Cito
do jornal a verdadeira notícia. Rezava assim: “Um hipopótamo
invadiu e destruiu o mobiliário do Centro de Alfabetização e de
Corte e Costura do bairro da Munhava, deixando perturbados os
residentes do mais populoso bairro da capital de Sofala. [...] O
guarda-noturno daquele centro disse que o animal não era um vulgar
hipopótamo mas um exemplar muito estranho que arrombou a porta da
escola, introduziu-se na sala de aulas e começou a destruir a
mobília. [...] Circula entre a população o rumor de que o
hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que perdeu a vida na zona
de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar
profecias: que a cidade ficará privada de chuvas e que graves
doenças matarão muita gente. O fato coincide com o surto de
epidemias que grassa naquela região urbana.” (Fim da citação.)
O
jornal não versou o restante sucedido, após o desfecho. Acrescento
aqui as versões dos que testemunharam em imperfeito juízo, gente
versada em noturnas aparições. Felizmente, no atual mundo, não há
fontes indignas de crédito.
Jordão
Qualquer acordou sobressalteado: que barulhos lhe chegavam lá da
escola? Ficou inesparado, abstenso. E se decidiu ficar, a ver as
consequências de nada fazer. Mas a barulheira aumentava de volume.
Na escola alguém desbotava a manta, em assanhos de zaragatunagem.
Ladrões, seriam. Mas assim, naquele descaramento? Estariam a tirar
medidas da sua coragem? Jordão puxou a arma e se aproximou da
escola. Calcanhava-se, os pés a contradizer a marcha. O tamanho dos
ruídos era coisa de afugentar o atrevido e acobardar o herói. O
medo é um rio que se atravessa molhado.
Enquanto
chegava mais perto Jordão apelava para reforços dos céus: que
os xicuembos me segurem! A lua iluminava o caminho. O luar é bom
mas não chega para tirar o espinho do pé. É assim que Jordão não
pode autenticar o tudo que viu, as coisas que se seguiram e que lhe
couberam mais nos olhos que no pensamento. Pois quando ele espreitou
na janela viu o enorme bicho mastigando a máquina de costura. A
enormeza de tal mamífero nunca lhe tinha sido vista. Não era um
simples, desses. Se diria ser um hiperpótamo. O bichorão descobriu
o milícia na moldura da janela. Fixou o homem com seus olhos
ensonados, postos no sótão da testa. Depois, voltou a trincar a
mobília. Prosseguia assim o piquenique do pícnico.
Pela
cabeça de Jordão Qualquer passaram ideias, repentinas como
pássaros. Como chegara ali aquele mpfuvo? Será que viera buscar
sabedoria, aprender as escritas na ânsia de transitar de
artiodáctilo para artiodactilógrafo? Ou se vinha inscrever no corte
e costura? Não, não podia. Os dedos dele eram mais desengenhosos
que asas da panela.
Naqueles
segundos de hesitação, o miliciano lembrou o antigamente. Os
caçadores do mpfuvo, no cumprimento da tradição, não partiam para
o rio sem a bênção dos vapores mágicos. Marido e mulher se
enfumavam daquele remédio para ganharem as boas sortes. Quando o
caçador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia à
aldeia avisar a esposa. A partir de então a mulher estava proibida
de sair de casa. Acendia um lume e ficava a guardar a fogueirinha,
sem comer e sem beber. Se ela desobedecesse, o seu marido sofreria as
raivas do hipopótamo: a vítima virava caçador. Estar assim em
clausura era coisa que também prendia a alma do bicho, impedindo o
paquiderme de fugir do seu espaço fatal. O encerramento da mulher só
terminava quando, vindas lá do rio, se escutavam as alegrias da
consumação da caça. Na povoação todos se alegravam menos ele,
Jordão Qualquer. As azagaias pareciam sempre ter ferido sua alma, lá
na extensão do rio.
