O poeta Miró da Muribeca
Eu
pensei fazer um poema bem legal,
falar do céu e do sol nordestino.
Das mulheres desfilando
seus minúsculos biquínis
aos olhares de sombrinhas coloridas
e vendedores de cachorro-quente.
Oh, my dog,
feriado prolongado
no país do presidente sociólogo:
logo-logo,
até seu peido será racionado.
Pobres serão liberados a peidar
só no final de semana
(se não, fode a camada de ozônio)
empestando o ar com o cheiro
de ovo e mortadela.
falar do céu e do sol nordestino.
Das mulheres desfilando
seus minúsculos biquínis
aos olhares de sombrinhas coloridas
e vendedores de cachorro-quente.
Oh, my dog,
feriado prolongado
no país do presidente sociólogo:
logo-logo,
até seu peido será racionado.
Pobres serão liberados a peidar
só no final de semana
(se não, fode a camada de ozônio)
empestando o ar com o cheiro
de ovo e mortadela.
Theodor Adorno via com muita (talvez
excessiva) desconfiança o recurso do humor como efeito estético nas
obras de arte. Em síntese, parecia-lhe que o humor funciona como uma
espécie de cúmplice das barbáries humanas, pacificando a (má)
consciência com o riso ou mesmo deslocando, com piadas, blagues e
boutades,
os graves conflitos da existência real para o campo da alienação,
da fruição e do prazer. Em A
arte é alegre?, o filósofo
alemão afirma que “a arte é uma crítica da feroz seriedade que a
realidade impõe sobre os seres humanos. Ao dar nome a esse estado de
coisas, a arte acredita que está soltando amarras. Eis sua alegria e
também, sem dúvida, sua seriedade ao modificar a consciência
existente”. Ou seja, para ele a alegria na arte é uma forma de
pensamento que, sendo pensamento autêntico, e portanto crítico,
modifica a consciência das pessoas. Nesse sentido, o paradigma-mor,
para o autor de Minima
moralia,
seria a obra do irlandês Samuel Beckett.
O poema acima, de Miró da Muribeca,
lança mão — como é praxe na produção desse poeta de Recife —
de imagens e palavras que, no conjunto, pretendem impactar o leitor,
seja pela quebra de expectativa quanto ao que se espera de um poema
lírico tradicional (com dramas subjetivos em moldes comportados),
seja pelo linguajar entre o chulo (“fode”) e o mau gosto
(“peido”) que escolhe para tal alcance. Além do vocabulário, os
versos polimétricos e a ausência de rimas regulares e de divisão
em estrofes reforçam no poema o tom prosaico, descolado, popular. Os
seis primeiros versos pintam um quadro turístico, cosmético, típico
de poemas que cultivam o bom-mocismo de propagandas que estimulam o
fetiche do consumo, do sucesso e de um belo idealizado: céu, sol
nordestino, mulheres de biquíni, sombrinhas coloridas, vendedores de
cachorro-quente. Mas esse clima ilusório é quebrado, sem dó, no
sétimo verso (e vai até o final): com “Oh, my dog” o poema
inicia uma série de conexões, de fundo humorístico, que só vão
terminar na antilírica imagem derradeira do “cheiro/ de ovo e
mortadela”. Essa quebra institui o que Pirandello, em O
humorismo, chama de
“sentimento do contrário”, isto é, um desacordo “entre a vida
real e o ideal humano ou entre as nossas aspirações e as nossas
debilidades e misérias”.
Nos seis versos iniciais (“Eu pensei
fazer um poema bem legal,/ falar do céu e do sol nordestino./ Das
mulheres desfilando/ seus minúsculos biquínis/ aos olhares de
sombrinhas coloridas/ e vendedores de cachorro-quente”), nada de
engraçado acontece: funcionam como se fossem uma escada, no sentido
teatral, isto é, funcionam como um preâmbulo, uma criação de cena
para o possível riso por vir. Nas palavras de Sírio Possenti, em
Humor, língua e discurso,
“Se é verdade que o humor depende de imprevisto e surpresa, é
necessário um pano de fundo não cômico ou humorístico em relação
ao qual o outro, o cômico, apareça”. O quadro turístico
desenhado no poema se encerra com uma alusão a “cachorro-quente”.
