sábado, 4 de agosto de 2018

Parece, madame? Que nada, é

Este ensaio, escrito em 1899, não tinha sido publicado previamente. Está aqui reproduzido principalmente devido a seu interesse histórico, já que representa a primeira revolta de Russell contra a filosofia hegeliana, da qual era adepto ao entrar em Cambridge. Apesar de sua oposição à religião não ser, naquele tempo, tão pronunciada como ficaria a partir da Primeira Guerra Mundial, algumas de suas críticas tinham as mesmas bases.

A filosofia, na época em que ainda era gorda e próspera, alegava prestar, a seus devotos, uma variedade de serviços dos mais importantes. Oferecia-lhes conforto na adversidade, explicação na dificuldade intelectual e orientação na perplexidade moral. Não é surpresa nenhuma o fato de o novato, ao ser apresentado a um exemplo de seus usos, exclamasse com o entusiasmo da juventude:

Mas como a filosofia divina é atraente!
Não é severa nem ranzinza, como os tolos obtusos supõem,
Mas tão musical quanto o alaúde de Apolo.

Mas esses dias felizes estão no passado. A filosofia, pelas vitórias vagarosas de suas próprias crias, foi forçada a abandonar, uma por uma, suas altas pretensões. Dificuldades intelectuais, em sua maior parte, foram dominadas pela ciência – as alegações ansiosas da filosofia a respeito de algumas questões excepcionais, que ela ainda se esforça para responder, são vistas pela maior parte das pessoas como resquícios da Idade das Trevas e estão sendo transferidas, com toda a velocidade, para a ciência rígida do sr. F.W.H. Myers. Perplexidades morais – que, até pouco tempo atrás, eram incluídas pelos filósofos, sem hesitação, em seu próprio domínio – foram abandonadas, por McTaggart e pelo sr. Bradley, aos caprichos das estatísticas e do bom-senso. Mas o poder de prover conforto e consolo – o derradeiro poder dos impotentes – continua pertencendo à filosofia, como supõe McTaggart. E é exatamente essa possessão que nesta noite desejo roubar aos pais decrépitos de nossos deuses.
Pode parecer, à primeira vista, que a questão poderia ser solucionada rapidamente. “Sei que a filosofia pode proporcionar conforto”, McTaggart poderia dizer, “porque com certeza ela me reconforta.” Tentarei provar, no entanto, que essas conclusões que lhe trazem conforto são conclusões que não se derivam de sua posição geral – de fato, reconhecidamente não derivam dela, sendo mantidas, ao que parece, apenas porque lhe trazem conforto.
Como não desejo discutir a verdade da filosofia, mas apenas seu valor emocional, devo partir de uma metafísica que se baseia na distinção entre Aparência e Realidade e que considera a segunda atemporal e perfeita. O princípio de qualquer metafísica desse tipo pode ser resumido em poucas palavras. “Deus está no céu, tudo está errado no mundo” – essa é sua última palavra. Mas parece supor-se que, como Ele está em Seu céu, e sempre esteve lá, podemos esperar que algum dia desça à terra – se não para julgar os vivos e os mortos, pelo menos para recompensar a fé dos filósofos. Sua longa resignação, no entanto, a uma existência puramente celestial, parece sugerir, em relação aos assuntos terrenos, um estoicismo no qual seria temerário basear nossas esperanças.
Mas falemos a sério. O valor emocional de uma doutrina, como um conforto na adversidade, parece depender de seu prognóstico do futuro. O futuro, emocionalmente falando, é mais importante do que o passado, ou até mesmo do que o presente. “Tudo está bem quando acaba bem”, é o ditado do senso comum. “Muitas manhãs feias se transformam em um lindo dia” não passa de otimismo; ao passo que o pessimismo diz:

Quantas manhãs absolutamente gloriosas já vi
Adulando o topo das montanhas com olho soberano,
Beijando com face dourada as pradarias verdes,
Cobrindo riachos pálidos com alquimia celestial,
E logo permitindo às mais vis das nuvens percorrer
Com um feio ancinho sua face celestial,
E do mundo desamparado seu rosto esconder,
Fugindo invisível para o oeste com esta desgraça.

