sexta-feira, 8 de março de 2019

A corda de macaco

No trabalho tumultuado de cortar e de cuidar da baleia, há muita correria de lá para cá em meio à tripulação. Ora os marinheiros são necessários em um lugar, ora são chamados em outro lugar. Ninguém pára em lugar algum; pois tudo tem de ser feito ao mesmo tempo e em toda parte. Acontece o mesmo com quem pretende descrever a cena. É preciso que voltemos um pouco. Foi mencionado que antes de começar a cortar o dorso da baleia se coloca um gancho no buraco original feito pelas pás dos imediatos. Mas como se pode fixar o gancho no buraco de um volume tão desajeitado e pesado? Ele foi colocado ali pelo meu dileto amigo Queequeg, cujo dever, como arpoador, era subir no dorso do monstro com o referido propósito. Mas em muitos casos as circunstâncias exigem que o arpoador permaneça na baleia até que a operação de despelar e de esfolar termine. A baleia, bom que se observe, está quase inteiramente submersa, salvo as partes nas quais se está trabalhando. Ali, portanto, a dez pés abaixo do nível do convés, o pobre arpoador mal se sustenta, parte sobre a baleia e parte na água, enquanto a enorme massa se revolve como um moinho abaixo dele. Nessa presente ocasião, Queequeg vestia roupas da Highland – uma saia e meias – nas quais aos meus olhos, pelo menos, parecia insolitamente elegante; e ninguém teve oportunidade melhor de observá-lo, como se verá em seguida.
Sendo o proeiro do selvagem, ou seja, o sujeito que manobrava o remo de proa em seu bote (o segundo da frente para trás), era meu prazeroso dever ajudá-lo em sua difícil escalada sobre o dorso da baleia morta. Você já viu meninos italianos tocadores de realejo segurando um macaquinho com um cordão comprido. Do mesmo jeito, do costado íngreme do navio, segurei Queequeg lá embaixo no mar, por meio do que, na pescaria, é tecnicamente chamado de corda de macaco, presa a um cinto de lona forte amarrado ao redor de sua cintura.
Era uma tarefa engraçada e perigosa para nós dois. Pois, antes de prosseguir, é preciso dizer que a corda de macaco estava presa às duas extremidades; presa ao cinto largo de lona de Queequeg e presa ao meu cinto estreito de couro. De modo que, para o bem ou para o mal, nós dois, naquele momento, estávamos unidos; e caso o coitado do Queequeg afundasse para não voltar mais, tanto o costume quanto a honra exigiam que, em vez de cortar a corda, ela deveria me arrastar junto a ele. Assim, portanto, uma alongada ligadura Siamesa nos unia. Queequeg era meu inseparável irmão gêmeo; nem podia eu, de forma alguma, livrar-me das perigosas responsabilidades que o liame de cânhamo envolvia.
De modo tão intenso e metafísico eu compreendia minha situação que, enquanto vigiava diligentemente seus movimentos, parecia perceber com clareza que minha própria individualidade havia se fundido com outra numa sociedade conjunta de ações: que meu livre-arbítrio recebera um golpe mortal; e que o erro ou azar do outro poderia me dragar, um inocente como eu, para um desastre ou morte imerecida. Consequentemente, vi que aquilo era uma espécie de interregno da Providência; pois sua justiça sempre presente jamais poderia ter sancionado uma injustiça tão flagrante. E seguindo adiante em meus pensamentos – enquanto às vezes o puxava de entre a baleia e o navio, que ameaçava esmagá-lo –, repito, seguindo adiante em meus pensamentos, percebi que essa minha situação era rigorosamente igual à de todo mortal que respira; apenas, na maioria dos casos, de um modo ou de outro ele tem essa ligação Siamesa com vários outros mortais. Se seu banqueiro falir, você quebra; se seu boticário por engano colocar veneno em suas pílulas, você morre. Claro, você pode achar que, com extremo cuidado, possivelmente se escapa dessas e de uma infinidade de outras fatalidades da vida. Mas, mesmo lidando tão cuidadosamente com a corda de macaco de Queequeg quanto possível, às vezes ele lhe dava trancos tão fortes que fiquei muito perto de cair para fora do barco. Tampouco podia esquecer que, fizesse o que fosse, eu tinha apenas o controle de uma das suas pontas.
Antes dei a entender que tinha de puxar com frequência o coitado do Queequeg de entre a baleia e o navio – onde vez por outra caía por conta do incessante balançar e rolar de ambos. Mas esse não era o único risco de ser esmagado a que estava exposto. Em nada amedrontados pelo massacre perpetrado à noite, os tubarões, refeitos em suas forças e ainda mais atraídos pelo sangue outrora encerrado que começava a fluir da carcaça – as furiosas criaturas se aglomeravam em torno da carcaça como abelhas em torno da colmeia.
