quinta-feira, 7 de março de 2019

No rio, além da curva

Cito do jornal a verdadeira notícia. Rezava assim: “Um hipopótamo invadiu e destruiu o mobiliário do Centro de Alfabetização e de Corte e Costura do bairro da Munhava, deixando perturbados os residentes do mais populoso bairro da capital de Sofala. [...] O guarda-noturno daquele centro disse que o animal não era um vulgar hipopótamo mas um exemplar muito estranho que arrombou a porta da escola, introduziu-se na sala de aulas e começou a destruir a mobília. [...] Circula entre a população o rumor de que o hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que perdeu a vida na zona de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar profecias: que a cidade ficará privada de chuvas e que graves doenças matarão muita gente. O fato coincide com o surto de epidemias que grassa naquela região urbana.” (Fim da citação.)
O jornal não versou o restante sucedido, após o desfecho. Acrescento aqui as versões dos que testemunharam em imperfeito juízo, gente versada em noturnas aparições. Felizmente, no atual mundo, não há fontes indignas de crédito.
Jordão Qualquer acordou sobressalteado: que barulhos lhe chegavam lá da escola? Ficou inesparado, abstenso. E se decidiu ficar, a ver as consequências de nada fazer. Mas a barulheira aumentava de volume. Na escola alguém desbotava a manta, em assanhos de zaragatunagem. Ladrões, seriam. Mas assim, naquele descaramento? Estariam a tirar medidas da sua coragem? Jordão puxou a arma e se aproximou da escola. Calcanhava-se, os pés a contradizer a marcha. O tamanho dos ruídos era coisa de afugentar o atrevido e acobardar o herói. O medo é um rio que se atravessa molhado.
Enquanto chegava mais perto Jordão apelava para reforços dos céus: que os xicuembos me segurem! A lua iluminava o caminho. O luar é bom mas não chega para tirar o espinho do pé. É assim que Jordão não pode autenticar o tudo que viu, as coisas que se seguiram e que lhe couberam mais nos olhos que no pensamento. Pois quando ele espreitou na janela viu o enorme bicho mastigando a máquina de costura. A enormeza de tal mamífero nunca lhe tinha sido vista. Não era um simples, desses. Se diria ser um hiperpótamo. O bichorão descobriu o milícia na moldura da janela. Fixou o homem com seus olhos ensonados, postos no sótão da testa. Depois, voltou a trincar a mobília. Prosseguia assim o piquenique do pícnico.
Pela cabeça de Jordão Qualquer passaram ideias, repentinas como pássaros. Como chegara ali aquele mpfuvo? Será que viera buscar sabedoria, aprender as escritas na ânsia de transitar de artiodáctilo para artiodactilógrafo? Ou se vinha inscrever no corte e costura? Não, não podia. Os dedos dele eram mais desengenhosos que asas da panela.
Naqueles segundos de hesitação, o miliciano lembrou o antigamente. Os caçadores do mpfuvo, no cumprimento da tradição, não partiam para o rio sem a bênção dos vapores mágicos. Marido e mulher se enfumavam daquele remédio para ganharem as boas sortes. Quando o caçador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia à aldeia avisar a esposa. A partir de então a mulher estava proibida de sair de casa. Acendia um lume e ficava a guardar a fogueirinha, sem comer e sem beber. Se ela desobedecesse, o seu marido sofreria as raivas do hipopótamo: a vítima virava caçador. Estar assim em clausura era coisa que também prendia a alma do bicho, impedindo o paquiderme de fugir do seu espaço fatal. O encerramento da mulher só terminava quando, vindas lá do rio, se escutavam as alegrias da consumação da caça. Na povoação todos se alegravam menos ele, Jordão Qualquer. As azagaias pareciam sempre ter ferido sua alma, lá na extensão do rio.
