Brotero
é deputado. Entrou agora mesmo em casa, às duas horas da noite,
agitado, sombrio, respondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se
quer isto ou aquilo, e ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só.
Uma vez só, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé
do gabinete, com os olhos no tecto e o charuto na boca. Não pensa
tranqüilamente; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo
senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janela, passeia, pára no
meio da sala, batendo com o pé no chão; enfim resolve ir dormir,
entra no quarto, despe-se, mete-se na cama, rola inutilmente de um
lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete. Mal se
sentou outra vez no canapé, bateram três horas no relógio da casa.
O silêncio era profundo; e, como a divergência dos relógios é o
princípio fundamental da relojoaria, começaram todos os relógios
da vizinhança a bater, com intervalos desiguais, uma, duas, três
horas. Quando o espírito padece, a cousa mais indiferente do mundo
traz uma intenção recôndita, um propósito do destino. Brotero
começou a sentir esse outro gênero de mortificação. As três
pancadas secas, cortando o silêncio da noite, pareciam-lhe as vozes
do próprio tempo, que lhe bradava: Vai dormir. Enfim, cessaram; e
ele pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando:
— Não
há outro alvitre, é isto mesmo.
Dito
isso, foi à secretária, pegou da pena e de uma folha de papel, e
escreveu esta carta ao presidente do conselho de ministros:
Excelentíssimo
senhor
Há
de parecer estranho a V. Ex.a tudo o que vou dizer neste papel; mas,
por mais estranho que lhe pareça, e a mim também, há situações
tão extraordinárias que só comportam soluções extraordinárias.
Não quero desabafar nas esquinas, na Rua do Ouvidor, ou nos
corredores da Câmara. Também não quero manifestar-me, na tribuna,
amanhã ou depois, quando V. Ex.a for apresentar o programa do seu
ministério; seria digno, mas seria aceitar a cumplicidade de uma
ordem de cousas, que inteiramente repudio. Tenho um só alvitre:
renunciar à cadeira de deputado e voltar à vida íntima. Não sei
se, ainda assim, V. Ex.a me chamará despeitado. Se o fizer, creio
que terá razão. Mas rogo-lhe que advirta que há duas qualidades de
despeito e o meu é da melhor.
Não
pense V. Ex.a que recuo diante de certas deputações influentes, nem
que me senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o
B... para meter o C... no ministério. Tudo isso são cousas mínimas.
A questão para mim é de lealdade, já não digo política, mas
pessoal; a questão é com V. Ex.a. Foi V. Ex.a que me obrigou a
romper com o ministério dissolvido, mais cedo do que era minha
intenção, e, talvez mais cedo do que convinha ao partido. Foi V.
Ex.a que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janela, que os
meus estudos de questões diplomáticas me indicavam naturalmente a
pasta de estrangeiros. Há de lembrar-se que lhe respondi então ser
para mim indiferente subir ao ministério, uma vez que servisse ao
meu país. V. Ex.a replicou: — É muito bonito, mas os bons
talentos querem-se no ministério. Na Câmara, já pela posição que
fui adquirindo, já pelas distinções especiais de que era objeto,
dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira ocasião;
e, ao ser chamado V. Ex.a ontem para organizar o novo gabinete, não
se jurou outra cousa. As combinações variavam, mas o meu nome
figurava em todas elas. É que ninguém ignorava as finezas de V.
Ex.a para comigo, os bilhetes em que me louvava, os seus reiterados
convites, etc. Confesso a V. Ex.a que acompanhei a opinião geral. A
opinião enganou-se, eu enganei-me; o ministério está organizado
sem mim. Considero esta exclusão um desdouro irreparável, e
determinei deixar a cadeira de deputado a algum mais capaz, e,
principalmente, mais dócil. Não será difícil a V. Ex.a achá-lo
entre os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima e
consideração.
De
V. Ex.a desobrigado amigo,
BROTERO.
Os
verdadeiros políticos dirão que esta carta é só verossímil no
despeito, e inverossímil na resolução. Mas os verdadeiros
políticos ignoram duas cousas, penso eu. Ignoram Boileau, que nos
adverte da possível inverossimilhança da verdade, em matérias de
arte, e a política, segundo a definiu um padre da nossa língua, é
a arte das artes; e ignoram que um outro golpe feria a alma do
Brotero naquela ocasião. Se a exclusão do ministério não bastava
a explicar a renúncia da cadeira, outra perda a ajudava. Já têm
notícia do desastre político; sabem que houve crise ministerial que
o conselheiro *** recebeu do Imperador o encargo de organizar um
gabinete, e que a diligência de um certo B... conseguiu meter nele
um certo C. - A pasta deste foi justamente a de estrangeiros, e o fim
secreto da diligência era dar um lugar na galeria do Estado à viúva
Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que abastada, elegera dias
antes para seu marido o recente ministro. Tudo isso iria menos mal,
se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viúva;
mas, cobiçá-las, cortejá-las e perdê-las, sem que ao menos uma
viesse consolá-lo, da perda da outra, digam-me francamente se não
era bastante a explicar a renúncia do nosso amigo?
Brotero
releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescritou-a; depois atirou-a a
um lado, para remetê-la no dia seguinte. O destino lançara os
dados. César transpunha o Rubicão, mas em sentido inverso. Que
fique Roma com os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis!
Ele volve à região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas
de aparato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e
fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou;
e levantou-se porque ouviu bater quatro horas, e recomeçar a
procissão dos relógios, a cruel e implicante monotonia das
pêndulas. Uma, duas, três, quatro... Não tinha sono, não tentou
sequer meter-se na cama. Entrou a andar de um lado para outro,
passeando, planeando, relembrando. De memória em memória,
reconstruiu as ilusões de outro tempo, comparou-as com as sensações
de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dor, mirou
afincadamente essas ilusões perdidas, como uma velha contempla as
suas fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia
que, em todas as dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que
futuro? Ele não via nada. E foi-se achegando da secretária, onde
tinha guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos
correligionários políticos, todas as cartas. Já agora não podia
conciliar o sono; ia reler esses papéis velhos. Não se releem
livros antigos?
Abriu
a gaveta; tirou dois ou três maços e desatou-os. Muitas das cartas
estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários
houvessem morrido, o aspecto geral era de cemitério; donde se pode
inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E ele
começou a relê-las, uma a uma, as de dez páginas e os simples
bilhetes, mergulhando nesse mar morto de recordações apagadas,
negócios pessoais ou públicos, um espetáculo, um baile, dinheiro
emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma
confidência amorosa.
Machado
de Assis, in Papéis velhos
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