Mas
agora, na janela da escolinha, não são as canções de júbilo mas
a zanga do bicho que desperta o miliciano. De fato, no real presente,
o hipopótamo se zanga com o cenário. Esquinas, portas, paredes:
essa geografia ele desconhecia. E todo se arreganha, descortina os
dentes. O miliciano definha de medo, só a arma lhe dá tamanho.
Súbito, sem pensar, Jordão dispara. Os tiros saltam de rajada,
certeiros. O nariz estando em frente da visão nunca estorva os
olhos. O bicho estremurchou, em pleno tamanho, todo derrubado. O
cor-de-rosa da barriga lhe dava uma aparência recém-nascida. No
último instante, o moribundo dedicou ao caçador um olhar cheio de
ternura. Como se houvesse não ressentimento mas gratidão. Seria
amor à última vista?
Jordão
se lembrou como, em criança, ele se enternecia dos mpfuvos, seus
desajeitosos modos: tanta nuca para nenhum pescoço! Tão gordos que
pareciam aptos para toda a dança. Porque aqueles desastrados bichos,
tão pouco terrestres, lhe eram afinal irmãos: ambos não tinham
lugar entre a gente. Jordão sonhava com os animais, pareciam canoas
viradas do avesso na lenta superfície do rio. E ele, no sonho,
montava-lhes os dorsos e subia o rio, além da curva. Esse era o
devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o
lugar para além de todos os lugares.
Porém
agora, arma na mão, já lhe apetecia ser patrão de outras vidas,
espezinhar as restantes criaturas, subitamente inferiores. Lhe subiu
uma repentina raiva de, no passado, se ter sentido irmão daquelas
animálias. A prepotência lhe vinha da espingarda ou a idade lhe
matara a fantasia? Ou será que todo o adulto se adultera?
Alertados
pelos tiros chegaram os muitos curiosos. Começaram os ditos e não
ditos, choveram propérios e impropérios:
— Mataste
o mpfuvo? Não sabes quem era esse animal?
— Vais
ver o castigo que vamos ser dados por culpa sua...
— Nem
espere por amanhã. Você se vai arrepender desse seu dedo ter
gatilhado.
E
foram-se. Sentado no último degrau da escola, Jordão ficou calado
com os seus botões. O pensamento lhe tinha emagrecido. Que poderia
fazer? Acusavam-no de ter morto não um bicho mas um homem
transfigurado. Como podia adivinhar sobre a verdade do hipopótamo,
suas mensageiras funções? Mergulhou a cabeça entre os braços e
assim ficou, mais circunflexo que o acento.
Foi
quando um safaninho o despertou. Alguém lhe tocava as costas em
jeito de lhe querer despertar. Olhou para trás: um arrepio lhe
sacudiu o todo corpo. Era um pequenino mpfuvo, filhote da hipopótama.
A cria: o que ela queria? Procurava o amparo, o abrigo de um maior
ser. Chafurdou o sovaco do miliciano como se lhe quisesse despertar
um imaginário seio. Depois, se juntou ao corpanzil da mãe e grunhiu
para convocar sua atenção. Jordão olhou o bicharoquinho, aquela
boca de não caber no focinho. Então, se levantou e laçou o órfão
nos braços. O pequeno se agitava, aumentando-se no peso. Jordão
tropeçava, quase deixando cair a carga, voltava a gaguejar os passos
pela lama das margens.
Quando
chegou ao rio, o hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou
à familiar manada. Enquanto contemplava a cena, Jordão começou a
insuportar o peso da arma. O ombro lhe adoecia da tal carga. Em gesto
brusco, como se se despedisse de uma parte de si, lançou a
espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz. Vinha
de onde? Vinha do pequeno filhote que salvara:
— Sobe
naquela canoa virada.
Canoa?
Aquele espesso volume acima da superfície? A voz repetia o convite:
— Vem.
Eu te mostro o rio além da curva.
Então,
já tornado encantável, o desarmado Jordão subiu o dorso úmido do
sonho e extravagou-se pelo avesso da corrente.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
Excelente! INCRÍVEL A EXPLANAÇÃO DE UM CONTEÚDO COM TAMANHA ABORDAGEM. Parabéns!!!
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