segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Entre dúvidas e desconfianças

O lugar e o papel da língua portuguesa como língua oficial foram debatidos, em 1962, nesse primeiro congresso do movimento nacionalista. A maior parte das atas — incluindo a decisão de adotar o português como língua oficial — foram redigidas em inglês. Alguns dos quadros com formação escolar tinham estudado nos países vizinhos. O português é adotado não como uma herança, mas como o mais valioso troféu de guerra. Se a adoção do português foi um ato de soberania, já a criação da lusofonia não resultou de iniciativa própria de Moçambique.
A condição desta nossa família linguística parece ser esta: todos aceitaram vir ao baile, mas a música é emprestada de uma outra festa. Desde sempre, estivemos perante um processo de dúvidas e desconfianças, avanços e recuos nesta invenção de uma família linguística. Há uns dez anos, Moçambique levantou objecções sobre o modo como se olhava o idioma como elo. A designação de “países de língua oficial” nasce dessa controvérsia. Daí aquele desgraçado nome de P alops. A não menos infeliz sigla de CPLP é também resultado dessa briga familiar (CPLP: faltam vogais nesta sigla e as vogais, sabemos, são o açúcar da fala).
Afinal, tinha ainda passado pouco tempo da descolonização. E aqui é preciso adequar o sujeito ao verbo. Não foi Portugal que descolonizou os países africanos. A descolonização só pode ser feita pelos próprios colonizados. E nós todos éramos colonizados. Descolonizámo-nos uns aos outros, uns e outros. Tinha, enfim, passado pouco tempo sobre essa ruptura. Era natural que se perguntasse: quem é o patrão desta ideia? Obviamente, os países africanos não se podem reclamar da lusofonia de igual maneira que os portugueses e os brasileiros.
Certos setores da política portuguesa entraram em pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso?
As reações de algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo da síndrome do marido traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se pergunta: com quem é que ela anda agora?
(Moçambique andaria com o inglês. E ainda por cima que mau gosto, logo um inglês, com todos os fantasmas históricos que isso comporta. E aqui poderia estar, oportunistamente, uma outra linha de ficção policial. O crime, neste caso, poderia ser de adultério.)
Na realidade, as autoridades moçambicanas não mudaram a sua política linguística e o português permanecia na sua condição de língua oficial e unificadora. Fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que os quinhentos anos de colonização. Mas não o fez por causa de um projeto chamado lusofonia. Nem o fez para demonstrar nada aos outros ou para lançar culpas ao antigo colonizador. Fê-lo pelo seu próprio interesse nacional, pela defesa da coesão interna, pela construção da sua própria interioridade.
A lusofonia, essa que se quer que venha a ser nossa, não pode ser olhada como qualquer coisa em função de Portugal, ou de interesses de grupos portugueses. Engrandecer o lugar do antigo colonizador pode ser, afinal, uma posição de colonizado. Esse projecto só pode valer se ele nos ajudar a construir o futuro, se for uma ideia produtiva. E no nosso caso, a condição produtiva da ideia será resolvida dentro de Moçambique. A língua portuguesa não é ainda a língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da moçambicanidade.
Necessitamos de uma política da lusofonia, porque não somos ainda lusófonos. Quem é não precisa de proclamar o ser. Quem é, simplesmente é. Wole Soynka diz: “O tigre não precisa de proclamar a sua tigritude. Salta sobre a sua presa e exerce-se tigre”.
Parafraseando o português Eduardo Lourenço, a questão não é quanto os moçambicanos falam português mas quanto os moçambicanos são falados pelo português. E esse processo de apropriação recíproca está apenas começando.
Todos vocês, aqui, amam a vossa língua enquanto língua materna. Outros milhões de moçambicanos amam, com igual direito, as suas línguas maternas. Que são outras, que não o português.
Para que o projeto da lusofonia funcione em Moçambique, ele deve apoiar a defesa de outras culturas moçambicanas. Essas culturas e línguas de raiz bantu necessitam de sobreviver perante a hegemonia de uma certa uniformização. Mas essa sobrevivência não decorrerá do facto de realizarmos workshops e levantarmos bandeiras nostálgicas do passado e da tradição. Alguns idiomas de Moçambique extinguir-se-ão, e esse destino tiveram e continuam tendo milhares de outras línguas. Sobreviverão as línguas que estiverem na dinâmica da nossa própria modernidade, aquelas que souberem cruzar-se com o tempo, mestiçar-se com o português. E com o inglês. E com todas as línguas. Na medida em que estiver apta para esses namoros, a lusofonia será viável. Como no mundo biológico, ela será viável se for fértil.
Fique ressalvado, porém, um segundo aviso. Nós corremos, dentro de Moçambique, o mesmo risco que a diversidade cultural do planeta corre perante a cultura dos hambúrgueres e da Coca-Cola. E aqui, meus senhores, aqui pode estar o tal crime que ando procurando para tema.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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