Este ensaio,
escrito em 1899, não tinha sido publicado previamente. Está aqui
reproduzido principalmente devido a seu interesse histórico, já que
representa a primeira revolta de Russell contra a filosofia
hegeliana, da qual era adepto ao entrar em Cambridge. Apesar de sua
oposição à religião não ser, naquele tempo, tão pronunciada
como ficaria a partir da Primeira Guerra Mundial, algumas de suas
críticas tinham as mesmas bases.
A filosofia, na
época em que ainda era gorda e próspera, alegava prestar, a seus
devotos, uma variedade de serviços dos mais importantes.
Oferecia-lhes conforto na adversidade, explicação na dificuldade
intelectual e orientação na perplexidade moral. Não é surpresa
nenhuma o fato de o novato, ao ser apresentado a um exemplo de seus
usos, exclamasse com o entusiasmo da juventude:
Mas como a
filosofia divina é atraente!
Não é severa
nem ranzinza, como os tolos obtusos supõem,
Mas tão musical
quanto o alaúde de Apolo.
Mas esses dias
felizes estão no passado. A filosofia, pelas vitórias vagarosas de
suas próprias crias, foi forçada a abandonar, uma por uma, suas
altas pretensões. Dificuldades intelectuais, em sua maior parte,
foram dominadas pela ciência – as alegações ansiosas da
filosofia a respeito de algumas questões excepcionais, que ela ainda
se esforça para responder, são vistas pela maior parte das pessoas
como resquícios da Idade das Trevas e estão sendo transferidas, com
toda a velocidade, para a ciência rígida do sr. F.W.H. Myers.
Perplexidades morais – que, até pouco tempo atrás, eram incluídas
pelos filósofos, sem hesitação, em seu próprio domínio – foram
abandonadas, por McTaggart e pelo sr. Bradley, aos caprichos das
estatísticas e do bom-senso. Mas o poder de prover conforto e
consolo – o derradeiro poder dos impotentes – continua
pertencendo à filosofia, como supõe McTaggart. E é exatamente essa
possessão que nesta noite desejo roubar aos pais decrépitos de
nossos deuses.
Pode parecer, à
primeira vista, que a questão poderia ser solucionada rapidamente.
“Sei que a filosofia pode proporcionar conforto”, McTaggart
poderia dizer, “porque com certeza ela me reconforta.” Tentarei
provar, no entanto, que essas conclusões que lhe trazem conforto são
conclusões que não se derivam de sua posição geral – de fato,
reconhecidamente não derivam dela, sendo mantidas, ao que parece,
apenas porque lhe trazem conforto.
Como não desejo
discutir a verdade da filosofia, mas apenas seu valor emocional, devo
partir de uma metafísica que se baseia na distinção entre
Aparência e Realidade e que considera a segunda atemporal e
perfeita. O princípio de qualquer metafísica desse tipo pode ser
resumido em poucas palavras. “Deus está no céu, tudo está errado
no mundo” – essa é sua última palavra. Mas parece supor-se que,
como Ele está em Seu céu, e sempre esteve lá, podemos esperar que
algum dia desça à terra – se não para julgar os vivos e os
mortos, pelo menos para recompensar a fé dos filósofos. Sua longa
resignação, no entanto, a uma existência puramente celestial,
parece sugerir, em relação aos assuntos terrenos, um estoicismo no
qual seria temerário basear nossas esperanças.
Mas falemos a
sério. O valor emocional de uma doutrina, como um conforto na
adversidade, parece depender de seu prognóstico do futuro. O futuro,
emocionalmente falando, é mais importante do que o passado, ou até
mesmo do que o presente. “Tudo está bem quando acaba bem”, é o
ditado do senso comum. “Muitas manhãs feias se transformam em um
lindo dia” não passa de otimismo; ao passo que o pessimismo diz:
Quantas manhãs
absolutamente gloriosas já vi
Adulando o topo
das montanhas com olho soberano,
Beijando com
face dourada as pradarias verdes,
Cobrindo riachos
pálidos com alquimia celestial,
E logo
permitindo às mais vis das nuvens percorrer
Com um feio
ancinho sua face celestial,
E do mundo
desamparado seu rosto esconder,
Fugindo
invisível para o oeste com esta desgraça.
E assim,
emocionalmente, nossa visão do universo em relação ao bom ou ao
mau depende do futuro, do que ele será; sempre nos preocupamos com o
que virá com o tempo, e, a menos que tenhamos certeza de que o
futuro será melhor do que o presente, é difícil enxergar onde
encontraremos consolo.
