terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Sobre a realidade do corpo

Eu jamais compreenderei por que se pôde chamar o corpo de ilusão - não mais do que compreenderei como se pôde conceber o espírito à parte do drama da vida, de suas contradições e de suas deficiências. Isto é, de toda evidência, não ter consciência da carne, dos nervos e de cada órgão. Incompreensível, me parece, tudo isto, ainda que eu desconfie que esta inconsciência seja uma condição essencial da felicidade. Aqueles que permanecem ligados à irracionalidade da vida, subservientes ao mesmo ritmo orgânico anterior à aparição da consciência, não percebem o estado em que a realidade corporal está ligada a esta mesma consciência. Tal ligação denota, com efeito, uma doença essencial da vida. Pois não é uma doença sentir constantemente suas pernas, seu estômago, seu coração, etc., de ter consciência da menor parte de seu corpo? A realidade do corpo é uma das mais assustadoras que existem. Eu gostaria de saber o que seria do espírito sem os tormentos da carne, ou a consciência sem uma grande sensibilidade dos nervos. Como se pode conceber a vida na ausência do corpo, como se pode imaginar uma existência autônoma e original do espírito? Pois o espírito é o fruto de uma desorganização da vida - tanto quanto o homem é um animal que traiu suas origens. A existência do espírito é uma anomalia da vida. Por que eu não renunciaria ao espírito? Esta renúncia não seria também uma doença do espírito, antes de ser uma doença da vida?
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Eu não sei o que é bem e o que é mal; o que é permitido e o que não é; eu não posso nem louvar, nem condenar. Neste mundo, nenhum critério ou princípio consistente. Surpreendo-me com que alguns ainda se preocupem com a teoria do conhecimento. Para ser sincero, eu deveria confessar que não dou a mínima para a relatividade do nosso saber, pois este mundo não merece ser conhecido. Às vezes me vem o sentimento de um saber integral que esgota todo o conteúdo do mundo, e às vezes eu não compreendo estritamente nada do que se passa em meu entorno. Eu sinto como um gosto pungente e uma amargura diabólica e bestial que fazem com que o problema da própria morte me pareça insosso. Eu me dou conta, pela primeira vez, do quanto esta amargura é difícil de definir. Isto vem, talvez, do fato de que eu também perca meu tempo em procurar fontes de ordem teórica, enquanto esta amargura procede de uma região eminentemente “pré-teórica”.
Nestes momentos, eu não creio em nada e não tenho nenhuma esperança. Tudo aquilo que faz o charme da vida me parece vazio de sentido. Eu não tenho nem o sentimento do passado, nem o do futuro; e o presente não me parece mais do que veneno. Eu não sei se estou desesperado, pois a ausência de qualquer esperança não é necessariamente o desespero. Nenhum qualificativo saberia definir-me, pois eu não tenho mais nada a perder. E dizer que eu perdi tudo no momento em que, ao redor de mim, tudo desperta. Como estou longe de tudo!
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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