E assim, emocionalmente, nossa visão do universo em relação ao bom ou ao mau depende do futuro, do que ele será; sempre nos preocupamos com o que virá com o tempo, e, a menos que tenhamos certeza de que o futuro será melhor do que o presente, é difícil enxergar onde encontraremos consolo.
De fato, o futuro está tão ligado ao otimismo que o próprio McTaggart, embora todo o seu otimismo dependa da negação do tempo, sente-se compelido a representar o Absoluto como um estado de coisas futuro, como uma “harmonia que algum dia deve se tornar explícita”. Seria indelicado apelar a essa contradição, já que foi o próprio McTaggart quem me fez tomar consciência dela. Mas o que desejo alegar é que qualquer conforto que se possa derivar da doutrina de que a Realidade é atemporal e eternamente boa existe única e exclusivamente por causa dessa contradição. Uma Realidade atemporal não pode ter uma ligação mais íntima com o futuro do que tem com o passado: se sua perfeição não apareceu até agora, não existe razão para supor que algum dia aparecerá – aliás, é muitíssimo provável que Deus permaneça em Seu céu. Podemos, com igual propriedade, falar de uma harmonia que algum dia pode ter sido explícita; pode ser que “meu desgosto está à frente e meu regozijo ficou para trás” – e é óbvio que isso nos traria muito pouco conforto.
Toda a nossa experiência está ligada ao tempo; nem se poderia imaginar uma experiência atemporal. Mas, mesmo que isso fosse possível, não seríamos capazes, sem contradição, de supor que algum dia viveremos tal experiência. Qualquer experiência, de acordo com o que a filosofia pode mostrar, provavelmente se assemelhará à experiência que conhecemos – se isso nos parece ruim, nenhuma doutrina de uma Realidade distinta das Aparências pode nos dar esperança de nada melhor. Caímos, de fato, em um dualismo desesperado; por um lado, temos o mundo que conhecemos, com seus acontecimentos agradáveis e desagradáveis, suas mortes, fracassos e desgraças; por outro lado, um mundo imaginário, que batizamos de mundo da Realidade, compensando, pela amplidão da Realidade, a ausência de qualquer outro sinal de que tal mundo exista. Ora, nossa única base para esse mundo de Realidade é o que a Realidade teria de ser se fôssemos capazes de compreendê-la. Mas, se o resultado da nossa construção puramente ideal revela-se bem diferente do mundo que conhecemos – do mundo real, na verdade – se, além do mais, apreendermos dessa mesma construção que jamais chegaremos a experimentar o chamado mundo da Realidade, a menos que seja no sentido de que já não experimentamos nada mais –, então não consigo ver o quê, no que diz respeito ao conforto dos males presentes, ganhamos com toda a nossa metafísica. Tomemos, por exemplo, uma questão como a imortalidade. As pessoas desejaram a imortalidade, seja como compensação para as injustiças deste mundo, seja – o que é motivo mais respeitável – como possibilidade de voltar a encontrar depois da morte aqueles que de fato amaram. Esse último desejo é algo que todos sentimos e por cuja satisfação, se a filosofia pudesse satisfazê-lo, deveríamos nos sentir imensamente gratos. Mas a filosofia, na melhor das hipóteses, só pode nos garantir que a alma é uma realidade atemporal. Em que pontos do tempo ela poderá aparecer, se é que aparecerá em algum tempo, é, portanto, completamente irrelevante, e não há nenhuma interferência legítima, por parte de tal doutrina, no que diz respeito à existência depois da morte. Keats pode continuar desapontado:

Que jamais tornarei a olhar-te,
Jamais ter-me-ei regozijado no poder mágico
Do amor irrefletido!

