terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A maior das tentações

E assim entraram os dois no arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento, uma agitação assustada no povo.
Mas, quando responderam a Nhô Augusto: — É a jagunçada de seu Joãozinho Bem-Bem, que está descendo para a Bahia... — ele, de alegre, não se pôde conter: — Agora sim! Cantou p’ra mim, passarim! ... Mas, onde é que eles estão?
Estavam aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde seu Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação. Nhô Augusto caçoou:
— “Boi andando no pasto, p’ra lá e p’ra cá, capim que acabou ou está para acabar.
E isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem... E agora vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que a política se apostemou, do lado de lá das divisas, e estou indo de rota batida para o Pilão Arcado, que o meu amigo Franquilim de Albuquerque é capaz de precisar de mim...
Fitava Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas, na testa, havia o resto de uma ruga.
Está vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?... Fico prazido, por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa... Vai se arranchar comigo. Se abanque, mano velho, se abanque!... Arranja um café aqui p’ra o parente, Flosino!
Não queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...
Que nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajustar um devido, para não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O senhor mesmo vai ver, daqui a pouco...
Come com gosto, mano velho.
Nhô Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se já vinha o café.
Tem chá de congonha, requentado, mano velho...
Aceito também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu’é de o Juruminho?
Ah, o senhor guardou o nome, e, a pois, gostou dele, do menino... Pois foi logo com o pobre do Juruminho, que era um dos mais melhores que eu tinha...
Não diga...
O rosto de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.
O matador — foi à traição, — caiu no mundo, campou no pé... Mas a família vai pagar tudo, direito!
Seu Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brincava com os três bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os calcanhares, um no outro. Nhô Augusto, parando de limpar os dentes com o dedo, lastimou: — Coitado do Juruminho, tão destorcido e de tão bom parecer... Deixa eu rezar por alma dele...
Seu Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô Augusto, cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de quem estivesse com a mente muito longe.
Escuta, mano velho...
Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou: — ....eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido brigador de ofício.
Olha: eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. E só o se nhor mesmo querer...
Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é padre nem frade, p’ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca, desgoverna qual quer valente... Bobajada!
Bate na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!
Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar: é convite como nunca fiz a outro, e o se nhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono novo...
Deixa eu ver...
Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa estava sendo a maior das suas tentações.
Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam — talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes:
Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...
E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio.
Está direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é…
Guimarães Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga

Nenhum comentário:

Postar um comentário