De fato, o futuro
está tão ligado ao otimismo que o próprio McTaggart, embora todo o
seu otimismo dependa da negação do tempo, sente-se compelido a
representar o Absoluto como um estado de coisas futuro, como uma
“harmonia que algum dia deve se tornar explícita”. Seria
indelicado apelar a essa contradição, já que foi o próprio
McTaggart quem me fez tomar consciência dela. Mas o que desejo
alegar é que qualquer conforto que se possa derivar da doutrina de
que a Realidade é atemporal e eternamente boa existe única e
exclusivamente por causa dessa contradição. Uma Realidade atemporal
não pode ter uma ligação mais íntima com o futuro do que tem com
o passado: se sua perfeição não apareceu até agora, não existe
razão para supor que algum dia aparecerá – aliás, é muitíssimo
provável que Deus permaneça em Seu céu. Podemos, com igual
propriedade, falar de uma harmonia que algum dia pode ter sido
explícita; pode ser que “meu desgosto está à frente e meu
regozijo ficou para trás” – e é óbvio que isso nos traria
muito pouco conforto.
Toda a nossa
experiência está ligada ao tempo; nem se poderia imaginar uma
experiência atemporal. Mas, mesmo que isso fosse possível, não
seríamos capazes, sem contradição, de supor que algum dia
viveremos tal experiência. Qualquer experiência, de acordo
com o que a filosofia pode mostrar, provavelmente se assemelhará à
experiência que conhecemos – se isso nos parece ruim, nenhuma
doutrina de uma Realidade distinta das Aparências pode nos dar
esperança de nada melhor. Caímos, de fato, em um dualismo
desesperado; por um lado, temos o mundo que conhecemos, com seus
acontecimentos agradáveis e desagradáveis, suas mortes, fracassos e
desgraças; por outro lado, um mundo imaginário, que batizamos de
mundo da Realidade, compensando, pela amplidão da Realidade, a
ausência de qualquer outro sinal de que tal mundo exista. Ora, nossa
única base para esse mundo de Realidade é o que a Realidade teria
de ser se fôssemos capazes de compreendê-la. Mas, se o resultado da
nossa construção puramente ideal revela-se bem diferente do mundo
que conhecemos – do mundo real, na verdade – se, além do mais,
apreendermos dessa mesma construção que jamais chegaremos a
experimentar o chamado mundo da Realidade, a menos que seja no
sentido de que já não experimentamos nada mais –, então não
consigo ver o quê, no que diz respeito ao conforto dos males
presentes, ganhamos com toda a nossa metafísica. Tomemos, por
exemplo, uma questão como a imortalidade. As pessoas desejaram a
imortalidade, seja como compensação para as injustiças deste
mundo, seja – o que é motivo mais respeitável – como
possibilidade de voltar a encontrar depois da morte aqueles que de
fato amaram. Esse último desejo é algo que todos sentimos e por
cuja satisfação, se a filosofia pudesse satisfazê-lo, deveríamos
nos sentir imensamente gratos. Mas a filosofia, na melhor das
hipóteses, só pode nos garantir que a alma é uma realidade
atemporal. Em que pontos do tempo ela poderá aparecer, se é que
aparecerá em algum tempo, é, portanto, completamente irrelevante, e
não há nenhuma interferência legítima, por parte de tal doutrina,
no que diz respeito à existência depois da morte. Keats pode
continuar desapontado:
Que jamais
tornarei a olhar-te,
Jamais ter-me-ei
regozijado no poder mágico
Do amor
irrefletido!
E não poderá ser
um grande consolo para ele ouvir que “criatura justa de uma hora”
não é uma frase exata do ponto de vista metafísico. É ainda
verdade que “O tempo virá para levar embora meu amor” e que
“Este pensamento é como uma morte que não tem outra escolha senão
chorar para ter aquilo que teme perder”. E assim acontece com todas
as partes das doutrinas da Realidade perfeita e atemporal. Tudo
aquilo que agora parece maligno – e a lamentável prerrogativa do
que é maligno é parecer que assim o é –, o que quer que agora
pareça maligno, poderá continuar, até onde sabemos, ao longo de
todo o tempo, a atormentar nossos últimos descendentes. E em tal
doutrina não existe, para mim, qualquer vestígio de conforto ou de
consolo.
