A
leitura de Os melhores poemas de Augusto Frederico Schmidt
(Global Editora, seleção de Ivan Marques) me lança de volta a uma
imagem que não me abandona. Ao contrário dos que acreditam que a
literatura é um espelho, que reflete e reproduz ponto a ponto as
coisas do mundo, prefiro pensar que ela é uma lanterna, antiga e
inconstante, que, só muito precariamente, derrama um facho de luz
sobre o real.
Quanto
mais aposto nessa distinção entre o espelho e a lanterna, mais me
convenço de que, sem essa lâmpada, talvez não se possa fazer
poesia. Leio os poemas de Schmidt e eles, mais uma vez, me levam a
encarar a escuridão que cerca os poetas. Define-se, em geral,
Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) como um “poeta católico”.
Tal simplificação – a troca de uma poética por uma crença –
se comete também quando se fala de Adélia Prado. Prefiro pensar
como o próprio Schmidt, que definiu a poesia, ao contrário, como “a
imagem de um desespero sem forma”. Essa ideia reforça a hipótese
da lanterna, turva e imprecisa, que estilhaça a arrogância do
espelho.
A
claridade explosiva dos dias mata o poema. Isso não significa dizer
que a poesia é um universo fechado ou indevassável. Schmidt tinha
uma fórmula discreta: “A poesia é simples”. Certa piedade
cristã, assim como a noção de que a poesia se abriga no natural e
no espontâneo, aí, de fato, se esconde. Simplicidade, sim, mas qual
simplicidade? Nunca é demais interrogar as palavras, revirá-las
como roupas que já cansamos de usar, mas que, um dia, expostas no
varal, revelam um avesso que nos surpreende.
A
defesa da simplicidade como condição da poesia abre a “Mensagem
aos poetas novos”, que Schmidt publicou em 1950. Ele a apresenta
aos jovens como o início de tudo. “A poesia é simples”, o poeta
simplesmente diz. Poucas linhas depois, contudo, amplia e corrói
essa definição: a poesia é simples porque é “livre e
indiferente”. Aqui, Schmidt luta contra os “poetas que sofrem”
– aqueles que, dizia Pessoa, fingem a dor que deveras sentem.
Afirma: “Simples é o mar, e não soturno/ e curvo como o enfermo
poeta”. Mas não é uma saúde fácil a que ele afirma. Tanto que,
para chegar a ela, o poeta precisa atravessar – e livrar-se – do
desespero. A poesia é o foco precário que o poeta sustenta enquanto
faz sua travessia. Nas trevas, agarra-se à luz vacilante de sua
lanterna.
Não
há piedade, mas indiferença. Não há verdade, mas invenção. Ao
fazer a defesa da simplicidade, o severo Augusto Frederico Schmidt
lutava contra os restos do Simbolismo que ainda o cercavam e
afirmava, ao mesmo tempo, uma visão singular da modernidade. Não a
modernidade feérica e rebelde dos modernistas de 1922, cheia de
cores, palavras fortes e de holofotes; mas outra, livre “dos
tumultos e inúteis agonias”. Sutil feição moderna, cujos traços
provinham, Schmidt acreditava, dos restos da infância.
Infância,
simplicidade: ainda parece tudo muito idealizado. Melhor recorrer,
aqui, ao “Poema de Natal”, de 1958, no qual Schmidt toma o
exemplo (novo espelho traiçoeiro) do poeta italiano Giuseppe
Ungaretti (1888-1970), com quem ele conviveu nos anos 1930, quando o
italiano passou uma temporada em São Paulo. Schmidt observa a figura
impassível de Ungaretti não na USP, mas em sua casa da Via Remuria,
3, Roma. “O rosto difícil de florir um sorriso” – um homem
trancado em si. A tristeza converte seu semblante em uma máscara,
disfarce que, repetindo Pessoa, se transforma no próprio rosto. Não
é, porém, uma tristeza refém das circunstâncias, não é um
sentimento irremediável; mas os últimos sinais de um esforço que o
reconduz “à cidade da infância”.
Novo
alerta: não se empolguem, aqui, os defensores da “autenticidade”.
Nem Schmidt e tampouco Ungaretti celebravam a infância como um
tesouro mágico de “emoções verdadeiras” ou de quaisquer outras
relíquias sagradas. Carregar no rosto as sobras da infância é, diz
Schmidt, um sinal de quem “possui a sua própria dor a queimar-lhe
o peito e a acompanhá-lo”. Não é só possuir a própria dor;
mais que possuir, é iluminá-la com o facho sutil de uma lanterna.
Qual lanterna? A poesia.
Mais
uma vez, os realistas (que deveriam reler com mais atenção as
cartas de Flaubert) se apressam a dizer: “Schmidt, poeta da luz”.
Sim, de certa forma, como negar? Mas de que luz? Até hoje vivemos
com o rosto chamuscado pelos flashes do iluminismo. No mundo
contemporâneo, de brilho, transparência e imagens, uma luz feroz
nos rói a face. Ela nos empurra e apequena. Schmidt, em vez disso,
fala de outra luz, bem mais fraca: “a luz doce da poesia”, como
ele a define em um dos poemas de “Fonte invisível”, de 1949.
Ela
contrasta com a “sombra da manhã” – em que tudo é claro e
luminoso, em que todas as coisas estão em seu devido lugar, mas onde
tudo é absolutamente igual. Revela Schmidt que só nas entrelinhas e
nas nuances, só nas sombras, um homem chega a ter “o perdão de
ser quem é”. Em outras palavras: chega a ser quem é. Existe
melhor definição para a poesia senão esse encontro definitivo que
um homem tem com sua voz?
Em
outro poema, Schmidt compara a luz da poesia à da lua, das estrelas
e do céu aceso. Em vez de esfaquear e definir, ela faz uma leve
carícia no rosto do observador. Tudo muito breve, quase sem rastos.
Quase nada podemos ver. Tudo muito imperfeito e – agora, sim, uso a
palavra com mais convicção – “simples”. Por isso, em um poema
decisivo como “Ars poética”, ele reclama dos que procuram
conceituar a poesia para, com isso, velá-la (matá-la) com a
perfeição. Afasta-se, ainda, dos que delimitam “com sinais agudos
as fronteiras do domínio poético”. Na poesia, o único gesto
claro é o silêncio.
Nenhuma
nitidez, nada muito definido. Já Bandeira nos falava da “inutilidade
dos esforços” que caracteriza a arte poética. Poesia: o fazer (o
movimento) como seu próprio objeto. A indiferença à limpidez das
avaliações e dos resultados. Define Schmidt: a poesia “é o
grande engano que dança”. O poeta é um dançarino que ronda a
realidade. E que, com seus movimentos frágeis, desenha algumas
palavras.
José
Castello, in Sábados inquietos
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