terça-feira, 14 de maio de 2019

Quarta razão — A impossibilidade de um retrato de nação

Moçambique e Brasil são países que encerram dentro de si contrastes profundos. Não se trata apenas de distanciamento de níveis de riqueza, mas de culturas, de universos, de discursos tão diversos que não parecem caber numa mesma identidade nacional. A escrita de João Guimarães Rosa é uma espécie de viagem em cima dessa linha de costura. O que ele busca na escrita: um retrato do Brasil? Não. O que ele oferece é um modo de inventar o Brasil.
Com Mário de Andrade, João Guimarães Rosa é um dos fundadores da identidade territorial e cultural da nação brasileira. Ao contrariar uma certa ideia de modernização, Rosa acabou criando os pilares de uma outra modernidade estilística no Brasil. Ele fez isso numa altura em que a literatura brasileira estava prisioneira de modelos provincianos, demasiado próxima do padrão de literatura portuguesa, espanhola e francesa. De uma similar prisão ansiávamos, também nós, por nos libertar.
O que Rosa instaura é o narrador como mediador de mundos. Riobaldo é uma espécie de contrabandista entre a cultura urbana e letrada e a cultura sertaneja e oral. Esse é o desafio que enfrenta não apenas o Brasil, mas também Moçambique. Mais que um ponto de charneira necessita-se hoje de um médium, alguém que usa poderes que não provêm da ciência nem da técnica para colocar esses universos em conexão. Necessita-se da ligação com aquilo que João Guimarães Rosa chama de “os do lado de lá”. Esse lado está dentro de cada um de nós. Esse lado de lá é, numa palavra, a oralidade.
Mia Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa

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