Em
agosto de 1967, tive de interromper as aulas de judô e as incursões
aos clubes noturnos de Manaus. Aliás, tudo foi interrompido quando o
médico da nossa família viu meus exames de sangue, diagnosticou
hepatite (tipo A), uma virose nada atípica no Amazonas, onde a água,
além de maltratada, era temível. Depois de tomar os medicamentos,
continuei deitado e enfermo, sem saber se as três cruzes do
hemograma eram uma falha laboratorial.
Prostrado
e pálido, lamentava as noites perdidas, as últimas noites da minha
juventude manauara, pois sabia que em dezembro daquele ano iria
embora da cidade. Estava perdido nesse devaneio, quando um homem de
branco entrou no quarto, acompanhado por um dos meus tios. Era alto
como um gigante, mas depois percebi — toda a cidade percebeu —
que Heitor Dourado não era apenas um homem alto, mas também um
grande médico. Desprezou o hemograma, apalpou meu corpo — as
axilas, a virilha, o baço — e disse: “Doença do beijo”.
Minha
mãe perguntou: “Beijo? De quem?”. “Só o teu filho pode
dizer”, disse o jovem médico.
Depois
ele deu o diagnóstico científico, nada sentimental: mononucleose
infecciosa.
Esse
jovem paraense adotou Manaus como sua cidade amazônica e em 1970, já
professor de infectologia da recém-criada Faculdade de Medicina,
fundou com o professor e também médico Carlos Borborema a Clínica
de Doenças Tropicais. Com apenas oito leitos, essa clínica ocupou
um anexo que seria destinado à lavanderia do hospital universitário
Getúlio Vargas.
Há
médicos que transformam uma lavanderia num hospital de referência.
A modesta Clínica de Doenças Tropicais — atual Fundação de
Medicina Tropical do Amazonas — tornou-se um grande complexo
hospitalar, onde também funcionam consultórios médicos,
laboratório de análises clínicas, serviços de hemoterapia,
radiodiagnóstico e ultrassonografia. É também um dos maiores
centros de ensino e pesquisa na área de infectologia do Norte. Sem
esse hospital, a população amazonense estaria ainda mais
desamparada, muito mais vulnerável a malária, leishmaniose,
hepatite e tantas outras doenças que proliferam na capital e em
cidades do interior.
Heitor
Dourado foi um visionário. Em 1970 ele percebeu que a cidade de 300
mil habitantes teria, em menos de três décadas, algo em torno de
1,5 milhão de pessoas, a maioria vivendo em barracos construídos em
áreas desmatadas e invadidas. Esse desmatamento descontrolado nos
arredores de Manaus é nocivo para a saúde pública, além de ser
desastroso para o meio ambiente. São bairros paupérrimos, habitados
por brasileiros de todos os cantos que migram para Manaus em busca de
um emprego no polo industrial.
O
jovem médico teve estômago, tato e paciência para lidar com
militares e interventores da ditadura e depois com políticos da
nossa democracia nada exemplar. Formou gerações de médicos que,
hoje, são pesquisadores e trabalham na área de saúde pública.
Enfim, Heitor Dourado foi um dos tantos brasileiros sonhadores, um
idealista que encarava sua profissão como um sacerdócio, ou como
uma missão social inadiável, urgente. Tinha um humor na ponta da
língua, conversava com as mãos no ar, com gestos de maestro, nunca
cobrou por uma consulta, era um médico compassivo, alarmado pela
humilhação a que são submetidos os pobres deste país, apesar da
euforia econômica, uma euforia que ofusca a péssima, vergonhosa
qualidade de vida de inúmeros brasileiros.
Por
uma infeliz coincidência, no mês de agosto eu estava em Manaus
quando meu tio Adib — o mesmo que em 1967 entrara no meu quarto com
o jovem médico — recebeu um telefonema de Fortaleza.
O
corpo de Heitor foi transportado para Manaus e velado no hospital que
ele fundou. Foi enterrado no jazigo da minha família, como se ele
fosse um irmão mais velho, um desses amigos que são mais próximos
e queridos que certos parentes. E enquanto olhava com tristeza para
sua esposa e suas três filhas em prantos, me lembrei de um
personagem do meu primeiro romance: o médico Hector Dorado. Depois
de ler o livro, ele comentou, rindo:
“Parece
que nasci em Buenos Aires, e não em Belém”.
Em
todo caso, as personagens contam pouco. O que vale mesmo é a
grandeza de um ser humano.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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