Mas agora, na janela da escolinha, não são as canções de júbilo mas a zanga do bicho que desperta o miliciano. De fato, no real presente, o hipopótamo se zanga com o cenário. Esquinas, portas, paredes: essa geografia ele desconhecia. E todo se arreganha, descortina os dentes. O miliciano definha de medo, só a arma lhe dá tamanho. Súbito, sem pensar, Jordão dispara. Os tiros saltam de rajada, certeiros. O nariz estando em frente da visão nunca estorva os olhos. O bicho estremurchou, em pleno tamanho, todo derrubado. O cor-de-rosa da barriga lhe dava uma aparência recém-nascida. No último instante, o moribundo dedicou ao caçador um olhar cheio de ternura. Como se houvesse não ressentimento mas gratidão. Seria amor à última vista?
Jordão se lembrou como, em criança, ele se enternecia dos mpfuvos, seus desajeitosos modos: tanta nuca para nenhum pescoço! Tão gordos que pareciam aptos para toda a dança. Porque aqueles desastrados bichos, tão pouco terrestres, lhe eram afinal irmãos: ambos não tinham lugar entre a gente. Jordão sonhava com os animais, pareciam canoas viradas do avesso na lenta superfície do rio. E ele, no sonho, montava-lhes os dorsos e subia o rio, além da curva. Esse era o devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o lugar para além de todos os lugares.
Porém agora, arma na mão, já lhe apetecia ser patrão de outras vidas, espezinhar as restantes criaturas, subitamente inferiores. Lhe subiu uma repentina raiva de, no passado, se ter sentido irmão daquelas animálias. A prepotência lhe vinha da espingarda ou a idade lhe matara a fantasia? Ou será que todo o adulto se adultera?
Alertados pelos tiros chegaram os muitos curiosos. Começaram os ditos e não ditos, choveram propérios e impropérios:
Mataste o mpfuvo? Não sabes quem era esse animal?
Vais ver o castigo que vamos ser dados por culpa sua...
Nem espere por amanhã. Você se vai arrepender desse seu dedo ter gatilhado.
E foram-se. Sentado no último degrau da escola, Jordão ficou calado com os seus botões. O pensamento lhe tinha emagrecido. Que poderia fazer? Acusavam-no de ter morto não um bicho mas um homem transfigurado. Como podia adivinhar sobre a verdade do hipopótamo, suas mensageiras funções? Mergulhou a cabeça entre os braços e assim ficou, mais circunflexo que o acento.
Foi quando um safaninho o despertou. Alguém lhe tocava as costas em jeito de lhe querer despertar. Olhou para trás: um arrepio lhe sacudiu o todo corpo. Era um pequenino mpfuvo, filhote da hipopótama. A cria: o que ela queria? Procurava o amparo, o abrigo de um maior ser. Chafurdou o sovaco do miliciano como se lhe quisesse despertar um imaginário seio. Depois, se juntou ao corpanzil da mãe e grunhiu para convocar sua atenção. Jordão olhou o bicharoquinho, aquela boca de não caber no focinho. Então, se levantou e laçou o órfão nos braços. O pequeno se agitava, aumentando-se no peso. Jordão tropeçava, quase deixando cair a carga, voltava a gaguejar os passos pela lama das margens.
Quando chegou ao rio, o hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou à familiar manada. Enquanto contemplava a cena, Jordão começou a insuportar o peso da arma. O ombro lhe adoecia da tal carga. Em gesto brusco, como se se despedisse de uma parte de si, lançou a espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz. Vinha de onde? Vinha do pequeno filhote que salvara:
Sobe naquela canoa virada.
Canoa? Aquele espesso volume acima da superfície? A voz repetia o convite:
Vem. Eu te mostro o rio além da curva.
Então, já tornado encantável, o desarmado Jordão subiu o dorso úmido do sonho e extravagou-se pelo avesso da corrente.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

Um comentário:

  1. Excelente! INCRÍVEL A EXPLANAÇÃO DE UM CONTEÚDO COM TAMANHA ABORDAGEM. Parabéns!!!

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