O
lugar e o papel da língua portuguesa como língua oficial foram
debatidos, em 1962, nesse primeiro congresso do movimento
nacionalista. A maior parte das atas — incluindo a decisão de
adotar o português como língua oficial — foram redigidas em
inglês. Alguns dos quadros com formação escolar tinham estudado
nos países vizinhos. O português é adotado não como uma herança,
mas como o mais valioso troféu de guerra. Se a adoção do português
foi um ato de soberania, já a criação da lusofonia não resultou
de iniciativa própria de Moçambique.
A
condição desta nossa família linguística parece ser esta: todos
aceitaram vir ao baile, mas a música é emprestada de uma outra
festa. Desde sempre, estivemos perante um processo de dúvidas e
desconfianças, avanços e recuos nesta invenção de uma família
linguística. Há uns dez anos, Moçambique levantou objecções
sobre o modo como se olhava o idioma como elo. A designação de
“países de língua oficial” nasce dessa controvérsia. Daí
aquele desgraçado nome de P alops. A não menos infeliz sigla de
CPLP é também resultado dessa briga familiar (CPLP: faltam
vogais nesta sigla e as vogais, sabemos, são o açúcar da fala).
Afinal,
tinha ainda passado pouco tempo da descolonização. E aqui é
preciso adequar o sujeito ao verbo. Não foi Portugal que
descolonizou os países africanos. A descolonização só pode ser
feita pelos próprios colonizados. E nós todos éramos colonizados.
Descolonizámo-nos uns aos outros, uns e outros. Tinha, enfim,
passado pouco tempo sobre essa ruptura. Era natural que se
perguntasse: quem é o patrão desta ideia? Obviamente, os países
africanos não se podem reclamar da lusofonia de igual maneira que os
portugueses e os brasileiros.
Certos
setores da política portuguesa entraram em pânico com a adesão de
Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os moçambicanos
haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso?
As
reações de algumas facções foram de tal modo excessivas que só
podiam ser explicadas por um sentimento de perda de um antigo
império. A exemplo da síndrome do marido traído que, não
reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se pergunta:
com quem é que ela anda agora?
(Moçambique
andaria com o inglês. E ainda por cima que mau gosto, logo um
inglês, com todos os fantasmas históricos que isso comporta. E aqui
poderia estar, oportunistamente, uma outra linha de ficção
policial. O crime, neste caso, poderia ser de adultério.)
Na
realidade, as autoridades moçambicanas não mudaram a sua política
linguística e o português permanecia na sua condição de língua
oficial e unificadora. Fala-se hoje mais português em Moçambique
que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez
mais pela língua portuguesa que os quinhentos anos de colonização.
Mas não o fez por causa de um projeto chamado lusofonia. Nem o fez
para demonstrar nada aos outros ou para lançar culpas ao antigo
colonizador. Fê-lo pelo seu próprio interesse nacional, pela defesa
da coesão interna, pela construção da sua própria interioridade.
A
lusofonia, essa que se quer que venha a ser nossa, não pode ser
olhada como qualquer coisa em função de Portugal, ou de interesses
de grupos portugueses. Engrandecer o lugar do antigo colonizador pode
ser, afinal, uma posição de colonizado. Esse projecto só pode
valer se ele nos ajudar a construir o futuro, se for uma ideia
produtiva. E no nosso caso, a condição produtiva da ideia será
resolvida dentro de Moçambique. A língua portuguesa não é ainda a
língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da
moçambicanidade.
Necessitamos
de uma política da lusofonia, porque não somos ainda lusófonos.
Quem é não precisa de proclamar o ser. Quem é, simplesmente é.
Wole Soynka diz: “O tigre não precisa de proclamar a sua
tigritude. Salta sobre a sua presa e exerce-se tigre”.
Parafraseando
o português Eduardo Lourenço, a questão não é quanto os
moçambicanos falam português mas quanto os moçambicanos são
falados pelo português. E esse processo de apropriação recíproca
está apenas começando.
Todos
vocês, aqui, amam a vossa língua enquanto língua materna. Outros
milhões de moçambicanos amam, com igual direito, as suas línguas
maternas. Que são outras, que não o português.
Para
que o projeto da lusofonia funcione em Moçambique, ele deve apoiar a
defesa de outras culturas moçambicanas. Essas culturas e línguas de
raiz bantu necessitam de sobreviver perante a hegemonia de uma certa
uniformização. Mas essa sobrevivência não decorrerá do facto de
realizarmos workshops e levantarmos bandeiras nostálgicas do
passado e da tradição. Alguns idiomas de Moçambique
extinguir-se-ão, e esse destino tiveram e continuam tendo milhares
de outras línguas. Sobreviverão as línguas que estiverem na
dinâmica da nossa própria modernidade, aquelas que souberem
cruzar-se com o tempo, mestiçar-se com o português. E com o inglês.
E com todas as línguas. Na medida em que estiver apta para esses
namoros, a lusofonia será viável. Como no mundo biológico, ela
será viável se for fértil.
Fique
ressalvado, porém, um segundo aviso. Nós corremos, dentro de
Moçambique, o mesmo risco que a diversidade cultural do planeta
corre perante a cultura dos hambúrgueres e da Coca-Cola. E aqui,
meus senhores, aqui pode estar o tal crime que ando procurando para
tema.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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