A
notícia da Rádio falava na imprecisa morte de Acubar Aboobacar,
encontrado em jeito de total falecimento no vasto cadeirão de sua
sala. E assim: pelo aspecto do malogrado suspeita-se que a causa
da morte tenha sido mordedura de cobra. Contudo, não foram
encontrados nem o animal nem sinais dos dentes no corpo do falecido.
A esposa disse à Rádio que Aboobacar vinha denotando um
comportamento estranho e lhe dirigia frequentes ameaças. Suspeitava,
sem fundamento, de infidelidade conjugal.
Segue-se
a composta versão dos factos e personagens, irrepetidamente sempre
outros como o rio em que ninguém se banha nenhuma vez.
Mintoninho
saiu de casa correndo por verdanias, escancarados capinzais. Ia
chamar o pai, Acubar Aboobacar. O menino não queria que sua mãe,
vendedeira no bazar, desencontrasse o marido ao regressar a casa. O
miúdo se cansara das brigas caseiras que, a cada bebedeira do pai,
sempre se recomplicavam.
Naquela
tarde, Mintoninho, correnteiro, esperava prevenir desgraça. Ao pisar
a estrada, porém, ele estacou. No chão se exibia, arrogante, uma
boina azul, dessas. Teria tombado dos carros das Nações Unidas?
Seria desses soldados que exercem a exclusiva profissão da Paz e que
dão ao mundo mais notícia que sossego? Por momentos, Mintoninho
hesitou: se poderia assenhorar do achado, já que ninguém ali
presenciava? Ficou com a boina rodando nos indecisos dedos, entre
devaneios de sinceros usos e abusos. Depois, optou: iria entregar o
chapéu, mais tarde, lá no quartel dos boinistas. Por agora, ele
apenas o arrumaria em casa.
E
voltou atrás para depositar a azulíssima boina, em pacífico
repouso, no armário da entrada. No seguinte, ele redesatou pernas
pela estrada. Mas nem precisou de chegar ao bar. O pai já vinha de
volta, cambalinhando no passeio, cervejeiro andante. Olhando aquela
figura, o menino sentiu saudade do pai que ele tinha sido antes da
guerra. Como se fora um órfão e aquele que ia achegando fosse um
mero padrasto, passageiro e passeante.
Os
dois, pai e filho, se saudaram em partilhados silêncios e caminharam
como se não houvesse casa que neste mundo lhes competisse. E foi
logo-logo ali na entrada: por cima do armário a boina azul prendeu
os espantos do homem.
— Quem
é isto?
Acubar
Aboobacar nem cabia nos universos. A vasta admiração dele sobrava,
descomposta, de todos seus nervos. O homem se inacreditava. Podia a
mulher, certificada esposa, ter escolhido outros sabores entre os
estrangeiros fardados, testemunhas dessa transição da desgraça da
guerra para a miséria da paz? Perguntar é vergonha, duvidar é
fraqueza. O caso exigia inadiáveis machices, espertezas e
concertezas. Sem a luz da dúvida, o ódio cresce melhor. À
beira-mágoa, a suspeita tomava a medida do facto. Mintoninho ainda
quis explicar ao pai os motivos da boina. Mas nem teve ocasião. O
pai deitou as ordens: o garoto que se retirasse, imediato como a
estrela-cadente. Fosse para a varanda que os ares estavam escasseando
naquele lugar.
Acubar
Aboobacar ficou sentado à espera da mulher, boina vinagrando-lhe no
colo. Aquele amargo do ciúme lhe crescia no todo corpo como um
fermento deixado em forno. Mas era como se lhe soubesse bem a visita
daquele outro eu, ele que, antes da guerra, jamais havia cuidado de
perder Sulima. O ciúme dá ao homem a sua feminina estatura?
E
Acubar, sentado e raso, esperava mais que a esposa a chegada de
terríveis presságios. A morte tem sempre onde cair em nós. Boina
no colo, ele se socorreu do sono. E assim dormindo lhe foram
divulgados os segredos. Lhe vieram imagens de uma cobra gorda,
trajada de humanas vestes. Envergava capulana, azulinha cor das
Nações e lenço na cabeça. Em lentos talentos, o bicho se chegou a
ele e lhe cocegou todo, com sua língua bífida. A cobra é bilingue
para mostrar que todo o animal esconde sempre outra criatura. E o
ofídio reptou por suas pernas, se enroscou na cintura e se
zaragatinhou pelo peito. Quando lhe chegou ao pescoço Acubar ouviu
os olhos dela: eram os de Sulima, sem falta nem acréscimo. Eram
olhos terrestres, poeirados, descalços. Nele se fixavam como o ópio
olha o pulmão. Então, a cobra falou-lhe:
— Será
assim, presos um em outro, será assim que vamos viver em diante.
Acubar
sentiu o ar exilar-se do peito. Encerrado como um parágrafo, ainda
pensou em gritar, chamar o socorro. Mas lhe veio a lembrança, em
reminisciência. O avesso da vida não é a morte mas uma outra
dimensão da existência. A serpente, diz-se, nasceu junto com a alma
humana. Sim, a cobra é feita de enganos tal igual a mulher. As
garras de uma estão na boca da outra. Sulima lhe estava ali
convidando para entrar dentro dele.
— Cada
homem tem suas paixões viscerando-lhe dentro. Eu entrarei em ti para
que não haja despedida, carne em carne.
Acubar
abriu a boca, mandibularmente. Fosse pelo apelo da serpente, fosse
pela asfixia que começava a lhe apertar. Despertou, transpirado,
transpálido. Ele sempre dizia: quando eu morrer há-de ser só para
dar saudade nos ausentes. E agora, ao sentir-se desfalecer chamou
pelo filho, o mais presente desses ausentes. Filho, estou a
começar a desviver. Sofro de um frio que me está vir de dentro.
Parece é um bicho lagarteando a minha barriga, malvoraçando-me os
sangues, nem sei se sonhei se é coisa que realmente me sucede.
Mintoninho fez atenção em lhe cobrir. O pai negou:
— Deixe.
Meu lençol é a cerveja.
Então,
o miúdo viu o pai transitando de derme para epiderme, lhe aparecendo
visíveis umas escamas verdes-esverdeadas. Parecia que outro ser,
monstriforme, roubava o desenho do seu velho. Mesmo a voz se
irreconhecia:
— Já
nem me tenho para a frente, filho. Foi a cobra que matou-me.
— A
cobra? Onde?
— Me
mordeu por dentro. Me entrou aqui.
O
menino, primeiro, acreditou ser fingimento de bebedeira. Mas, depois,
em face das novas aparências do pai ele se afligiu. Quis partir em
socorro. Mas o braço paterno lhe impediu.
— Deixa
filho: ferida da boca se cura com a própria saliva. E estou me
curando é da vida, dessa vida que não soube gostar como era devido.
Dizem
foi nesse instante que ele terminou, encolhido e tão miúdo que o
filho o tomou pela primeira vez num inteiro abraço. A mãe encontrou
os dois assim estatuados em lembrança. Estranho foi que ela, mal
entendeu a visão, em apressado gesto retirou a boina azul do colo do
marido. Depois, amarfanhou-a disfarçadamente em sua bolsa. Dizem.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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