sábado, 2 de março de 2019

O abraço da serpente

A notícia da Rádio falava na imprecisa morte de Acubar Aboobacar, encontrado em jeito de total falecimento no vasto cadeirão de sua sala. E assim: pelo aspecto do malogrado suspeita-se que a causa da morte tenha sido mordedura de cobra. Contudo, não foram encontrados nem o animal nem sinais dos dentes no corpo do falecido. A esposa disse à Rádio que Aboobacar vinha denotando um comportamento estranho e lhe dirigia frequentes ameaças. Suspeitava, sem fundamento, de infidelidade conjugal.
Segue-se a composta versão dos factos e personagens, irrepetidamente sempre outros como o rio em que ninguém se banha nenhuma vez.
Mintoninho saiu de casa correndo por verdanias, escancarados capinzais. Ia chamar o pai, Acubar Aboobacar. O menino não queria que sua mãe, vendedeira no bazar, desencontrasse o marido ao regressar a casa. O miúdo se cansara das brigas caseiras que, a cada bebedeira do pai, sempre se recomplicavam.
Naquela tarde, Mintoninho, correnteiro, esperava prevenir desgraça. Ao pisar a estrada, porém, ele estacou. No chão se exibia, arrogante, uma boina azul, dessas. Teria tombado dos carros das Nações Unidas? Seria desses soldados que exercem a exclusiva profissão da Paz e que dão ao mundo mais notícia que sossego? Por momentos, Mintoninho hesitou: se poderia assenhorar do achado, já que ninguém ali presenciava? Ficou com a boina rodando nos indecisos dedos, entre devaneios de sinceros usos e abusos. Depois, optou: iria entregar o chapéu, mais tarde, lá no quartel dos boinistas. Por agora, ele apenas o arrumaria em casa.
E voltou atrás para depositar a azulíssima boina, em pacífico repouso, no armário da entrada. No seguinte, ele redesatou pernas pela estrada. Mas nem precisou de chegar ao bar. O pai já vinha de volta, cambalinhando no passeio, cervejeiro andante. Olhando aquela figura, o menino sentiu saudade do pai que ele tinha sido antes da guerra. Como se fora um órfão e aquele que ia achegando fosse um mero padrasto, passageiro e passeante.
Os dois, pai e filho, se saudaram em partilhados silêncios e caminharam como se não houvesse casa que neste mundo lhes competisse. E foi logo-logo ali na entrada: por cima do armário a boina azul prendeu os espantos do homem.
Quem é isto?
Acubar Aboobacar nem cabia nos universos. A vasta admiração dele sobrava, descomposta, de todos seus nervos. O homem se inacreditava. Podia a mulher, certificada esposa, ter escolhido outros sabores entre os estrangeiros fardados, testemunhas dessa transição da desgraça da guerra para a miséria da paz? Perguntar é vergonha, duvidar é fraqueza. O caso exigia inadiáveis machices, espertezas e concertezas. Sem a luz da dúvida, o ódio cresce melhor. À beira-mágoa, a suspeita tomava a medida do facto. Mintoninho ainda quis explicar ao pai os motivos da boina. Mas nem teve ocasião. O pai deitou as ordens: o garoto que se retirasse, imediato como a estrela-cadente. Fosse para a varanda que os ares estavam escasseando naquele lugar.
Acubar Aboobacar ficou sentado à espera da mulher, boina vinagrando-lhe no colo. Aquele amargo do ciúme lhe crescia no todo corpo como um fermento deixado em forno. Mas era como se lhe soubesse bem a visita daquele outro eu, ele que, antes da guerra, jamais havia cuidado de perder Sulima. O ciúme dá ao homem a sua feminina estatura?
E Acubar, sentado e raso, esperava mais que a esposa a chegada de terríveis presságios. A morte tem sempre onde cair em nós. Boina no colo, ele se socorreu do sono. E assim dormindo lhe foram divulgados os segredos. Lhe vieram imagens de uma cobra gorda, trajada de humanas vestes. Envergava capulana, azulinha cor das Nações e lenço na cabeça. Em lentos talentos, o bicho se chegou a ele e lhe cocegou todo, com sua língua bífida. A cobra é bilingue para mostrar que todo o animal esconde sempre outra criatura. E o ofídio reptou por suas pernas, se enroscou na cintura e se zaragatinhou pelo peito. Quando lhe chegou ao pescoço Acubar ouviu os olhos dela: eram os de Sulima, sem falta nem acréscimo. Eram olhos terrestres, poeirados, descalços. Nele se fixavam como o ópio olha o pulmão. Então, a cobra falou-lhe:
Será assim, presos um em outro, será assim que vamos viver em diante.
Acubar sentiu o ar exilar-se do peito. Encerrado como um parágrafo, ainda pensou em gritar, chamar o socorro. Mas lhe veio a lembrança, em reminisciência. O avesso da vida não é a morte mas uma outra dimensão da existência. A serpente, diz-se, nasceu junto com a alma humana. Sim, a cobra é feita de enganos tal igual a mulher. As garras de uma estão na boca da outra. Sulima lhe estava ali convidando para entrar dentro dele.
Cada homem tem suas paixões viscerando-lhe dentro. Eu entrarei em ti para que não haja despedida, carne em carne.
Acubar abriu a boca, mandibularmente. Fosse pelo apelo da serpente, fosse pela asfixia que começava a lhe apertar. Despertou, transpirado, transpálido. Ele sempre dizia: quando eu morrer há-de ser só para dar saudade nos ausentes. E agora, ao sentir-se desfalecer chamou pelo filho, o mais presente desses ausentes. Filho, estou a começar a desviver. Sofro de um frio que me está vir de dentro. Parece é um bicho lagarteando a minha barriga, malvoraçando-me os sangues, nem sei se sonhei se é coisa que realmente me sucede. Mintoninho fez atenção em lhe cobrir. O pai negou:
Deixe. Meu lençol é a cerveja.
Então, o miúdo viu o pai transitando de derme para epiderme, lhe aparecendo visíveis umas escamas verdes-esverdeadas. Parecia que outro ser, monstriforme, roubava o desenho do seu velho. Mesmo a voz se irreconhecia:
Já nem me tenho para a frente, filho. Foi a cobra que matou-me.
A cobra? Onde?
Me mordeu por dentro. Me entrou aqui.
O menino, primeiro, acreditou ser fingimento de bebedeira. Mas, depois, em face das novas aparências do pai ele se afligiu. Quis partir em socorro. Mas o braço paterno lhe impediu.
Deixa filho: ferida da boca se cura com a própria saliva. E estou me curando é da vida, dessa vida que não soube gostar como era devido.
Dizem foi nesse instante que ele terminou, encolhido e tão miúdo que o filho o tomou pela primeira vez num inteiro abraço. A mãe encontrou os dois assim estatuados em lembrança. Estranho foi que ela, mal entendeu a visão, em apressado gesto retirou a boina azul do colo do marido. Depois, amarfanhou-a disfarçadamente em sua bolsa. Dizem.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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