segunda-feira, 4 de março de 2019

O projeto Gilgamesh

De todos os problemas visivelmente insolúveis da humanidade, um continuou sendo o mais intrigante, interessante e importante: o problema da morte propriamente dita. Antes do fim da era moderna, a maioria das religiões e ideologias aceitava que a morte era nosso destino inevitável. Além disso, a maioria dos credos fazia da morte a principal fonte de significado em vida. Tente imaginar o islamismo, o cristianismo ou a antiga religião egípcia em um mundo sem morte. Esses credos ensinavam às pessoas que elas deviam acertar as contas com a morte e apostar suas fichas na vida após a morte, em vez de procurar superá-la e viver para sempre aqui na Terra. As mentes mais brilhantes estavam ocupadas dando significado à morte, e não tentando fugir dela.
Esse é o tema do mito mais antigo a chegar até nós – o mito de Gilgamesh, da antiga Suméria. Seu herói é o homem mais forte e mais capaz em todo o mundo, o rei Gilgamesh de Uruk, que poderia vencer qualquer batalha. Um dia, o melhor amigo de Gilgamesh, Enkidu, morreu. Gilgamesh se sentou ao lado do corpo e o observou por muitos dias, até que viu um verme saindo da narina do amigo. Nesse momento, Gilgamesh foi tomado por um grande horror e decidiu que jamais morreria. De algum modo, ele encontraria uma forma de derrotar a morte. Então Gilgamesh empreendeu uma jornada até o fim do universo, matando leões, enfrentando homens-escorpiões e encontrando seu caminho até o submundo. Lá, ele destruiu as misteriosas “coisas de pedra” de Urshanabi, o balseiro do rio dos mortos, e encontrou Utnapishtim, o último sobrevivente da inundação primordial. Mas Gilgamesh fracassou em sua busca. Ele voltou para casa de mãos vazias, mortal como sempre, mas com um novo conhecimento. Gilgamesh aprendeu que, quando criaram o homem, os deuses estipularam que a morte é seu destino inevitável e que o homem precisa aprender a conviver com isso.
Os discípulos do progresso não partilham dessa atitude derrotista. Para os homens da ciência, a morte não é um destino inevitável, mas meramente um problema técnico. As pessoas morrem não porque os deuses o decretaram, mas em decorrência de uma série de falhas técnicas: um ataque do coração, um câncer, uma infecção. E cada problema técnico tem uma solução técnica. Se o coração palpita, pode ser estimulado por um marca-passo ou substituído por um coração novo. Se o câncer se espalha, pode ser destruído com medicamentos ou radiação. Se bactérias se proliferam, podem ser controladas com antibióticos. É verdade, hoje não somos capazes de resolver todos os problemas técnicos. Mas estamos trabalhando para isso. Nossas mentes mais brilhantes não estão desperdiçando tempo tentando dar significado à morte. Em vez disso, estão ocupadas investigando os sistemas fisiológico, hormonal e genético responsáveis pelas doenças e pela velhice. Estão desenvolvendo novos medicamentos, tratamentos revolucionários e órgãos artificiais que prolongarão nossa vida e, talvez, um dia vencerão a própria Morte.
Até recentemente, você não teria escutado cientistas, ou qualquer outra pessoa, falando de maneira tão direta. “Derrotar a morte?! Que absurdo! Só estamos tentando curar o câncer, a tuberculose e a doença de Alzheimer”, insistiam. As pessoas evitavam a questão da morte porque o objetivo parecia demasiado ilusório. Por que criar expectativas pouco razoáveis? Agora, no entanto, estamos em um ponto em que podemos ser francos a esse respeito. O principal projeto da Revolução Científica é dar à humanidade a vida eterna.

