segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Uma carta de Graciliano Ramos

Murilo Miranda:
Estou muito agradecido a você, aos membros do júri que me conferiu o prêmio Lima Barreto, aos colaboradores que, no último número da Revista, contribuíram para melhorar a situação dum romance que nasceu infeliz e arrasta nas prateleiras das livrarias uma existência bastante precária. Se, depois de tantos trabalhos e tantos artigos, ele continuar inédito, a culpa não terá sido dos generosos amigos que tencionaram publicá-lo: você, Aníbal Machado, Álvaro Moreyra, Mário de Andrade, Rubem Braga, Peregrino Junior, Tavares Bastos, Oswald de Andrade, Emil Farhat, Jorge Amado, Aydano do Couto Ferraz, Bezerra de Freitas, João da Silva Mello, José Bezerra Gomes, Paulo Saraiva, Portinari, Adami e o misterioso Nicolau Montezuma, o estranho Nicolau Montezuma, que não é Nicolau nem Montezuma e se manifestou há tempo, antes desta confusão em que vivemos.
Eu pretendia entender-me pessoalmente com os escritores e os pintores que olharam com otimismo excessivo o meu romance magro e a minha figura física, magra também. Não o fiz por dois motivos. Primeiramente achei que, tendo sido públicas as manifestações de simpatia, os agradecimentos deviam também ser impressos. Em segundo lugar pareceu-me redundância escrever dezoito cartas diferentes para dizer a mesma coisa. Eu encontraria nelas uma dupla dificuldade: não poderia aceitar a opinião dos meus amigos, sob pena de mostrar-me presunçoso; não me seria possível discordar deles abertamente, porque isto seria impertinência. O meu assunto ficaria muito reduzido.
É melhor fazer uma carta só, uma carta que explique em ligeiras palavras o procedimento de alguns homens que, nos tempos que correm, são verdadeiras preciosidades. Tenho a certeza de que todos aí estão de acordo comigo.
Confesso que, nesse negócio de concursos literários, não se leva em conta apenas o valor das obras que se apresentam. Talvez o público não ache razoável que seja assim, mas é. Há sempre fatos importantes que a plateia ignora e que influem no julgamento. O livro considerado bom por uma instituição é recusado por outra — e ficamos sabendo que a vitória de qualquer deles é duvidosa, que o júri que o escolheu teve o intuito, não de formular uma sentença, mas de oferecer ao escritor desconhecido um estímulo necessário.
A decisão refere-se menos ao trabalho executado que a trabalhos futuros. E como examinar coisas possíveis é mais difícil que analisar coisas realizadas, explica-se perfeitamente que haja divergência entre os pareceres de várias comissões.
Esse caso do prêmio Lima Barreto é diferente dos outros. Parece que não houve precisamente a intenção de julgar um romance nem de saber se o autor dele poderia fazer trabalho menos mau.
Estou convencido de que me quiseram dar uma compensação. Aníbal Machado, Álvaro Moreyra e Mário de Andrade desfizeram agravos e combateram moinhos reais. Eu estava sendo triturado por um desses moinhos. E a solidariedade de alguns intelectuais brasileiros teve para mim significação extraordinária.
Refletindo bem, penso que o prêmio não foi concedido a mim, mas a várias centenas de criaturas que se achavam como eu. Não se tratou de literatura, evidentemente. O que não quer dizer que, achando a decisão injusta, como acho, eu não a considere um ato de coragem indispensável num momento de covardia generalizada, ato imensamente útil, se não a mim, pelo menos a outros, que poderão respirar com alívio e dizer o que pensam.

Abraços de
GRACILIANO RAMOS
Rio, 11 de junho de 1937
Graciliano Ramos, in Garranchos

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