terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Best-seller

Rua do pecado não vendeu nada.”
Como não vendeu nada?”
Encalhou.”
Eu li no jornal que era um dos mais vendidos.”
Demos uma grana para sair aquela nota. Mesmo assim não adiantou.”
Puta merda.”
O nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado. Você tem que escrever um romance que seja autobiográfico, que conte a história de alguém da sua família com uma doença grave, uma doença que faça a pessoa sofrer muito, algo maligno que não seja mortal. Entendeu? É isso que os leitores querem hoje em dia, uma história que tenha veracidade. Ninguém mais quer ler ficção, a ficção acabou. É isso que vende. Você tem alguém assim na sua família?”
Sim, tenho.”
Alguém próximo, uma pessoa muito querida?”
Sim.”
Você pode me dizer quem é?”
Não, não, por enquanto é um segredo.”
Não tem problema. Então, mãos à obra.”

Na verdade eu não tinha qualquer parente com doença grave ou coisa parecida. Sou órfão, nunca conheci os meus pais. Não tenho irmãos. A tia que me criou já morreu. Sou solteiro e não moro com as mulheres que fodo. Morar junto acaba com o amor, o respeito, o tesão. A frase do meu editor “o nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado” não saía da minha mente. O que eu podia inventar para contar no meu livro? Uma mãe paralítica e débil mental? Um filho autista ou com síndrome de Down? Já escreveram vários livros sobre isso. Pai maluco, amarrado numa camisa de força, preso no porão da casa, comendo papinha de milho três vezes ao dia? Um filho que nasce sem pernas e sem braços?
Achei esta última a melhor ideia, que podia ser desenvolvida assim:
Meu filho nasceu sem braços e sem pernas. A mãe dele ficou tão deprimida que se matou, cortando os pulsos dentro da banheira. Não, não, cortar os pulsos não tem dramaticidade. Dando um tiro na cabeça? Como, como? Puta merda!
Lembrei-me que eu tinha na estante um livro do sociólogo Durkheim com o título O suicídio. Tive um trabalho danado para encontrá-lo, minhas estantes são uma esculhambação, como são as estantes e gavetas de todo escritor. Afinal, achei o livro.
Para Durkheim, as taxas de suicídio são maiores entre os solteiros, viúvos e divorciados do que entre os casados; na maioria das vezes, o indivíduo portador da “ideia do suicídio” quase sempre não sobrevive; são maiores entre pessoas que não têm filhos; são maiores entre protestantes do que entre católicos e judeus.
Essa merda não interessava. Mas li o livro até o fim, passei a noite lendo, a frase do meu editor “o nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado” tinha tirado o meu sono completamente.
No fim do livro, Durkheim lista os diferentes tipos de suicídio:
Suicídio egoísta: o indivíduo se mata para parar de sofrer, como, por exemplo, no fim de um relacionamento com outro indivíduo.
Suicídio altruísta: alguns sociólogos contemporâneos têm usado esta análise para explicar os kamikaze e os homens-bomba.
Suicídio anômico: quando as normas sociais e leis que governam a sociedade não correspondem aos objetivos de vida do indivíduo. Uma vez que o indivíduo não se identifica com as normas da sociedade, o suicídio passa a ser uma alternativa de escape.
A claridade do dia entrava pela minha janela quando terminei a leitura do livro. Puta merda! Uma perda de tempo. O merda do Durkheim não me deu uma única ideia interessante para eu matar a minha mulher. Fiquei tão irritado que joguei o livro no chão e dei-lhe vários pontapés.
Minha mulher no livro tinha que se matar ao descobrir que o filho dela, o nosso filho, não tinha pernas nem braços.
Então tive uma ideia: que tal encharcando o corpo de gasolina e acendendo um fósforo? A ideia não era má.
Minha mulher ficou tão desesperada que cobriu de gasolina o roupão que estava usando ― ela passava o dia de roupão, vagando pela casa ―, procurou uma caixa de fósforos, mas não achou, então foi até o fogão, que acende automaticamente, e colocou o braço na chama. O fogo foi aos poucos incendiando o roupão, e a minha mulher, desesperada, saiu correndo de casa, gritando como uma louca, até cair no meio da rua, morta.
Claro, vou revisar este texto. Escrever é rever, rever, rever. Cada revisão que você faz, o texto melhora.
Puta merda, eu fiz isso com Rua do pecado, e como a porra do livro foi encalhar?
Desculpem se estou dizendo muitas palavras obscenas. Sempre disse, falando, e, pior, sempre escrevi nos meus livros os palavrões mais cabeludos. Quem estiver achando que sofro de síndrome de la Tourette que vá se foder, que vá pra puta que o pariu.
Fiquei emperrado, tolhido mental e psicologicamente. Eu já não dormia direito antes, angustiado com a revelação de que aquele que eu considerava o meu melhor romance, Rua do pecado, havia encalhado. E agora, com esse bloqueio que eu estava sofrendo, a minha agonia, o meu sofrimento aumentavam.
Então tive outra ideia. Essa era boa. Eu, o escritor, conto no livro que estou sofrendo das faculdades mentais, que estou maluco, porra, e decido me matar.
Eu sou um escritor, o livro começa assim, e sinto que estou enlouquecendo. O único sentimento que abrigo em meu coração e na minha mente é o ódio. Odeio todo mundo, odeio a mim mesmo, tenho vontade de sair matando pessoas e depois me matar ateando fogo às vestes.
O princípio do livro vai ser assim. Claro que isso vai ser revisto. Escrever é rever, rever, rever. Cada revisão que você faz, o texto melhora. Acho que já disse isso. Ou não disse? Foda-se se disse e foda-se se não disse.
Eu sempre ensaio o que vou escrever na frente do espelho. Em Rua do pecado, na cena em que o personagem principal tenta o suicídio pulando da janela, eu, ensaiando, trepei no armário e pulei no assoalho do quarto, para ter uma ideia da sensação da queda. Quebrei vários ossos dos pés ― o pé tem uma porrada de ossos ―, mas escrevi uma cena memorável.
Então, ensaiei atear fogo às vestes. Despejei bastante gasolina na minha roupa, eu precisava sentir o odor do próprio corpo coberto de gasolina. Peguei um fósforo e acendi ― claro que não ia encostar o fósforo aceso no meu corpo. Mas não sei o que houve e encostei e virei uma tocha.

Recebi a visita do meu editor no hospital.
Os médicos disseram que você escapou milagrosamente. As pessoas que sofrem queimaduras como as suas sempre morrem. Todos os jornais noticiaram com destaque esse acontecimento. Até no exterior publicaram. Estou guardando todos os recortes. A televisão também noticiou em todos os telejornais durante vários dias. Está no YouTube, no Facebook, em toda parte.”
Foda-se”, consegui dizer por entre as ataduras que envolviam o meu rosto.
Agora, a melhor notícia de todas. Rua do pecado virou um best-seller. Já imprimimos mais duas vezes.”
Olhei para o meu editor, ele tinha cara de ser um filho da puta, todo editor é um filho da puta.
Vá para a puta que pariu”, eu disse.
Fechei os olhos. Ouvi o ruído do filho da puta saindo do quarto.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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