Em
laboratórios e oficinas literárias, jovens alunos me perguntam o
que devem fazer para “escrever bem”. Pedem fórmulas, exercícios,
truques e exigem a aplicação de provas, com as devidas notas, na
esperança de, com rapidez, se transformarem em escritores. Não
ousam: querem a metamorfose pronta, prêt-à-porter. A ideia
de errar o passo, ou tropeçar, os horroriza. Veem-se como um bando,
e não como sujeitos singulares, e a repetição – como nas grifes
dos shoppings – os alivia.
É
decepcionante que logo os mais jovens me peçam coerência,
estratégias práticas e eficácia. Só me resta lutar para
convencê-los de que a literatura não tem relação alguma com o
pragmatismo ou com os bons resultados. Se nela vigora uma lógica, é
a lógica da incoerência. Se algo pode ser transmitido, não é a
receita ou a fórmula infalível, mas o estímulo a “errar bem”.
Por
isso leio com redobrado entusiasmo ContraBANDOS, livro de
estreia de Raphael Gancz, de 30 anos, publicado pelo Selo Edith, de
São Paulo. Reunião de vinte textos breves e devastadores que, com
maturidade filosófica, contrariam as belas ideias, o politicamente
correto e o senso comum. Contra bandos, Raphael aposta firme no
singular. Atrás de seus manifestos poéticos, uma sombra se insinua:
a de Paulo Leminski. Mas ele também a mata.
Poeta
do incomum, Raphael se apressa em avisar: “A coerência é uma
tirana. Uma prisão de segurança máxima. Um cadeado encadeando
sentidos”. Contida e covarde, ele prossegue, a coerência não
passa de uma coleira, como as que arrastam os cães de raça. “Não
gosta de improvisar, não gosta de andar a esmo, não utiliza o modo
randômico.” Treme diante do imprevisto e do acidente. Raphael
prefere os vira-latas.
A
coerência exclui os eventos aleatórios e se agarra a sistemas e a
padrões. Bulas de remédios, modos de usar, manuais de instrução a
fascinam. Mas como fazer literatura com as mãos algemadas? A
coerência é o adequado, mas a literatura nada tem a ver com o
conforto. Literatura é desconforto, é desafio, e assim Raphael a
pratica.
Feroz,
ele salta sobre o pescoço de lugares-comuns sagrados, a começar
pelos que rondam a própria poesia. “A poesia fala demais. Tem a
língua maior que a boca”, escreve. Não vacila em compará-la a
uma megera, magra, fingida, elitista; mulher horrenda que fala sem
nada dizer e que, no fim, é só uma casca vazia. A poesia, ele
insiste, é turva, é turra, é torta. Pelo menos a poesia que se
quer poética.
Lembro,
logo, de João Cabral, que desejava “despoetisar a poesia”, como
se dedetizasse uma casa, para fazer uma poesia fora da poesia – e a
fez. A mesma fúria de Cabral replica em Raphael, que, já na
primeira epígrafe, apoia-se em Baudelaire e evoca outros poetas
malditos (eu penso em François Villon, em Gregório de Matos, em
Orides Fontela; ele provavelmente em Leminski) para inverter a moral
de coisas que repudiamos, como o estupro, o veneno e a punhalada.
Trabalhar pelo negativo: eis sua estratégia poética. Ver com novos
olhos, mesmo as coisas mais repulsivas. Arriscar a subida a novos
mirantes, ainda que à beira do abismo.
Com
isso, Raphael afronta alguns dos mais mimados mitos contemporâneos.
A viagem, modelo universal da diferença e da surpresa, em que
enxergamos mais de longe do que de perto: “A viagem é um
lugar-comum”. A clareza (o sol), que é óbvia, burra e cega e
achata o mundo com sua luz. Nem a figura venerável da mãe escapa:
“A mãe é uma mala. É um depósito. De ideias constrangedoras”
– ele grita.
Aproxima-se
da figura angelical do bebê para vê-la como um desconforto, que “dá
ânsia, desgosto, depressão”. Sem recuar, Raphael escreve: “O
bebê é um erro de cálculo. Um parasita expelido para ser
cultivado”. Atropela a hereditariedade, os sentimentos naturais, a
beleza do amor. E diz tudo, quando diz: “O bebê é um chefe.
Dentro e fora do expediente”. Que pais, com o rosto coberto de
olheiras, ousarão desmenti-lo?
Outras
ideias sagradas despencam. O povo, Raphael escreve, é um
formigueiro. “O povo é um saco.” Mesmo a doçura do carinho é
repetitiva e obsessiva: “O carinho é um encosto”. Cento e dez
anos depois de sua morte, Nietzsche reencarna em Raphael, que escreve
para inverter valores, transpassar fronteiras e inverter certezas.
Para ele, perigosas mesmo são as coisas inofensivas. Prefere as
perigosas: elas nos mostram seus dentes.
Por
isso, ousa fazer até o elogio da punhalada: “A punhalada não
perde tempo com ameaças”. E ainda – grande alívio em um mundo
de meias palavras e de protocolos vazios: “A punhalada é uma
resposta”. Raphael não para. Pega um objeto hoje abjeto como o
cinzeiro e o repensa: “O cinzeiro é uma peça íntima”. E,
sensível ao silêncio das coisas, acrescenta: “O cinzeiro é um
ouvido virado para cima”.
É
espantoso como Raphael agarra com mão firme os espinhos dos
conceitos. Corajoso, defronta seu leitor com a preguiça de pensar. O
quanto preferimos ideias prontas e em série, como camisetas ou
jeans! Aqui é Gustave Flaubert, e seu Dicionário das ideias
feitas, de 1913, que entrevemos.
No
capítulo mais vibrante do livro, o XVII, dedicado ao câncer,
Raphael assinala o perigo escondido em nossos valores industriais,
que exaltam o desenvolvimento, o progresso e a reprodução. “O
câncer nasce, cresce, reproduz. E mata”, ele começa seu tiroteio.
Evolui, amadurece, se multiplica. “O câncer é um empreiteiro de
visão. Analisa órgãos. Abre filiais. Faz as células renderem, ano
a ano, cada vez mais.” A morte é sua comenda.
O
câncer é produtivo. Prolifera. “Câncer é progresso” – e
quem pode desmenti-lo? No capítulo final, invertendo nossa visão da
morte, Raphael mostra que também o caixão é uma máquina de
multiplicar. “É o vaso que acomoda o desabrochar das bactérias.”
Fungos, larvas: “O caixão envolve nascimentos”. É uma nave
entre a vida e outras vidas. “É um útero .”
Raphael
tem 30 anos, vou fazer 60. Sua escrita me desdobra e desafia: não
sei se chego a meio Raphael. Falência do tempo lógico e das leis
biológicas. Derrota da coerência. Preciso reler ContraBANDOS
e desaprender com Raphael um pouco mais.
José
Castello, in Sábados inquietos
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