domingo, 17 de fevereiro de 2019

Um médico visionário

Em agosto de 1967, tive de interromper as aulas de judô e as incursões aos clubes noturnos de Manaus. Aliás, tudo foi interrompido quando o médico da nossa família viu meus exames de sangue, diagnosticou hepatite (tipo A), uma virose nada atípica no Amazonas, onde a água, além de maltratada, era temível. Depois de tomar os medicamentos, continuei deitado e enfermo, sem saber se as três cruzes do hemograma eram uma falha laboratorial.
Prostrado e pálido, lamentava as noites perdidas, as últimas noites da minha juventude manauara, pois sabia que em dezembro daquele ano iria embora da cidade. Estava perdido nesse devaneio, quando um homem de branco entrou no quarto, acompanhado por um dos meus tios. Era alto como um gigante, mas depois percebi — toda a cidade percebeu — que Heitor Dourado não era apenas um homem alto, mas também um grande médico. Desprezou o hemograma, apalpou meu corpo — as axilas, a virilha, o baço — e disse: “Doença do beijo”.
Minha mãe perguntou: “Beijo? De quem?”. “Só o teu filho pode dizer”, disse o jovem médico.
Depois ele deu o diagnóstico científico, nada sentimental: mononucleose infecciosa.
Esse jovem paraense adotou Manaus como sua cidade amazônica e em 1970, já professor de infectologia da recém-criada Faculdade de Medicina, fundou com o professor e também médico Carlos Borborema a Clínica de Doenças Tropicais. Com apenas oito leitos, essa clínica ocupou um anexo que seria destinado à lavanderia do hospital universitário Getúlio Vargas.
Há médicos que transformam uma lavanderia num hospital de referência. A modesta Clínica de Doenças Tropicais — atual Fundação de Medicina Tropical do Amazonas — tornou-se um grande complexo hospitalar, onde também funcionam consultórios médicos, laboratório de análises clínicas, serviços de hemoterapia, radiodiagnóstico e ultrassonografia. É também um dos maiores centros de ensino e pesquisa na área de infectologia do Norte. Sem esse hospital, a população amazonense estaria ainda mais desamparada, muito mais vulnerável a malária, leishmaniose, hepatite e tantas outras doenças que proliferam na capital e em cidades do interior.
Heitor Dourado foi um visionário. Em 1970 ele percebeu que a cidade de 300 mil habitantes teria, em menos de três décadas, algo em torno de 1,5 milhão de pessoas, a maioria vivendo em barracos construídos em áreas desmatadas e invadidas. Esse desmatamento descontrolado nos arredores de Manaus é nocivo para a saúde pública, além de ser desastroso para o meio ambiente. São bairros paupérrimos, habitados por brasileiros de todos os cantos que migram para Manaus em busca de um emprego no polo industrial.
O jovem médico teve estômago, tato e paciência para lidar com militares e interventores da ditadura e depois com políticos da nossa democracia nada exemplar. Formou gerações de médicos que, hoje, são pesquisadores e trabalham na área de saúde pública. Enfim, Heitor Dourado foi um dos tantos brasileiros sonhadores, um idealista que encarava sua profissão como um sacerdócio, ou como uma missão social inadiável, urgente. Tinha um humor na ponta da língua, conversava com as mãos no ar, com gestos de maestro, nunca cobrou por uma consulta, era um médico compassivo, alarmado pela humilhação a que são submetidos os pobres deste país, apesar da euforia econômica, uma euforia que ofusca a péssima, vergonhosa qualidade de vida de inúmeros brasileiros.
Por uma infeliz coincidência, no mês de agosto eu estava em Manaus quando meu tio Adib — o mesmo que em 1967 entrara no meu quarto com o jovem médico — recebeu um telefonema de Fortaleza.
O corpo de Heitor foi transportado para Manaus e velado no hospital que ele fundou. Foi enterrado no jazigo da minha família, como se ele fosse um irmão mais velho, um desses amigos que são mais próximos e queridos que certos parentes. E enquanto olhava com tristeza para sua esposa e suas três filhas em prantos, me lembrei de um personagem do meu primeiro romance: o médico Hector Dorado. Depois de ler o livro, ele comentou, rindo:
Parece que nasci em Buenos Aires, e não em Belém”.
Em todo caso, as personagens contam pouco. O que vale mesmo é a grandeza de um ser humano.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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