É verdade que o
cristianismo, assim como todos os otimismos anteriores, representou o
mundo como eternamente governado por uma Providência benevolente e,
portanto, metafisicamente bondosa. Mas esse constituiu, no fundo,
apenas um recurso para comprovar a futura excelência do mundo –
para provar, por exemplo, que homens bons seriam felizes depois da
morte. Foi sempre essa dedução – feita de maneira ilegítima, é
claro – que forneceu conforto. “Ele é um bom camarada, por isso
tudo ficará bem.”
Pode-se dizer, de
fato, que existe conforto na mera doutrina abstrata de que a
Realidade é boa. Pessoalmente, não aceito a prova dessa doutrina,
mas, mesmo que verdadeira, não consigo ver por que ela deveria ser
reconfortante. Porque a essência da minha contenção é que a
Realidade, tal como é construída pela metafísica, não tem
qualquer tipo de relação com o mundo da experiência. Trata-se de
uma abstração vazia, a partir da qual nenhuma interferência
isolada pode ser feita, validamente, em relação ao mundo das
aparências, mundo no qual, não obstante, estão todos os nossos
interesses. Até mesmo o interesse puramente intelectual, do qual a
metafísica se origina, é um interesse por explicar o mundo das
aparências. Mas em vez de realmente explicar esse mundo verdadeiro,
palpável e sensível, a metafísica constrói um outro mundo
fundamentalmente diferente, tão diferente, tão desconectado da
experiência verdadeira, que o nosso mundo cotidiano continua sem ser
afetado inteiramente por ele e dá continuidade a seu caminho como se
não existisse absolutamente nenhum mundo da Realidade. Se ao menos
fosse possível considerar o mundo da Realidade como um “outro
mundo”, como uma cidade celestial que existisse em algum lugar nos
céus, poderia sem dúvida haver conforto na ideia de que outros
vivem a experiência perfeita que nos falta. Mas, se nos dizem que
tal nossa experiência, como a conhecemos, é a experiência
perfeita, isso nos deve deixar gelados, já que não pode provar que
nossa experiência é algo melhor do que é. Por outro lado, dizer
que nossa experiência não é de fato a experiência perfeita
construída pela filosofia é interromper o único tipo de existência
que a realidade filosófica pode ter – já que Deus, em Seu céu,
não pode ser concebido como pessoa isolada. Logo, ou nossa
experiência existente é perfeita – o que é uma frase vazia, pois
não a torna melhor do que antes –, ou não existe experiência
perfeita, e o nosso mundo da Realidade, que não é experimentado por
ninguém, existe apenas no livros de metafísica. Em qualquer um
desses casos, parece-me, não é possível encontrar na filosofia os
consolos da religião.
Existem, é claro,
diversas situações em que seria absurdo negar que a filosofia possa
nos dar conforto. Podemos encontrar no filosofar uma maneira
agradável de passar nossas manhãs – nesse sentido, o conforto
gerado pode até, em casos extremos, ser comparável àquele de beber
como maneira de passar as noites. Podemos, ainda, tomar a filosofia
do ponto de vista estético, como provavelmente a maior parte de nós
toma Spinoza. Podemos usar a metafísica, a exemplo da poesia e da
música, como meio de produzir uma disposição, de nos propiciar uma
certa visão do universo, uma certa atitude em relação à vida –
o estado de espírito resultante sendo avaliado em função, e na
proporção, do grau de emoção poética despertada, e não em
proporção à verdade das crenças alimentadas. Nossa satisfação,
de fato, parece ser, nessas disposições, o oposto exato das
profissões da metafísica. É a satisfação de esquecer o mundo
real e seus males, e de persuadir a nós mesmos, por um certo
momento, da realidade de um mundo que nós mesmos criamos. Essa
parece ser uma das premissas que Bradley usa para justificar a
metafísica. “Quando a poesia, a arte e a religião”, diz ele,
“tiverem deixado completamente de despertar interesse, ou quando
não mostrarem mais nenhuma tendência de lutar contra os problemas
extremos, chegando a um acordo com eles; quando a noção de mistério
e de encanto não mais levar a mente a vagar sem rumo e amar aquilo
que não sabe o que é; quando, em resumo, o crepúsculo deixar de
ter encanto – então a metafísica será inútil.” O que a
metafísica faz por nós é, nesse sentido, essencialmente o que,
digamos, A Tempestade faz por nós – mas seu valor, nesse
sentido, é bem independente de sua verdade. Não é porque a magia
de Próspero nos faz conhecer o mundo dos espíritos que valorizamos
A Tempestade; não é porque, esteticamente, somos informados
a respeito do mundo do espírito que valorizamos a metafísica. E
isso faz emergir a diferença essencial entre a satisfação
estética, que concedo à filosofia, e o conforto religioso, que lhe
nego. Para a satisfação estética, a convicção intelectual é
desnecessária, de modo que podemos escolher, quando assim
desejarmos, a metafísica que nos dê o máximo disso. Para o
conforto religioso, por outro lado, a crença é essencial, e estou
afirmando que não obtemos conforto religioso da metafísica em que
acreditamos.
