quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A deprimente vida dos ratos de laboratório

Depois de termos nos familiarizado com a mente — e com o fato de sabermos tão pouco sobre ela —, podemos retornar à questão de se outros animais têm mentes. Alguns animais, como os cães, certamente passam por uma versão modificada do Teste de Turing. Quando tentamos determinar se uma entidade é consciente, o que comumente estamos buscando não é uma aptidão para a matemática ou uma boa memória, e sim a capacidade de criar relações emocionais conosco. Pessoas desenvolvem às vezes ligações emocionais com fetiches, como armas, carros e até roupa íntima, mas essas ligações são unilaterais e nunca evoluem para um relacionamento. O fato de que os cães podem ser parceiros em relações emocionais com os humanos convence a maioria dos donos de cães de que eles não são autômatos desprovidos de mentes.
No entanto, isso não satisfaz os céticos, que assinalam que emoções são algoritmos e que nenhum algoritmo conhecido requer uma consciência para poder funcionar. Sempre que um animal apresenta um comportamento emocional complexo, não podemos provar que ele não é o resultado de um algoritmo muito sofisticado, mas não consciente. Esse argumento também pode ser aplicado a humanos. Tudo o que um humano faz — inclusive reportando-se a um estado alegadamente consciente — pode, em teoria, ser obra de algoritmos não conscientes.
Apesar disso, no caso dos humanos, assumimos que, quando alguém afirma que está consciente, podemos aceitar sua palavra como verdadeira. Com base nessa mínima suposição, hoje somos capazes de identificar as assinaturas cerebrais do estado de consciência, o que posteriormente poderá ser usado de maneira sistemática para diferenciar nos humanos estados de consciência dos de não consciência. Mas como os cérebros de animais compartilham muitas características com os cérebros dos humanos, à medida que se aprofunda nossa compreensão das assinaturas de consciência, podemos usá-las igualmente para determinar se e quando outros animais são conscientes. Se um cérebro canino mostrar que apresenta padrões similares aos de um cérebro humano consciente, isso nos forneceria forte evidência de que os cães são conscientes.
Testes iniciais em macacos e camundongos indicam que pelo menos os cérebros de macacos e de camundongos realmente apresentam as assinaturas da consciência. Contudo, dadas as diferenças entre cérebros animais e cérebros humanos, e uma vez que ainda estamos longe de decifrar todos os segredos da consciência, desenvolver os testes decisivos capazes de satisfazer os céticos pode levar décadas. Enquanto isso, quem deve arcar com o ônus da prova? Devemos considerar os cães máquinas desprovidas de mente até prova em contrário, ou tratá-los como seres conscientes enquanto ninguém apresenta uma evidência contrária convincente?
Em 7 de julho de 2012, especialistas de ponta em neurobiologia e ciências cognitivas reuniram-se na Universidade de Cambridge e assinaram a Declaração de Cambridge sobre a Consciência, segundo a qual “uma evidência convergente indica que animais não humanos possuem os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso dessa evidência indica que os humanos não são os únicos que possuem os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, além de muitas outras criaturas, inclusive polvos, possuem tais substratos neurológicos”. 9 Não se chega a afirmar que todos os animais são conscientes porque ainda não dispomos de uma prova irrefutável. Mas ela reverte o ônus da prova para os que pensam de outra maneira.
Em maio de 2015, em resposta à mudança na direção dos ventos na comunidade científica, a Nova Zelândia tornou-se o primeiro país no mundo a reconhecer legalmente os animais como seres sencientes, quando seu Parlamento aprovou o Animal Welfare Amendment Act — a Emenda para o Bem-Estar dos Animais. Essa emenda estipula que é obrigatório reconhecer os animais como sencientes e, portanto, cuidar adequadamente de seu bem-estar em contextos como o da pecuária. Num país com mais carneiros e ovelhas do que humanos (a proporção é de 30 milhões para 4,5 milhões), trata-se de uma declaração muito significativa. Depois disso, a província canadense de Quebec aprovou um ato semelhante, e outros países provavelmente também o farão.
Muitas corporações de negócios reconhecem animais como seres sencientes, embora, paradoxalmente, isso com frequência exponha os animais a testes de laboratório bem desagradáveis. Por exemplo, as companhias farmacêuticas usam rotineiramente ratos como objetos experimentais no desenvolvimento de antidepressivos. De acordo com um protocolo amplamente utilizado, pegam-se cem ratos (em nome da fidedignidade estatística) e põe-se cada um deles em um tubo de vidro cheio d’água. Os ratos esforçam-se incessantemente para escalar a parede do tubo, sem sucesso. Depois de quinze minutos, a maioria para de se movimentar. Eles apenas flutuam no tubo, apáticos a seu entorno.
Pegam-se então outros cem ratos, que são jogados nos tubos, mas são puxados para fora depois de catorze minutos, pouco antes de estarem prestes a entrar em desespero. Na sequência, eles são secos, alimentados e lhes é concedido um breve descanso — e então são jogados no tubo novamente. Na segunda vez, a maioria dos ratos luta durante vinte minutos antes de entregar os pontos. Por que esses seis minutos a mais? Porque a memória do sucesso obtido desencadeia a liberação de algumas substâncias bioquímicas no cérebro que lhes dá esperança e adia o advento do desespero. Se pudéssemos isolar essas substâncias bioquímicas, poderíamos usá-las como antidepressivos para humanos. Mas são muitas as substâncias que inundam o cérebro dos ratos em qualquer dado momento. Como apontar a correta?
Para isso, usam-se mais grupos de ratos que nunca participaram do teste antes. Injeta-se em cada grupo determinada substância química que se suspeita seja o esperado antidepressivo. Jogam-se os ratos na água. Se aqueles que foram injetados com a substância A lutarem por apenas quinze minutos antes de ficarem deprimidos, pode-se riscar A da lista. Se ratos que foram injetados com a substância B continuarem esperneando durante vinte minutos, pode-se relatar ao executivo da indústria farmacêutica e aos acionistas que se acertou na loteria.
Os céticos poderiam objetar que toda essa descrição humaniza desnecessariamente os ratos. Esses animais não experimentam esperança ou desespero. Às vezes eles se mexem com rapidez, às vezes ficam parados, mas nunca sentem nada. São movidos por algoritmos não conscientes. Mas, se for isso, qual o sentido de todos esses experimentos? As drogas psiquiátricas destinam-se a induzir mudanças não só no comportamento humano, mas, sobretudo, no sentimento humano. Quando pacientes vão a um psiquiatra e dizem “Doutor, me dê alguma coisa que me tire dessa depressão”, eles não estão pedindo um estimulante que os faça mecanicamente ativos enquanto ainda se sentem tristes. Eles querem sentir-se animados. Realizar experimentos com ratos pode ajudar as corporações a desenvolver uma pílula mágica somente com base no pressuposto de que o comportamento dos ratos é acompanhado de emoções semelhantes às dos humanos. E, de fato, esse pressuposto é comum nos laboratórios psiquiátricos.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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