja é maior
que meu amor. Ao telefone me conta da carreira e cacacá. Por Gil
porém sei dos desastres do casamento. Comigo ela não fala.
Ontem
fizemos um programa, os três. Nessas ocasiões o ciúme fica
saliente, rebola e diz gracinhas que nem eu mesma posso adiantar.
Ninguém sabe mas ele tem levezas de um fetinho. É maternal, põe
fraldas, enquanto o trio desanca seus caprichos. Resulta um show da
uva, brilhante microfone do ciúme! Há sempre uma sombra em meu
sorriso (Roberto). A melancólica sou eu, insisto, embora você
desaprove sempre, sempre. Aproveito para pedir outra opinião. Gil
diz que sou uma leoa-marinha e eu exijo segredo absoluto (está
ficando convencido): historinhas ruminadas na calçada são afago
para o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei fazer calçada o
dia todo, e bem. Do contrário... Não fui totalmente sincera.
Recebi
outro cartão-postal de Londres. Agora dizia apenas “What are men
for?”. Sem data. Não consigo dizer não. Você consegue? E a
somatização, melhorou?
Insisto
no sumário que você abandonou ao deus-dará: 1. bondade que
humilha; 2. necessidade versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades;
5. what are men for.
Sonho
da noite passada: consultório escuro em obras; homens trabalhando;
camas e tijolos; decidi esperar no banheiro, onde havia um patinete,
anúncios de pudim, um sutiã preto e outros trastes. De quem seria o
sutiã? Ele dormiu aqui? Já nos vimos antes, eu saindo e você
entrando? Deitados lado a lado, o braço dele me tocando. Chega para
lá (sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada. Sem ele
não fico em casa. Há três dias que pareço morar onde estou (ecos
de Ângela). Aquele ar de desatenção neurológica me deixa louca.
Saímos para o corredor. Você vai ter um filhinho, ouviu?
Passei
a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as ideias
mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é a
parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou
fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do
texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O
prazer é anterior, boboca. Epígrafe masculina do livro (há outra,
feminina, mais contida), do Joaquim: “É a crônica de uma tara
gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá,
imagética, verbalização e exposição de fantasias eróticas.
Contém
a denúncia da vocação genital dos legumes, a inteligência das
mocinhas em flor, a liberdade dos jogos na cama, a simpatia pelos
tarados, o gosto pela vida e a suma poética de Carlos Galhardo”.
Meu pescoço está melhor, obrigada.
Quanto
à história das mães, acenando umas para as outras com lençóis
brancos, enquanto a filha afinal não presta assim tanta atenção,
só posso dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F. penso não
percebe, mas como sempre mente muito. Mente muito! Só eu sei. Vende
a alma ao diabo negociando a inteligência alerta pela juventude
eterna. Você diria? No pacto é pura Rita Hayworth com N. na
cenografia, encaixilhando espelhos. Brincam de casinha na hora vaga.
Na festa que deram Gil alto discursava que casamento é a solução,
mestre da saúde. Ironias do destino. Seguiu-se é claro ressaca
sonsa e ciúmes rápidos de Rita.
Não
estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para
desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada
verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê
toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.
Na
mesa do almoço Gil quis saber a verdadeira identidade de um
Jean-Luc, e diante de todos fez clima de conluio, julgando adivinhar
tudo. Na saída me fez jurar sobre o perfil dos sepulcros santos —
Gil está sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois você ainda
diz que eu não respondo. Ainda aguardando. Beijo. Júlia
P.S.
1 — Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor. Tenho
paixão mas também tenho pudor!
P.S.
2 — Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos,
inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder
um certo ar perfeito — repara a paginação gelomatic, agora que
sou artista plástica.
Ana
Cristina Cesar, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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