sábado, 2 de março de 2019

Schmidt no balé

A leitura de Os melhores poemas de Augusto Frederico Schmidt (Global Editora, seleção de Ivan Marques) me lança de volta a uma imagem que não me abandona. Ao contrário dos que acreditam que a literatura é um espelho, que reflete e reproduz ponto a ponto as coisas do mundo, prefiro pensar que ela é uma lanterna, antiga e inconstante, que, só muito precariamente, derrama um facho de luz sobre o real.
Quanto mais aposto nessa distinção entre o espelho e a lanterna, mais me convenço de que, sem essa lâmpada, talvez não se possa fazer poesia. Leio os poemas de Schmidt e eles, mais uma vez, me levam a encarar a escuridão que cerca os poetas. Define-se, em geral, Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) como um “poeta católico”. Tal simplificação – a troca de uma poética por uma crença – se comete também quando se fala de Adélia Prado. Prefiro pensar como o próprio Schmidt, que definiu a poesia, ao contrário, como “a imagem de um desespero sem forma”. Essa ideia reforça a hipótese da lanterna, turva e imprecisa, que estilhaça a arrogância do espelho.
A claridade explosiva dos dias mata o poema. Isso não significa dizer que a poesia é um universo fechado ou indevassável. Schmidt tinha uma fórmula discreta: “A poesia é simples”. Certa piedade cristã, assim como a noção de que a poesia se abriga no natural e no espontâneo, aí, de fato, se esconde. Simplicidade, sim, mas qual simplicidade? Nunca é demais interrogar as palavras, revirá-las como roupas que já cansamos de usar, mas que, um dia, expostas no varal, revelam um avesso que nos surpreende.
A defesa da simplicidade como condição da poesia abre a “Mensagem aos poetas novos”, que Schmidt publicou em 1950. Ele a apresenta aos jovens como o início de tudo. “A poesia é simples”, o poeta simplesmente diz. Poucas linhas depois, contudo, amplia e corrói essa definição: a poesia é simples porque é “livre e indiferente”. Aqui, Schmidt luta contra os “poetas que sofrem” – aqueles que, dizia Pessoa, fingem a dor que deveras sentem. Afirma: “Simples é o mar, e não soturno/ e curvo como o enfermo poeta”. Mas não é uma saúde fácil a que ele afirma. Tanto que, para chegar a ela, o poeta precisa atravessar – e livrar-se – do desespero. A poesia é o foco precário que o poeta sustenta enquanto faz sua travessia. Nas trevas, agarra-se à luz vacilante de sua lanterna.
Não há piedade, mas indiferença. Não há verdade, mas invenção. Ao fazer a defesa da simplicidade, o severo Augusto Frederico Schmidt lutava contra os restos do Simbolismo que ainda o cercavam e afirmava, ao mesmo tempo, uma visão singular da modernidade. Não a modernidade feérica e rebelde dos modernistas de 1922, cheia de cores, palavras fortes e de holofotes; mas outra, livre “dos tumultos e inúteis agonias”. Sutil feição moderna, cujos traços provinham, Schmidt acreditava, dos restos da infância.
Infância, simplicidade: ainda parece tudo muito idealizado. Melhor recorrer, aqui, ao “Poema de Natal”, de 1958, no qual Schmidt toma o exemplo (novo espelho traiçoeiro) do poeta italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970), com quem ele conviveu nos anos 1930, quando o italiano passou uma temporada em São Paulo. Schmidt observa a figura impassível de Ungaretti não na USP, mas em sua casa da Via Remuria, 3, Roma. “O rosto difícil de florir um sorriso” – um homem trancado em si. A tristeza converte seu semblante em uma máscara, disfarce que, repetindo Pessoa, se transforma no próprio rosto. Não é, porém, uma tristeza refém das circunstâncias, não é um sentimento irremediável; mas os últimos sinais de um esforço que o reconduz “à cidade da infância”.
Novo alerta: não se empolguem, aqui, os defensores da “autenticidade”. Nem Schmidt e tampouco Ungaretti celebravam a infância como um tesouro mágico de “emoções verdadeiras” ou de quaisquer outras relíquias sagradas. Carregar no rosto as sobras da infância é, diz Schmidt, um sinal de quem “possui a sua própria dor a queimar-lhe o peito e a acompanhá-lo”. Não é só possuir a própria dor; mais que possuir, é iluminá-la com o facho sutil de uma lanterna. Qual lanterna? A poesia.
Mais uma vez, os realistas (que deveriam reler com mais atenção as cartas de Flaubert) se apressam a dizer: “Schmidt, poeta da luz”. Sim, de certa forma, como negar? Mas de que luz? Até hoje vivemos com o rosto chamuscado pelos flashes do iluminismo. No mundo contemporâneo, de brilho, transparência e imagens, uma luz feroz nos rói a face. Ela nos empurra e apequena. Schmidt, em vez disso, fala de outra luz, bem mais fraca: “a luz doce da poesia”, como ele a define em um dos poemas de “Fonte invisível”, de 1949.
Ela contrasta com a “sombra da manhã” – em que tudo é claro e luminoso, em que todas as coisas estão em seu devido lugar, mas onde tudo é absolutamente igual. Revela Schmidt que só nas entrelinhas e nas nuances, só nas sombras, um homem chega a ter “o perdão de ser quem é”. Em outras palavras: chega a ser quem é. Existe melhor definição para a poesia senão esse encontro definitivo que um homem tem com sua voz?
Em outro poema, Schmidt compara a luz da poesia à da lua, das estrelas e do céu aceso. Em vez de esfaquear e definir, ela faz uma leve carícia no rosto do observador. Tudo muito breve, quase sem rastos. Quase nada podemos ver. Tudo muito imperfeito e – agora, sim, uso a palavra com mais convicção – “simples”. Por isso, em um poema decisivo como “Ars poética”, ele reclama dos que procuram conceituar a poesia para, com isso, velá-la (matá-la) com a perfeição. Afasta-se, ainda, dos que delimitam “com sinais agudos as fronteiras do domínio poético”. Na poesia, o único gesto claro é o silêncio.
Nenhuma nitidez, nada muito definido. Já Bandeira nos falava da “inutilidade dos esforços” que caracteriza a arte poética. Poesia: o fazer (o movimento) como seu próprio objeto. A indiferença à limpidez das avaliações e dos resultados. Define Schmidt: a poesia “é o grande engano que dança”. O poeta é um dançarino que ronda a realidade. E que, com seus movimentos frágeis, desenha algumas palavras.
José Castello, in Sábados inquietos

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