quinta-feira, 7 de março de 2019

A mulher variável

Não sei o que tem essa mulher, que cada dia muda de cara — suspirou o sr. Ernesto. — Nem tenho mais certeza se sou casado com ela, pois suas feições são irreconhecíveis, e me invade a sensação de conviver com muitas mulheres diferentes.
Efetivamente, d. Ormélia adquirira a propriedade de ostentar a cada manhã um rosto bem diverso do seu, original. O resto do corpo continuava o mesmo.
O sr. Ernesto era virtuoso, e não queria trair a esposa, dentro de casa, com a própria esposa. Passou a olhá-la só do pescoço para baixo. E d. Ormélia mudando e nunca se repetindo.
A reputação do sr. Ernesto, não obstante sua linha moral inatacável, ficou abalada. O porteiro, o faxineiro, a empregada contavam que ele variava de mulheres no próprio lar, enquanto sua esposa sumira de vez.
Um dia, ele ficou acordado até o amanhecer, para descobrir o mistério das transformações. Viu que d. Ormélia tirava do armário uma cabeça nova e a trocava pela sua, que ela guardava no lugar da outra. O armário estava cheio de cabeças femininas.
O sr. Ernesto não quis acreditar no que via, e precipitou-se para arrancar do armário aquele arsenal de cabeças, mas d. Ormélia o deteve, sorrindo, com o dedo nos lábios, e sussurrou-lhe:
Souvent femme varie.
A partir daí o sr. Ernesto conheceu em casa os prazeres da variedade em combinação com a fidelidade, pouco se lhe dando a maledicência de ignorantes.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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