Mesmo que derrotar a morte pareça um objetivo distante, já alcançamos coisas que eram inconcebíveis há alguns séculos. Em 1199, o rei Ricardo Coração de Leão foi atingido por uma flecha em seu ombro esquerdo. Hoje diríamos que sofreu um ferimento sem importância. Mas, em 1199, na ausência de antibióticos e métodos de esterilização eficazes, essa pequena ferida se infectou e a gangrena se instalou. No século XII, a única maneira de impedir que a gangrena se instalasse era amputar o membro infectado, algo impossível quando a infecção era em um ombro. A gangrena se espalhou pelo corpo do rei e ninguém pôde ajudá-lo. Ele morreu agonizando duas semanas depois.
Mesmo no século XIX, os melhores médicos ainda não sabiam como evitar a infecção e impedir a putrefação de tecidos. Nos hospitais dos campos de batalha, os médicos rotineiramente amputavam mãos e pernas de soldados que eram vítimas até mesmo de ferimentos menores, temendo a gangrena. Essas amputações, bem como todos os outros procedimentos médicos (como a extração de um dente), eram feitas sem anestesia. A primeira anestesia – éter, clorofórmio e morfina – só passou a ser usada regularmente na medicina ocidental em meados do século XIX. Antes do advento do clorofórmio, era preciso que quatro soldados segurassem um companheiro ferido enquanto o médico amputava o membro atingido. Na manhã após a batalha de Waterloo (1815), viam-se montes de mãos e pernas amputados ao lado dos hospitais nos campos de batalha. Naqueles dias, carpinteiros e açougueiros que se alistavam no exército muitas vezes eram enviados para servir no batalhão médico, porque a cirurgia requeria pouco mais do que saber usar serras e facas.
Nos dois séculos que se passaram desde Waterloo, as coisas mudaram completamente. Comprimidos, injeções e operações sofisticadas nos salvam de uma enxurrada de doenças e ferimentos que um dia significaram uma inevitável sentença de morte. Também nos protegem de inúmeras dores e males cotidianos que os indivíduos pré-modernos simplesmente aceitavam como parte da vida. A expectativa de vida média saltou de 25-40 anos para 67 no mundo inteiro e para cerca de 80 anos nos países desenvolvidos.
A morte sofreu seus piores golpes na arena da mortalidade infantil. Até o século XX, entre um quarto e um terço das crianças das sociedades agrícolas jamais chegavam à vida adulta. A maioria delas sucumbia a doenças infantis como difteria, rubéola e varíola. Na Inglaterra do século XVII, 150 de cada mil recém-nascidos morriam no primeiro ano de vida, e um terço de todas as crianças morriam antes de completar 15 anos. Hoje, apenas cinco de cada mil bebês ingleses morrem no primeiro ano de vida, e apenas sete de cada mil morrem antes de completar 15 anos.
Podemos entender melhor o impacto desses números deixando de lado as estatísticas e contando algumas histórias. Um bom exemplo é a família do rei Eduardo I da Inglaterra (1237-1307) e sua esposa, a rainha Leonor (1241-1290). Seus filhos desfrutavam das melhores condições e viviam no ambiente mais próspero possível da Europa medieval. Viviam em palácios, comiam o quanto quisessem, tinham inúmeras roupas quentes, lareiras bem abastecidas, a água mais pura disponível, um exército de servos e os melhores médicos. As fontes mencionam 16 filhos que a rainha Leonor deu à luz entre 1255 e 1284:

1. uma filha sem nome, nascida em 1255, morreu durante o nascimento;
2. uma filha, Catarina, morreu com 1 ou 3 anos;
3. uma filha, Joana, morreu com 6 meses;
4. um filho, João, morreu com 5 anos;
5. um filho, Henrique, morreu com 6 anos;
6. uma filha, Leonor, morreu com 29 anos;
7. uma filha anônima morreu com 5 meses;
8. uma filha, Joana, morreu com 35 anos;
9. um filho, Afonso, morreu com 10 anos;
10. uma filha, Margarida, morreu com 58 anos;
11. uma filha, Berengária, morreu com 2 anos;
12. uma filha sem nome morreu logo após o nascimento;
13. uma filha, Maria, morreu com 53 anos;
14. um filho sem nome morreu logo após o nascimento;
15. uma filha, Isabel, morreu com 34 anos;
16. um filho, Eduardo.