E bem no centro desses tubarões estava Queequeg; que muitas vezes tentava afastá-los batendo com seus pés instáveis. Uma coisa incrível é que, se não atraído por uma presa como uma baleia morta, o de outro modo ecumenicamente carnívoro tubarão raras vezes ataca o homem.
Não obstante, pode-se bem acreditar que, uma vez que tivessem se posto ali com tanta voracidade, seria prudente ficar bem atento a eles. Portanto, além da corda de macaco, com a qual vez por outra eu puxava o pobre coitado para afastá-lo das imediações de uma goela que pudesse pertencer a um tubarão especialmente feroz – ele ainda dispunha de outra proteção. Suspensos junto ao costado numa das plataformas, Tashtego e Daggoo brandiam sem parar duas afiadas pás de baleia sobre sua cabeça, com as quais abatiam tantos tubarões quantos pudessem alcançar. Era certo que tal gesto viesse da benevolência e da abnegação desses homens. Eles queriam o bem de Queequeg, tenho de concordar; mas em sua ânsia precipitada de ajudá-lo, e porque Queequeg e os tubarões, por vezes, ficavam às vezes meio escondidos na água turvada de sangue, aquelas suas pás imprudentes pareciam mais propensas a amputar uma perna do que uma cauda. Mas ao coitado do Queequeg, imagino eu, arfando e entregando toda sua força àquele gancho de ferro imenso – ao coitado do Queequeg, imagino eu, só lhe restou rezar para seu Yojo e entregar a própria vida às mãos de seus deuses.
Bem, bem, meu dileto amigo e irmão gêmeo, pensei eu, enquanto trazia e então lentamente soltava a corda a cada onda do mar – o que importa, afinal de contas? Você não é a preciosa imagem de todos nós, homens, nesse mundo baleeiro? O oceano insondável no qual você está ofegante é a Vida; aqueles tubarões, seus inimigos; aquelas pás, seus amigos; e entre tubarões e pás você está em aperto e apuro, meu pobre rapaz.
Mas, coragem! Um estoque de alegria ainda te aguarda, Queequeg. Pois quando, de lábios azuis e olhos vermelhos de sangue, o exausto selvagem por fim subiu pelas correntes, ele inteiro pingando e tremendo sobre o costado; o camareiro avança, e com um olhar benevolente e consolador lhe oferece – O quê? Um conhaque quente? Não! Ó, deuses, não! Ele lhe oferece uma xícara de gengibre quente com água! “Gengibre? É cheiro de gengibre?”, perguntou Stubb, desconfiado, aproximando-se. “Sim, deve ser gengibre”, espiando a ainda intocada xícara. Depois, parado por uns instantes como se não acreditasse, seguiu calmamente na direção do camareiro estupefato dizendo-lhe pausadamente:
Gengibre? Gengibre? Quer ter a bondade de me explicar, senhor Dough-Boy, de que serve o gengibre? Gengibre! Seria o gengibre uma espécie de combustível que se usa, Dough-Boy, para acender o fogo desse canibal trêmulo? Gengibre! – Que diabos vem a ser o gengibre? – Carvão do mar? – Lenha? – Fósforos de Lúcifer? – Isca? – Pólvora? – O que vem a ser esse gengibre, repito, que você oferece a este nosso coitado Queequeg?”.
Há um movimento dissimulado da Sociedade da Abstinência nisso”, acrescentou de repente, aproximando-se de Starbuck, que acabava de chegar da proa. “O senhor poderia dar uma olhada nesta kannakin; por favor, sinta o cheiro.” Depois, observando a expressão do oficial, acrescentou: “Senhor Starbuck, o camareiro teve o desplante de oferecer calomelano com jalapa ao Queequeg, aqui, neste instante saído da baleia. Seria o camareiro um boticário, senhor? Posso saber se isso é um tipo de fole com o qual espera trazer de volta a respiração de um homem que quase se afogou?
Não creio que seja”, disse Starbuck, “é muito pouca coisa.”
Sim, sim, camareiro”, gritou Stubb, “vamos lhe ensinar como medicar um arpoador; nada desses seus remédios de boticário aqui; queres nos envenenar, não é? Tens apólices de seguro sobre nossas vidas e quer nos assassinar a todos para embolsar a grana, não é?”
Não fui eu!”, gritou Dough-Boy, “Foi a tia Charity que trouxe o gengibre a bordo; e ordenou-me que nunca desse álcool aos arpoadores, apenas um trago de gengibre – como ela mesma disse.”
Trago de gengibre! Seu tratante de gengibre! Toma isto! Corre para os armários e me traz algo melhor. Espero não estar errado, senhor Starbuck. São ordens do capitão – grog para o arpoador que vier da baleia.”
Basta”, respondeu Starbuck, “não batas nele outra vez, senão –”
Oras, eu nunca machuco quando bato, a não ser que seja uma baleia ou algo parecido; esse sujeito é uma fuinha. O que o senhor dizia?”
Apenas isto: desce com ele e pega o que tu queres.”
Quando Stubb voltou, veio com um frasco escuro numa mão, e uma espécie de caixa de chá na outra. O primeiro continha uma bebida forte e foi entregue a Queequeg; a segunda era o presente de tia Charity, que foi oferecido gratuitamente às ondas.
Herman Melville, in Moby Dick

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