sábado, 16 de fevereiro de 2019

Lógica da incoerência

Em laboratórios e oficinas literárias, jovens alunos me perguntam o que devem fazer para “escrever bem”. Pedem fórmulas, exercícios, truques e exigem a aplicação de provas, com as devidas notas, na esperança de, com rapidez, se transformarem em escritores. Não ousam: querem a metamorfose pronta, prêt-à-porter. A ideia de errar o passo, ou tropeçar, os horroriza. Veem-se como um bando, e não como sujeitos singulares, e a repetição – como nas grifes dos shoppings – os alivia.
É decepcionante que logo os mais jovens me peçam coerência, estratégias práticas e eficácia. Só me resta lutar para convencê-los de que a literatura não tem relação alguma com o pragmatismo ou com os bons resultados. Se nela vigora uma lógica, é a lógica da incoerência. Se algo pode ser transmitido, não é a receita ou a fórmula infalível, mas o estímulo a “errar bem”.
Por isso leio com redobrado entusiasmo ContraBANDOS, livro de estreia de Raphael Gancz, de 30 anos, publicado pelo Selo Edith, de São Paulo. Reunião de vinte textos breves e devastadores que, com maturidade filosófica, contrariam as belas ideias, o politicamente correto e o senso comum. Contra bandos, Raphael aposta firme no singular. Atrás de seus manifestos poéticos, uma sombra se insinua: a de Paulo Leminski. Mas ele também a mata.
Poeta do incomum, Raphael se apressa em avisar: “A coerência é uma tirana. Uma prisão de segurança máxima. Um cadeado encadeando sentidos”. Contida e covarde, ele prossegue, a coerência não passa de uma coleira, como as que arrastam os cães de raça. “Não gosta de improvisar, não gosta de andar a esmo, não utiliza o modo randômico.” Treme diante do imprevisto e do acidente. Raphael prefere os vira-latas.
A coerência exclui os eventos aleatórios e se agarra a sistemas e a padrões. Bulas de remédios, modos de usar, manuais de instrução a fascinam. Mas como fazer literatura com as mãos algemadas? A coerência é o adequado, mas a literatura nada tem a ver com o conforto. Literatura é desconforto, é desafio, e assim Raphael a pratica.
Feroz, ele salta sobre o pescoço de lugares-comuns sagrados, a começar pelos que rondam a própria poesia. “A poesia fala demais. Tem a língua maior que a boca”, escreve. Não vacila em compará-la a uma megera, magra, fingida, elitista; mulher horrenda que fala sem nada dizer e que, no fim, é só uma casca vazia. A poesia, ele insiste, é turva, é turra, é torta. Pelo menos a poesia que se quer poética.
Lembro, logo, de João Cabral, que desejava “despoetisar a poesia”, como se dedetizasse uma casa, para fazer uma poesia fora da poesia – e a fez. A mesma fúria de Cabral replica em Raphael, que, já na primeira epígrafe, apoia-se em Baudelaire e evoca outros poetas malditos (eu penso em François Villon, em Gregório de Matos, em Orides Fontela; ele provavelmente em Leminski) para inverter a moral de coisas que repudiamos, como o estupro, o veneno e a punhalada. Trabalhar pelo negativo: eis sua estratégia poética. Ver com novos olhos, mesmo as coisas mais repulsivas. Arriscar a subida a novos mirantes, ainda que à beira do abismo.
Com isso, Raphael afronta alguns dos mais mimados mitos contemporâneos. A viagem, modelo universal da diferença e da surpresa, em que enxergamos mais de longe do que de perto: “A viagem é um lugar-comum”. A clareza (o sol), que é óbvia, burra e cega e achata o mundo com sua luz. Nem a figura venerável da mãe escapa: “A mãe é uma mala. É um depósito. De ideias constrangedoras” – ele grita.
Aproxima-se da figura angelical do bebê para vê-la como um desconforto, que “dá ânsia, desgosto, depressão”. Sem recuar, Raphael escreve: “O bebê é um erro de cálculo. Um parasita expelido para ser cultivado”. Atropela a hereditariedade, os sentimentos naturais, a beleza do amor. E diz tudo, quando diz: “O bebê é um chefe. Dentro e fora do expediente”. Que pais, com o rosto coberto de olheiras, ousarão desmenti-lo?
Outras ideias sagradas despencam. O povo, Raphael escreve, é um formigueiro. “O povo é um saco.” Mesmo a doçura do carinho é repetitiva e obsessiva: “O carinho é um encosto”. Cento e dez anos depois de sua morte, Nietzsche reencarna em Raphael, que escreve para inverter valores, transpassar fronteiras e inverter certezas. Para ele, perigosas mesmo são as coisas inofensivas. Prefere as perigosas: elas nos mostram seus dentes.
Por isso, ousa fazer até o elogio da punhalada: “A punhalada não perde tempo com ameaças”. E ainda – grande alívio em um mundo de meias palavras e de protocolos vazios: “A punhalada é uma resposta”. Raphael não para. Pega um objeto hoje abjeto como o cinzeiro e o repensa: “O cinzeiro é uma peça íntima”. E, sensível ao silêncio das coisas, acrescenta: “O cinzeiro é um ouvido virado para cima”.
É espantoso como Raphael agarra com mão firme os espinhos dos conceitos. Corajoso, defronta seu leitor com a preguiça de pensar. O quanto preferimos ideias prontas e em série, como camisetas ou jeans! Aqui é Gustave Flaubert, e seu Dicionário das ideias feitas, de 1913, que entrevemos.
No capítulo mais vibrante do livro, o XVII, dedicado ao câncer, Raphael assinala o perigo escondido em nossos valores industriais, que exaltam o desenvolvimento, o progresso e a reprodução. “O câncer nasce, cresce, reproduz. E mata”, ele começa seu tiroteio. Evolui, amadurece, se multiplica. “O câncer é um empreiteiro de visão. Analisa órgãos. Abre filiais. Faz as células renderem, ano a ano, cada vez mais.” A morte é sua comenda.
O câncer é produtivo. Prolifera. “Câncer é progresso” – e quem pode desmenti-lo? No capítulo final, invertendo nossa visão da morte, Raphael mostra que também o caixão é uma máquina de multiplicar. “É o vaso que acomoda o desabrochar das bactérias.” Fungos, larvas: “O caixão envolve nascimentos”. É uma nave entre a vida e outras vidas. “É um útero .”
Raphael tem 30 anos, vou fazer 60. Sua escrita me desdobra e desafia: não sei se chego a meio Raphael. Falência do tempo lógico e das leis biológicas. Derrota da coerência. Preciso reler ContraBANDOS e desaprender com Raphael um pouco mais.
José Castello, in Sábados inquietos

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