O mais jovem, Eduardo, foi o primeiro dos garotos a sobreviver aos anos perigosos da infância e, quando seu pai morreu, ele subiu ao trono inglês como rei Eduardo II. Em outras palavras, Leonor fez 16 tentativas até cumprir a missão mais fundamental de uma rainha inglesa: proporcionar um herdeiro ao marido. A mãe de Eduardo II deve ter sido uma mulher de paciência e fortaleza excepcionais. Já não se pode dizer o mesmo da mulher que Eduardo escolheu como esposa, Isabela da França. Ela mandou assassiná-lo quando ele tinha 43 anos.
Até onde sabemos, Leonor e Eduardo I eram um casal saudável e não transmitiram nenhuma doença hereditária fatal a seus filhos. No entanto, 10 dos 16 – 62% – morreram durante a infância. Apenas 6 conseguiram viver além dos 11 anos, e apenas três – meros 18% – viveram mais de 40. Além desses nascimentos, Leonor provavelmente teve uma série de gestações que terminaram em aborto. Em média, Eduardo e Leonor perderam um filho a cada três anos, dez filhos um após outro. Nos dias de hoje, é quase impossível para um pai conceber tal perda.
Quanto tempo tardará o Projeto Gilgamesh? Cem anos? Quinhentos anos? Mil anos? Quando lembramos o pouco que sabíamos sobre o corpo humano em 1900 e quanto conhecimento adquirimos em um único século, há motivo para otimismo. Engenheiros genéticos recentemente prolongaram em seis vezes a expectativa de vida média dos vermes Caenorhabditis elegans. Por que não fazer o mesmo pelo Homo sapiens? Especialistas em nanotecnologia estão desenvolvendo um sistema imunológico biônico composto de milhões de nanorobôs, que habitariam nossos corpos, abririam vasos sanguíneos obstruídos, combateriam vírus e bactérias, eliminariam células cancerosas e até mesmo reverteriam processos de envelhecimento. Alguns pesquisadores sérios sugerem que, por volta de 2050, alguns humanos terão se tornados amortais (não imortais, porque ainda poderiam morrer em decorrência de algum acidente, mas amortais, o que significaria que, na ausência de um trauma fatal, suas vidas poderiam ser indefinidamente extendidas).
Independentemente de o Projeto Gilgamesh vir a se concretizar ou não, de uma perspectiva histórica é fascinante ver que a maioria das religiões e ideologias do fim da era moderna já tiraram a morte e a vida após a morte da equação. Até o fim do século XVIII, a maioria das religiões concebia a morte e o que vem depois dela como fundamentais para o significado da vida. Começando no século XVIII, religiões e ideologias como o liberalismo, o socialismo e o feminismo perderam todo o interesse na vida após a morte. O que, exatamente, acontece com um comunista depois que morre? O que acontece com um capitalista? O que acontece com uma feminista? Não faz sentido procurar a resposta nos escritos de Marx, Adam Smith ou Simone de Beauvoir. A única ideologia moderna que ainda reserva um papel central à morte é o nacionalismo. Em seus momentos mais poéticos e desesperados, o nacionalismo promete que os que morrerem pela nação viverão para sempre na memória coletiva. Mas essa promessa é tão difusa que nem mesmo os mais nacionalistas sabem o que pensar dela.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

7 comentários:

  1. Ótimo texto, bastante didático, esclarecimento sobre uma vida mais longa com auxílio da ciência.


    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Fernandez. A ciência também é uma arte.

    ResponderExcluir
  3. Esse escritor e fenomenal livro divino

    ResponderExcluir
  4. Sem dúvida um livro pideroso. Um significado à História do Ser Humano.

    ResponderExcluir
  5. qual a pagina? quero fazer um trabalho academico?

    ResponderExcluir
  6. Show de bola o projeto e o livro Sapiens.

    ResponderExcluir