“Rua
do pecado não vendeu nada.”
“Como
não vendeu nada?”
“Encalhou.”
“Eu
li no jornal que era um dos mais vendidos.”
“Demos
uma grana para sair aquela nota. Mesmo assim não adiantou.”
“Puta
merda.”
“O
nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado. Você tem
que escrever um romance que seja autobiográfico, que conte a
história de alguém da sua família com uma doença grave, uma
doença que faça a pessoa sofrer muito, algo maligno que não seja
mortal. Entendeu? É isso que os leitores querem hoje em dia, uma
história que tenha veracidade. Ninguém mais quer ler ficção, a
ficção acabou. É isso que vende. Você tem alguém assim na sua
família?”
“Sim,
tenho.”
“Alguém
próximo, uma pessoa muito querida?”
“Sim.”
“Você
pode me dizer quem é?”
“Não,
não, por enquanto é um segredo.”
“Não
tem problema. Então, mãos à obra.”
Na
verdade eu não tinha qualquer parente com doença grave ou coisa
parecida. Sou órfão, nunca conheci os meus pais. Não tenho irmãos.
A tia que me criou já morreu. Sou solteiro e não moro com as
mulheres que fodo. Morar junto acaba com o amor, o respeito, o tesão.
A frase do meu editor “o nosso depósito está abarrotado de Ruas
do pecado” não saía da minha mente. O que eu podia inventar
para contar no meu livro? Uma mãe paralítica e débil mental? Um
filho autista ou com síndrome de Down? Já escreveram vários livros
sobre isso. Pai maluco, amarrado numa camisa de força, preso no
porão da casa, comendo papinha de milho três vezes ao dia? Um filho
que nasce sem pernas e sem braços?
Achei
esta última a melhor ideia, que podia ser desenvolvida assim:
Meu
filho nasceu sem braços e sem pernas. A mãe dele ficou tão
deprimida que se matou, cortando os pulsos dentro da banheira. Não,
não, cortar os pulsos não tem dramaticidade. Dando um tiro na
cabeça? Como, como? Puta merda!
Lembrei-me
que eu tinha na estante um livro do sociólogo Durkheim com o título
O suicídio. Tive um trabalho danado para encontrá-lo, minhas
estantes são uma esculhambação, como são as estantes e gavetas de
todo escritor. Afinal, achei o livro.
Para
Durkheim, as taxas de suicídio são maiores entre os solteiros,
viúvos e divorciados do que entre os casados; na maioria das vezes,
o indivíduo portador da “ideia do suicídio” quase sempre não
sobrevive; são maiores entre pessoas que não têm filhos; são
maiores entre protestantes do que entre católicos e judeus.
Essa
merda não interessava. Mas li o livro até o fim, passei a noite
lendo, a frase do meu editor “o nosso depósito está abarrotado de
Ruas do pecado” tinha tirado o meu sono completamente.
No
fim do livro, Durkheim lista os diferentes tipos de suicídio:
Suicídio
egoísta: o indivíduo se mata para parar de sofrer, como, por
exemplo, no fim de um relacionamento com outro indivíduo.
Suicídio
altruísta: alguns sociólogos contemporâneos têm usado esta
análise para explicar os kamikaze e os homens-bomba.
Suicídio
anômico: quando as normas sociais e leis que governam a sociedade
não correspondem aos objetivos de vida do indivíduo. Uma vez que o
indivíduo não se identifica com as normas da sociedade, o suicídio
passa a ser uma alternativa de escape.
A
claridade do dia entrava pela minha janela quando terminei a leitura
do livro. Puta merda! Uma perda de tempo. O merda do Durkheim não me
deu uma única ideia interessante para eu matar a minha mulher.
Fiquei tão irritado que joguei o livro no chão e dei-lhe vários
pontapés.
Minha
mulher no livro tinha que se matar ao descobrir que o filho dela, o
nosso filho, não tinha pernas nem braços.
Então
tive uma ideia: que tal encharcando o corpo de gasolina e acendendo
um fósforo? A ideia não era má.
Minha
mulher ficou tão desesperada que cobriu de gasolina o roupão que
estava usando ― ela passava o dia de roupão, vagando pela casa ―,
procurou uma caixa de fósforos, mas não achou, então foi até o
fogão, que acende automaticamente, e colocou o braço na chama. O
fogo foi aos poucos incendiando o roupão, e a minha mulher,
desesperada, saiu correndo de casa, gritando como uma louca, até
cair no meio da rua, morta.
Claro,
vou revisar este texto. Escrever é rever, rever, rever. Cada revisão
que você faz, o texto melhora.
Puta
merda, eu fiz isso com Rua do pecado, e como a porra do livro
foi encalhar?
Desculpem
se estou dizendo muitas palavras obscenas. Sempre disse, falando, e,
pior, sempre escrevi nos meus livros os palavrões mais cabeludos.
Quem estiver achando que sofro de síndrome de la Tourette que vá se
foder, que vá pra puta que o pariu.
Fiquei
emperrado, tolhido mental e psicologicamente. Eu já não dormia
direito antes, angustiado com a revelação de que aquele que eu
considerava o meu melhor romance, Rua do pecado, havia
encalhado. E agora, com esse bloqueio que eu estava sofrendo, a minha
agonia, o meu sofrimento aumentavam.
Então
tive outra ideia. Essa era boa. Eu, o escritor, conto no livro que
estou sofrendo das faculdades mentais, que estou maluco, porra, e
decido me matar.
Eu
sou um escritor, o livro começa assim, e sinto que estou
enlouquecendo. O único sentimento que abrigo em meu coração e na
minha mente é o ódio. Odeio todo mundo, odeio a mim mesmo, tenho
vontade de sair matando pessoas e depois me matar ateando fogo às
vestes.
O
princípio do livro vai ser assim. Claro que isso vai ser revisto.
Escrever é rever, rever, rever. Cada revisão que você faz, o texto
melhora. Acho que já disse isso. Ou não disse? Foda-se se disse e
foda-se se não disse.
Eu
sempre ensaio o que vou escrever na frente do espelho. Em Rua do
pecado, na cena em que o personagem principal tenta o suicídio
pulando da janela, eu, ensaiando, trepei no armário e pulei no
assoalho do quarto, para ter uma ideia da sensação da queda.
Quebrei vários ossos dos pés ― o pé tem uma porrada de ossos ―,
mas escrevi uma cena memorável.
Então,
ensaiei atear fogo às vestes. Despejei bastante gasolina na minha
roupa, eu precisava sentir o odor do próprio corpo coberto de
gasolina. Peguei um fósforo e acendi ― claro que não ia encostar
o fósforo aceso no meu corpo. Mas não sei o que houve e encostei e
virei uma tocha.
Recebi
a visita do meu editor no hospital.
“Os
médicos disseram que você escapou milagrosamente. As pessoas que
sofrem queimaduras como as suas sempre morrem. Todos os jornais
noticiaram com destaque esse acontecimento. Até no exterior
publicaram. Estou guardando todos os recortes. A televisão também
noticiou em todos os telejornais durante vários dias. Está no
YouTube, no Facebook, em toda parte.”
“Foda-se”,
consegui dizer por entre as ataduras que envolviam o meu rosto.
“Agora,
a melhor notícia de todas. Rua do pecado virou um
best-seller. Já imprimimos mais duas vezes.”
Olhei
para o meu editor, ele tinha cara de ser um filho da puta, todo
editor é um filho da puta.
“Vá
para a puta que pariu”, eu disse.
Fechei
os olhos. Ouvi o ruído do filho da puta saindo do quarto.
Rubem
Fonseca, in Amálgama
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