Eu
jamais compreenderei por que se pôde chamar o corpo de ilusão - não
mais do que compreenderei como se pôde conceber o espírito à parte
do drama da vida, de suas contradições e de suas deficiências.
Isto é, de toda evidência, não ter consciência da carne, dos
nervos e de cada órgão. Incompreensível, me parece, tudo isto,
ainda que eu desconfie que esta inconsciência seja uma condição
essencial da felicidade. Aqueles que permanecem ligados à
irracionalidade da vida, subservientes ao mesmo ritmo orgânico
anterior à aparição da consciência, não percebem o estado em que
a realidade corporal está ligada a esta mesma consciência. Tal
ligação denota, com efeito, uma doença essencial da vida. Pois não
é uma doença sentir constantemente suas pernas, seu estômago, seu
coração, etc., de ter consciência da menor parte de seu corpo? A
realidade do corpo é uma das mais assustadoras que existem. Eu
gostaria de saber o que seria do espírito sem os tormentos da carne,
ou a consciência sem uma grande sensibilidade dos nervos. Como se
pode conceber a vida na ausência do corpo, como se pode imaginar uma
existência autônoma e original do espírito? Pois o espírito é o
fruto de uma desorganização da vida - tanto quanto o homem é um
animal que traiu suas origens. A existência do espírito é uma
anomalia da vida. Por que eu não renunciaria ao espírito? Esta
renúncia não seria também uma doença do espírito, antes de ser
uma doença da vida?
***
Eu
não sei o que é bem e o que é mal; o que é permitido e o que não
é; eu não posso nem louvar, nem condenar. Neste mundo, nenhum
critério ou princípio consistente. Surpreendo-me com que alguns
ainda se preocupem com a teoria do conhecimento. Para ser sincero, eu
deveria confessar que não dou a mínima para a relatividade do nosso
saber, pois este mundo não merece ser conhecido. Às vezes me vem o
sentimento de um saber integral que esgota todo o conteúdo do mundo,
e às vezes eu não compreendo estritamente nada do que se passa em
meu entorno. Eu sinto como um gosto pungente e uma amargura diabólica
e bestial que fazem com que o problema da própria morte me pareça
insosso. Eu me dou conta, pela primeira vez, do quanto esta amargura
é difícil de definir. Isto vem, talvez, do fato de que eu também
perca meu tempo em procurar fontes de ordem teórica, enquanto esta
amargura procede de uma região eminentemente “pré-teórica”.
Nestes
momentos, eu não creio em nada e não tenho nenhuma esperança. Tudo
aquilo que faz o charme da vida me parece vazio de sentido. Eu não
tenho nem o sentimento do passado, nem o do futuro; e o presente não
me parece mais do que veneno. Eu não sei se estou desesperado, pois
a ausência de qualquer esperança não é necessariamente o
desespero. Nenhum qualificativo saberia definir-me, pois eu não
tenho mais nada a perder. E dizer que eu perdi tudo no momento em
que, ao redor de mim, tudo desperta. Como estou longe de tudo!
Emil
Cioran, in Nos cumes do desespero
Nenhum comentário:
Postar um comentário