O verso seguinte — “Oh, my dog” — a um tempo [1] parodia a
expressão “Oh, my god” (anagramatizando, sem temor, deus por
cão), [2] recupera o brasileiríssimo “cachorro-quente” com o
americanizado “my [hot] dog”, [3] produz uma curiosa rima em
cadeia de /ós/, com “Oh/
dog/
sociólogo/
logo-logo/
pobres/
só/
fode”,
assim como [4] cria uma estranha analogia entre “dog” e “-gado”
(sílabas finais de “prolongado”). Ademais, em “dog,
gado,
ólogo
e logo-logo”
ouvimos e vemos aquilo que se pode chamar de “rima consonantal”,
com a repetição do gutural fonema /g/. A interjeição “Oh”
intensifica o caráter teatralizado da quebra de expectativa, traço
apontado pela maioria dos estudiosos como uma constante na produção
do humor (Stendhal sentencia em Do
riso: “Para que se
esboce um sorriso, é necessário que tudo seja bastante súbito”).
Após o hilário “my dog”, o poema —
publicado em Poemas pra
sentir Tesão ou não, de
2002 — diz de onde fala: “no país do presidente sociólogo”,
em que em breve (logo-logo), se consolidado o projeto neoliberal e
privatizante do modo de governar representado pelo então presidente
Fernando Henrique Cardoso, “até seu peido será racionado”. Em
dissertação sobre o poeta de Muribeca, André Telles comenta que,
“remontando ao tempo de FHC, o ‘presidente sociólogo’, o poeta
desmonta o propalado poder do Estado de determinar o bem comum,
prevendo que, a julgar pelas disparidades que já existiam, só o que
poderia surgir era mais arrocho”. O agradável e sedutor quadro do
começo dá lugar, de vez, ao grotesco, ao mau gosto, ao arrocho, ao
baixo ventre (para lembrar expressão com que Mikhail Bakhtin
exemplifica um modo carnavalizado de protesto contra ordens
estabelecidas). A tradição escatológica na poesia é, sabemos,
marginal, e poucos se aventuraram na temática da flatulência, como
Glauco Mattoso (Soneto
flatulento), os capixabas de
Cantáridas
(Orós de merda)
e até mesmo Vinicius de Moraes e sua conhecida canção infantil O
vento, em que a indesejada
palavra peido é eufemizada em “pum”. Mas no poema de Miró o
substantivo “peido” reaparece, sem cerimônia, em forma verbal:
“Pobres serão liberados a peidar/ só no final de semana”.
Repare-se que somente os “pobres”, “no país do presidente
sociólogo”, terão o corpo vigiado e punido, para usar termos
foucaultianos. A justificativa para que os pobres não possam liberar
os gases do corpo é duplamente risível: “(se não, fode a camada
de ozônio)/ empestando o ar com o cheiro/ de ovo e mortadela”.
Decerto, a justificativa não procede, mas dá a pista para o
verdadeiro motivo da profunda repressão ao corpo.
A pista é a peste que está no gerúndio
“empestando”, que significa, no infinitivo, “infectar de
peste”, “dar mau cheiro”, “feder” e por extensão
“corromper, contaminar”. A peste, no contexto de então, é o
peido do povo. Com o popular peido (pum, gases, flato, ventosidade)
cheirando a “ovo e mortadela”, o poema cheira a piada, que
chacoalha, em versos, governos e presidentes que querem controlar a
vontade, a linguagem e o comportamento do povo que come ovo — e
mortadela; abala discursos que se querem religiosa (dog/god) e
ecologicamente (camada de ozônio) corretos; desanca o machismo, que
se escancara e perpetua na imagem de “mulheres desfilando/ seus
minúsculos biquínis”. O despudorado poema zomba sobretudo do
“lirismo comedido e bem comportado” de que falava, há décadas,
o também recifense Bandeira. E põe a nu a abissal diferença de
classes, em que ricos podem (peidar) e pobres não. Se Adorno tem
razão, este “poema bem legal” de Miró da Muribeca, ao conjugar
alegria e seriedade, e “soltando amarras”, dá forma a uma cada
vez mais rara modalidade de arte: boa poesia com bom humor crítico.
Wilbert
Salgueiro, in Sob a pele das palavras (jornal Rascunho)
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