É possível, no
entanto, introduzir um refinamento nesse argumento adotando-se uma
teoria mais ou menos mística da emoção estética. Pode-se defender
que, apesar de nunca sermos capazes de experimentar completamente a
Realidade como ela é de verdade, algumas experiências aproximam-se
dela mais do que outras, e tais experiências, pode-se dizer, são
propiciadas pela arte e pela filosofia. E, sob a influência das
experiências que a arte e a filosofia às vezes nos propiciam,
parece fácil adotar essa visão. Para aqueles que têm paixão pela
metafísica, provavelmente não existe emoção tão rica e linda,
tão completamente desejável, quanto a noção mística, que a
filosofia às vezes propicia, de um mundo transformado pela visão
beatífica. Como Bradley diz, ainda, “Alguns de um modo, outros de
outro, parece que tocamos as coisas que existem além do mundo
visível e que entramos em comunhão com elas. De diversas maneiras
encontramos algo mais elevado, que tanto nos sustenta quanto nos
humilha, tanto nos castra quanto nos apoia. E, em algumas pessoas, o
esforço intelectual para compreender o Universo é uma das maneiras
principais para assim experimentar a Divindade. (...) E isso parece
ser”, ele prossegue, “outra razão para que algumas pessoas se
dediquem ao estudo da verdade suprema.”
Mas será que
também não é essa uma razão para esperar que tais pessoas não
encontrem a verdade suprema? Se é que de fato a verdade suprema
carrega qualquer semelhança com as doutrinas apresentadas em
Appearance and Reality. Não nego o valor da emoção, mas
nego sim que, rigorosamente falando, seja ela, em qualquer sentido
específico, uma visão beatífica ou uma experiência relativa à
Divindade. Em certo sentido, é claro, toda experiência é uma
experiência relativa à Divindade, mas, em outro, como toda
experiência se acha igualmente no tempo, e a Divindade é atemporal,
nenhuma experiência é a experiência da Divindade – “como tal”,
eu teria que completar, não sem pedantismo. O abismo entre a
Aparência e a Realidade é tão profundo que não temos qualquer
base, até onde posso ver, para considerar algumas experiências mais
próximas do que outras da experiência perfeita da Realidade. O
valor das experiências em questão deve, portanto, basear-se
inteiramente em sua qualidade emocional, e não, como Bradley parece
sugerir, em algum grau superior de verdade que se possa atribuir a
elas. Mas, se assim é, elas são, no máximo, os consolos da
filosofice, e não da filosofia. Constituem uma razão para a busca
da verdade derradeira, já que são flores que devem ser colhidas ao
longo do caminho; mas não constituem uma recompensa por sua
obtenção, já que como tudo parece sugerir, as flores só crescem
no início da estrada, desaparecendo muito antes de termos alcançado
o final da nossa jornada.
A visão que
defendi sem dúvida não é inspiradora, nem algo que, se aceito de
maneira generalizada, provavelmente incentivaria o estudo da
filosofia. Eu poderia justificar meu texto, se assim o desejasse, com
a máxima de que “onde tudo está podre, é função do homem
gritar peixe fedido”. Mas prefiro sugerir que a metafísica, quando
busca ocupar o lugar da religião, realmente entendeu sua missão de
maneira errada. Que seja capaz de ocupar esse lugar eu admito; mas
ela o faz, afirmo, à custa de ser uma má metafísica. Por que não
reconhecer que a metafísica, assim como a ciência, justifica-se
pela curiosidade intelectual, devendo ser guiada apenas pela
curiosidade intelectual? O desejo de encontrar conforto na metafísica
produziu, todos precisamos reconhecer, uma grande quantidade de
raciocínio falacioso e de desonestidade intelectual. Disso, pelo
menos, o abandono da religião nos livraria. E, como a curiosidade
intelectual existe em algumas pessoas, é provável que servisse para
libertá-las de certas ilusões que persistem até hoje. “O homem”,
para citar Bradley mais uma vez, “cuja natureza é tal que pretende
consumar seu principal desejo por um único caminho, vai tentar
encontrá-lo nesse caminho, seja qual for ele, e independentemente do
que o mundo ache disso; se não o fizer, será um homem desprezível.”
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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