terça-feira, 30 de abril de 2019

O dogma científico

A ciência moderna não tem dogma. Mas tem um conjunto de métodos de pesquisa em comum, todos baseados em coletar observações empíricas – aquelas que podemos observar com pelo menos um dos nossos sentidos – e reuni-las com a ajuda de ferramentas matemáticas.
Ao longo da história, as pessoas coletaram observações empíricas, mas a importância dessas observações geralmente era limitada. Por que desperdiçar recursos preciosos fazendo novas observações quando já temos todas as respostas de que necessitamos?
Mas à medida que a pessoas modernas passaram a admitir que não conheciam as respostas para algumas perguntas muito importantes, acharam necessário procurar conhecimentos completamente novos. Em consequência, o método de pesquisa predominante na atualidade parte do princípio de que o conhecimento antigo é insuficiente. Em vez de estudar as antigas tradições, hoje se dá ênfase a novas observações e experimentos. Quando as observações atuais se chocam com tradições passadas, damos precedência às observações. É claro, físicos examinando o espectro de galáxias distantes, arqueólogos analisando as descobertas de uma cidade da Era do Bronze e cientistas políticos estudando o surgimento do capitalismo não desconsideram a tradição. Eles começam estudando o que os sábios do passado disseram e escreveram. Mas, desde seu primeiro ano de faculdade, os aspirantes a físicos, arqueólogos e cientistas políticos aprendem que é sua missão ir além do que Einstein, Heinrich Schliemann e Max Weber conheceram. Meras observações, no entanto, não são conhecimento. Para entender o universo, precisamos relacionar as observações em teorias abrangentes. As tradições anteriores geralmente formulavam suas teorias na forma de histórias. A ciência moderna usa a matemática.
Há muito poucas equações, gráficos e cálculos na Bíblia, no Corão, nos Vedas ou nos clássicos confucionistas. Quando as mitologias e escrituras tradicionais estabeleciam leis gerais, estas eram apresentadas em forma narrativa, em vez de matemática. Desse modo, um princípio fundamental da religião maniqueísta afirmava que o mundo é um campo de batalha entre o bem e o mal. Uma força maligna criou a matéria, ao passo que uma força benigna criou o espírito. Os humanos estão presos entre essas duas forças e devem escolher o bem em detrimento do mal. Contudo, o profeta Mani não fez qualquer tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito dividida pela massa de seu corpo”.
Isso é exatamente o que os cientistas tentam alcançar. Em 1687, Isaac Newton publicou os Princípios matemáticos da filosofia natural, provavelmente o livro mais importante da história moderna. Newton apresentou uma teoria geral do movimento e da mudança. A grandeza da teoria de Newton foi sua capacidade de explicar e prever os movimentos de todos os corpos do universo, de maçãs despencando a estrelas cadentes, usando três leis matemáticas muito simples:



Daí em diante, qualquer pessoa que quisesse entender e prever o movimento de uma bala de canhão ou de um planeta simplesmente tinha de medir a massa, a direção e a aceleração do objeto e as forças atuando sobre ele. Ao inserir esses números na equação de Newton, podia prever a posição futura do objeto. Funcionava como mágica. Somente por volta do fim do século XIX os cientistas se depararam com algumas observações que não se enquadravam muito bem nas leis de Newton, e estas levaram às revoluções seguintes na física – a teoria da relatividade e a mecânica quântica.
Newton mostrou que o livro da natureza está escrito na linguagem da matemática. Alguns capítulos (por exemplo) se reduzem a uma equação simples; mas estudiosos que tentaram reduzir a biologia, a economia e a psicologia a equações newtonianas precisas descobriram que esses campos têm um nível de complexidade que torna inútil tal aspiração. Mas isso não significa que eles desistiram da matemática. Ao longo dos últimos 200 anos, desenvolveu-se um novo ramo da matemática para lidar com os aspectos mais complexos da realidade: a estatística.
Em 1744, dois clérigos presbiterianos na Escócia, Alexander Webster e Robert Wallace, decidiram criar um fundo de seguro de vida que pagaria pensões a viúvas e órfãos de clérigos falecidos. Eles propuseram que cada um dos pastores de sua igreja dedicasse uma pequena parte de sua renda para o fundo, que investiria o dinheiro. Se um pastor morresse, sua esposa receberia dividendos sobre os lucros do fundo. Isso lhe permitiria viver confortavelmente pelo resto da vida. Porém, para determinar quanto os pastores tinham de pagar a fim de que o fundo tivesse dinheiro suficiente para honrar suas obrigações, Webster e Wallace precisavam ser capazes de prever quantos pastores morreriam a cada ano, quantas viúvas e órfãos eles deixariam e quantos anos as viúvas viveriam a mais do que os maridos.
Observe o que os dois clérigos não fizeram. Eles não rezaram para que Deus lhes revelasse a resposta. Nem procuraram a resposta nas Escrituras Sagradas ou nas obras de teólogos antigos. Tampouco entraram em uma discussão filosófica abstrata. Sendo escoceses, eram sujeitos práticos. Então, contataram um professor de matemática da Universidade de Edimburgo, Colin Maclaurin. Os três reuniram dados sobre a idade em que as pessoas morriam e usaram esses dados para calcular quantos pastores provavelmente morreriam em determinado ano.
Seu trabalho se baseou em vários avanços recentes no campo da estatística e da probabilidade. Um desses avanços foi a Lei dos Grandes Números, de Jacob Bernoulli. Bernoulli havia codificado o princípio de que, embora fosse difícil prever com certeza um acontecimento específico, como a morte de uma pessoa em particular, era possível prever com grande precisão o resultado médio de muitos acontecimentos similares. Isto é, embora Maclaurin não pudesse usar a matemática para prever se Webster e Wallace morreriam no ano seguinte, ele podia, com dados suficientes, dizer a Webster e Wallace quantos pastores presbiterianos na Escócia quase certamente morreriam no ano seguinte. Por sorte, eles já contavam com os dados que poderiam usar. Tábuas atuariais publicadas 50 anos antes por Edmond Halley mostraram-se especialmente úteis. Halley havia analisado registros de 1.238 nascimentos e 1.174 mortes, obtidos da cidade de Breslávia, na Alemanha. As tábuas de Halley permitiram constatar, por exemplo, que uma pessoa de 20 anos de idade tinha uma chance em 100 de morrer em determinado ano, mas uma pessoa de 50 anos de idade tinha uma chance em 39.
Processando esses números, Webster e Wallace concluíram que, em média, haveria 930 pastores presbiterianos escoceses vivendo em um dado momento, e uma média de 27 pastores morria por ano, 18 dos quais deixariam viúvas. Cinco dos que não deixariam viúvas deixariam filhos órfãos, e dois dos que deixariam viúvas deixariam também filhos de casamentos anteriores que ainda não haviam completado 16 anos de idade. Posteriormente, eles calcularam quanto tempo deveria se passar até a viúva morrer ou se casar novamente (em ambos os casos, o pagamento da pensão cessaria). Com esses números, Webster e Wallace puderam determinar quanto dinheiro os pastores que aderissem ao fundo teriam de pagar para garantir o futuro de seus entes queridos. Contribuindo com 2 libras, 12 xelins e 2 pence por ano, um pastor podia garantir que a esposa viúva receberia pelo menos 10 libras por ano – uma soma considerável naqueles dias. Se achasse que isso não era suficiente, podia escolher pagar mais, até o limite de 6 libras, 11 xelins e 3 pence por ano – o que garantiria à viúva a soma ainda mais atraente de 25 libras por ano.
De acordo com seus cálculos, no ano 1765 o Fundo de Pensão para as Viúvas e os Filhos dos Pastores da Igreja da Escócia teria um capital totalizando 58.348 libras. Seus cálculos se mostraram incrivelmente precisos. Quando esse ano chegou, o capital do Fundo era 58.347 libras – apenas uma libra esterlina a menos que o previsto! Isso era ainda melhor do que as profecias de Habacuque, Jeremias ou são João. Hoje, o fundo de Webster e Wallace, conhecido simplesmente como Scottish Widows, é uma das maiores empresas de seguros e pensões do mundo. Com ativos no valor de 100 bilhões de libras, oferece garantias não só a viúvas escocesas, mas a qualquer um disposto a comprar suas apólices.
Cálculos de probabilidade como os usados pelos dois pastores escoceses se tornaram a base não só da ciência atuarial, que é fundamental para o negócio de seguros e pensões, como também da ciência da demografia (fundada por outro clérigo, o anglicano Thomas Malthus). A demografia, por sua vez, foi o pilar sobre o qual Charles Darwin (que quase se tornou pastor anglicano) construiu sua teoria da evolução. Embora não existam equações capazes de prever que tipo de organismo evoluirá sob certas condições específicas, os geneticistas usam cálculos para determinar a probabilidade de uma mutação específica se disseminar em uma população dada. Modelos probabilísticos similares se tornaram centrais para a economia, a sociologia, a psicologia, a ciência política e as outras ciências sociais e naturais. Até mesmo a física acabou por complementar as equações clássicas de Newton com as nuvens de probabilidade da mecânica quântica.
Basta observar a história da educação para perceber a que ponto esse processo nos levou. Durante a maior parte da história, a matemática era um campo hermético que até mesmo as pessoas instruídas raras vezes estudavam seriamente. Na Europa medieval, a lógica, a gramática e a retórica formavam o núcleo educacional, ao passo que o ensino de matemática quase nunca ia além da simples aritmética e geometria. Ninguém estudava estatística. A monarca incontestável de todas as ciências era a teologia.
Hoje, poucos estudam retórica; a lógica está restrita aos departamentos de filosofia, e a teologia, aos seminários. Mas cada vez mais estudantes são motivados – ou forçados – a estudar matemática. Há um movimento irresistível rumo às ciências exatas – definidas como “exatas” por usarem ferramentas matemáticas. Até mesmo áreas de estudo que tradicionalmente faziam parte das humanidades, como o estudo da linguagem humana (linguística) e da psique humana (psicologia), se apoiam cada vez mais na matemática e tentam se apresentar como ciências exatas. Os cursos de estatística hoje são parte dos requisitos básicos não só na física e na biologia como também na psicologia, na sociologia, na economia e na ciência política.
No programa de psicologia da minha própria universidade, o primeiro curso obrigatório no currículo é “Introdução à Estatística e à Metodologia em Pesquisa Psicológica”. Estudantes de psicologia do segundo ano cursam “Métodos Estatísticos em Pesquisa Psicológica”. Confúcio, Buda, Jesus e Maomé teriam ficado perplexos se lhes contássemos que, para entender a mente humana e a cura de suas doenças, primeiro é preciso estudar estatística.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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