E
assim entraram os dois no arraial do Rala-Coco, onde havia, no
momento, uma agitação assustada no povo.
Mas,
quando responderam a Nhô Augusto: — É a jagunçada de seu
Joãozinho Bem-Bem, que está descendo para a Bahia... — ele, de
alegre, não se pôde conter: — Agora sim! Cantou p’ra mim,
passarim! ... Mas, onde é que eles estão?
Estavam
aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde
seu Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação.
Nhô Augusto caçoou:
— “Boi
andando no pasto, p’ra lá e p’ra cá, capim que acabou ou está
para acabar.
— E
isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem...
E agora vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que
a política se apostemou, do lado de lá das divisas, e estou indo de
rota batida para o Pilão Arcado, que o meu amigo Franquilim de
Albuquerque é capaz de precisar de mim...
Fitava
Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas,
na testa, havia o resto de uma ruga.
— Está
vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?... Fico
prazido, por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa...
Vai se arranchar comigo. Se abanque, mano velho, se abanque!...
Arranja um café aqui p’ra o parente, Flosino!
— Não
queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...
— Que
nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajustar um
devido, para não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O
senhor mesmo vai ver, daqui a pouco...
Come
com gosto, mano velho.
Nhô
Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se já
vinha o café.
— Tem
chá de congonha, requentado, mano velho...
— Aceito
também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu’é de o
Juruminho?
— Ah,
o senhor guardou o nome, e, a pois, gostou dele, do menino... Pois
foi logo com o pobre do Juruminho, que era um dos mais melhores que
eu tinha...
— Não
diga...
O
rosto de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.
— O
matador — foi à traição, — caiu no mundo, campou no pé... Mas
a família vai pagar tudo, direito!
Seu
Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brincava com
os três bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os
calcanhares, um no outro. Nhô Augusto, parando de limpar os dentes
com o dedo, lastimou: — Coitado do Juruminho, tão destorcido e de
tão bom parecer... Deixa eu rezar por alma dele...
Seu
Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô
Augusto, cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de
quem estivesse com a mente muito longe.
— Escuta,
mano velho...
Seu
Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou: —
....eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o
senhor caminhou para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse,
da outra vez, na sua casa: o senhor não me contou coisa nenhuma de
sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido brigador de ofício.
Olha:
eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana:
juro como não há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto
para tudo. E só o se nhor mesmo querer...
— Sou
um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Que-o-quê!
Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é
padre nem frade, p’ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando
em cabeça fraca, desgoverna qual quer valente... Bobajada!
— Bate
na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!
— Não
se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o
senhor quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a
falar: é convite como nunca fiz a outro, e o se nhor não vai se
arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí, querendo dono
novo...
— Deixa
eu ver...
Nhô
Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a
pata num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam,
porque essa estava sendo a maior das suas tentações.
Fazer
parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam —
talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre —
e, por fim, negou com a cabeça, muitas vezes:
— Não
posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos...
Fico muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...
E
ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o
riso do capiau ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer
negócio.
— Está
direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é…
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
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