terça-feira, 12 de maio de 2020

A mentalidade da conquista

A ciência moderna floresceu graças aos impérios europeus. Tem, certamente, uma grande dívida para com tradições científicas antigas, como as da Grécia clássica, da China, da Índia e do Islã, mas sua característica singular só começou a tomar forma no início da era moderna, de mãos dadas com a expansão imperial da Espanha, Portugal, Grã-Bretanha, França, Rússia e Holanda. Durante o início do período moderno, chineses, indianos, muçulmanos, polinésios e indígenas americanos continuaram a fazer importantes contribuições à Revolução Científica. As ideias de economistas muçulmanos foram estudadas por Adam Smith e Karl Marx, tratamentos usados pela primeira vez por indígenas americanos foram parar em textos médicos britânicos e dados extraídos de informantes polinésios revolucionaram a antropologia ocidental. Mas até meados do século XX as pessoas que reuniram essas várias descobertas científicas, criando disciplinas científicas, eram as elites governantes e intelectuais dos impérios globais europeus. O Extremo Oriente e o mundo islâmico produziram mentes tão inteligentes e curiosas quanto as da Europa. No entanto, entre 1500 e 1950 eles não produziram nada que chegasse perto da física newtoniana ou da biologia darwiniana.
Isso não significa que os europeus têm um gene inigualável para a ciência, ou que dominarão para sempre o estudo da física e da biologia. Assim como o islamismo começou como um monopólio árabe, mas posteriormente foi adotado por turcos e persas, a ciência moderna também começou como uma especialidade europeia, mas hoje está se tornando uma iniciativa multiétnica.
O que forjou o vínculo histórico entre a ciência moderna e o imperialismo europeu? A tecnologia foi um fator importante nos séculos XIX e XX, mas no início da era moderna sua importância era limitada. O fator fundamental foi que o botânico à procura de plantas e o oficial da marinha à procura de colônias tinham uma mentalidade similar. Ambos, cientista e conquistador, começaram admitindo sua ignorância – ambos disseram: “Eu não sei o que existe lá”. Ambos se sentiram compelidos a sair e fazer novas descobertas. E ambos esperaram que o novo conhecimento assim adquirido os tornasse senhores do mundo.
O imperialismo europeu foi totalmente diferente de todos os outros projetos imperiais na história. Antes disso, os que buscavam construir um império tendiam a presumir que já entendiam o mundo. A conquista só utilizava e disseminava sua visão do mundo. Os árabes, para citar um exemplo, não conquistaram o Egito, a Espanha ou a Índia a fim de descobrir algo que não soubessem. Os romanos, mongóis e astecas conquistaram vorazmente novas terras em busca de poder e riqueza – não de conhecimento. Já os imperialistas europeus partiam para terras distantes na esperança de obter novos conhecimentos junto com novos territórios.
James Cook não foi o primeiro explorador a pensar dessa maneira. Os viajantes portugueses e espanhóis dos séculos XV e XVI já pensavam assim. O príncipe Henrique, o Navegador, e Vasco da Gama exploraram a costa da África e, ao fazê-lo, assumiram o controle de ilhas e portos. Cristóvão Colombo “descobriu” a América e imediatamente reivindicou para os reis da Espanha a soberania sobre as novas terras. Fernando de Magalhães conseguiu dar a volta ao mundo e, ao mesmo tempo, assentou as bases para a conquista espanhola das Filipinas.
Com o passar do tempo, a conquista de conhecimento e a conquista de território se tornaram cada vez mais interligadas. Nos séculos XVIII e XIX, praticamente toda expedição militar importante que partia da Europa rumo a terras distantes levava a bordo cientistas incumbidos não de lutar, e sim de fazer descobertas científicas. Quando Napoleão invadiu o Egito em 1798, levou consigo 165 estudiosos. Entre outras coisas, eles fundaram uma disciplina totalmente nova, a egiptologia, e fizeram importantes contribuições para o estudo de religião, linguística e botânica.
Em 1831, a Marinha Real enviou o navio HMS Beagle para mapear a costa da América do Sul, das Ilhas Malvinas e das Ilhas Galápagos. A marinha precisava desse conhecimento para fortalecer o jugo imperial sobre a América do Sul. O capitão do navio, que era um cientista amador, decidiu incluir um geólogo na expedição para estudar formações geológicas que poderiam encontrar no caminho. Depois que vários geólogos profissionais recusaram seu convite, o capitão ofereceu o posto a um jovem de 22 anos formado em Cambridge, Charles Darwin. Darwin havia estudado para ser pastor anglicano, mas estava muito mais interessado em geologia e ciências naturais do que na Bíblia. Darwin agarrou a oportunidade, e o resto é história. Durante a viagem, o capitão passou o tempo desenhando mapas militares, enquanto Darwin coletou os dados empíricos e formulou as ideias que se tornariam a teoria da evolução. Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterrissaram na superfície da Lua. Nos meses que antecederam sua expedição, os astronautas da Apollo 11 treinaram em um deserto remoto similar ao da Lua, no oeste dos Estados Unidos. A área é o lar de várias comunidades indígenas, e existe uma história – ou lenda – descrevendo um encontro entre os astronautas e um dos habitantes locais.
Um dia, enquanto estavam treinando, os astronautas se depararam com um velho índio. O homem lhes perguntou o que eles estavam fazendo lá. Eles responderam que eram parte de uma expedição de pesquisa que em breve viajaria para explorar a Lua. Quando o velho escutou isso, ficou em silêncio por alguns instantes e então perguntou aos astronautas se eles poderiam lhe fazer um favor.
O que você quer? – eles perguntaram.
Bem – disse o velho –, as pessoas da minha tribo acreditam que a Lua é habitada por espíritos sagrados. Eu estava pensando se vocês poderiam transmitir a eles uma mensagem importante do meu povo.
Qual é a mensagem? – perguntaram os astronautas.
O homem proferiu algo em sua língua tribal e então pediu que os astronautas repetissem de novo e de novo, até memorizarem corretamente.
O que significa? – os astronautas perguntaram.
Ah, não posso lhes dizer. É um segredo que só a nossa tribo e os espíritos da Lua podem saber.
Quando voltaram à base, os astronautas procuraram e procuraram até que encontraram alguém que sabia falar a língua tribal e lhe pediram para traduzir a mensagem secreta. Quando repetiram o que haviam memorizado, o tradutor começou a gargalhar. Quando se acalmou, os astronautas perguntaram o que significava. O homem explicou que a frase que eles memorizaram com tanto cuidado queria dizer: “Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras”.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: Uma Breve História da Humanidade

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