E não poderá ser um grande consolo para ele ouvir que “criatura justa de uma hora” não é uma frase exata do ponto de vista metafísico. É ainda verdade que “O tempo virá para levar embora meu amor” e que “Este pensamento é como uma morte que não tem outra escolha senão chorar para ter aquilo que teme perder”. E assim acontece com todas as partes das doutrinas da Realidade perfeita e atemporal. Tudo aquilo que agora parece maligno – e a lamentável prerrogativa do que é maligno é parecer que assim o é –, o que quer que agora pareça maligno, poderá continuar, até onde sabemos, ao longo de todo o tempo, a atormentar nossos últimos descendentes. E em tal doutrina não existe, para mim, qualquer vestígio de conforto ou de consolo.
É verdade que o cristianismo, assim como todos os otimismos anteriores, representou o mundo como eternamente governado por uma Providência benevolente e, portanto, metafisicamente bondosa. Mas esse constituiu, no fundo, apenas um recurso para comprovar a futura excelência do mundo – para provar, por exemplo, que homens bons seriam felizes depois da morte. Foi sempre essa dedução – feita de maneira ilegítima, é claro – que forneceu conforto. “Ele é um bom camarada, por isso tudo ficará bem.”
Pode-se dizer, de fato, que existe conforto na mera doutrina abstrata de que a Realidade é boa. Pessoalmente, não aceito a prova dessa doutrina, mas, mesmo que verdadeira, não consigo ver por que ela deveria ser reconfortante. Porque a essência da minha contenção é que a Realidade, tal como é construída pela metafísica, não tem qualquer tipo de relação com o mundo da experiência. Trata-se de uma abstração vazia, a partir da qual nenhuma interferência isolada pode ser feita, validamente, em relação ao mundo das aparências, mundo no qual, não obstante, estão todos os nossos interesses. Até mesmo o interesse puramente intelectual, do qual a metafísica se origina, é um interesse por explicar o mundo das aparências. Mas em vez de realmente explicar esse mundo verdadeiro, palpável e sensível, a metafísica constrói um outro mundo fundamentalmente diferente, tão diferente, tão desconectado da experiência verdadeira, que o nosso mundo cotidiano continua sem ser afetado inteiramente por ele e dá continuidade a seu caminho como se não existisse absolutamente nenhum mundo da Realidade. Se ao menos fosse possível considerar o mundo da Realidade como um “outro mundo”, como uma cidade celestial que existisse em algum lugar nos céus, poderia sem dúvida haver conforto na ideia de que outros vivem a experiência perfeita que nos falta. Mas, se nos dizem que tal nossa experiência, como a conhecemos, é a experiência perfeita, isso nos deve deixar gelados, já que não pode provar que nossa experiência é algo melhor do que é. Por outro lado, dizer que nossa experiência não é de fato a experiência perfeita construída pela filosofia é interromper o único tipo de existência que a realidade filosófica pode ter – já que Deus, em Seu céu, não pode ser concebido como pessoa isolada. Logo, ou nossa experiência existente é perfeita – o que é uma frase vazia, pois não a torna melhor do que antes –, ou não existe experiência perfeita, e o nosso mundo da Realidade, que não é experimentado por ninguém, existe apenas no livros de metafísica. Em qualquer um desses casos, parece-me, não é possível encontrar na filosofia os consolos da religião.
Existem, é claro, diversas situações em que seria absurdo negar que a filosofia possa nos dar conforto. Podemos encontrar no filosofar uma maneira agradável de passar nossas manhãs – nesse sentido, o conforto gerado pode até, em casos extremos, ser comparável àquele de beber como maneira de passar as noites. Podemos, ainda, tomar a filosofia do ponto de vista estético, como provavelmente a maior parte de nós toma Spinoza. Podemos usar a metafísica, a exemplo da poesia e da música, como meio de produzir uma disposição, de nos propiciar uma certa visão do universo, uma certa atitude em relação à vida – o estado de espírito resultante sendo avaliado em função, e na proporção, do grau de emoção poética despertada, e não em proporção à verdade das crenças alimentadas. Nossa satisfação, de fato, parece ser, nessas disposições, o oposto exato das profissões da metafísica. É a satisfação de esquecer o mundo real e seus males, e de persuadir a nós mesmos, por um certo momento, da realidade de um mundo que nós mesmos criamos. Essa parece ser uma das premissas que Bradley usa para justificar a metafísica. “Quando a poesia, a arte e a religião”, diz ele, “tiverem deixado completamente de despertar interesse, ou quando não mostrarem mais nenhuma tendência de lutar contra os problemas extremos, chegando a um acordo com eles; quando a noção de mistério e de encanto não mais levar a mente a vagar sem rumo e amar aquilo que não sabe o que é; quando, em resumo, o crepúsculo deixar de ter encanto – então a metafísica será inútil.” O que a metafísica faz por nós é, nesse sentido, essencialmente o que, digamos, A Tempestade faz por nós – mas seu valor, nesse sentido, é bem independente de sua verdade. Não é porque a magia de Próspero nos faz conhecer o mundo dos espíritos que valorizamos A Tempestade; não é porque, esteticamente, somos informados a respeito do mundo do espírito que valorizamos a metafísica. E isso faz emergir a diferença essencial entre a satisfação estética, que concedo à filosofia, e o conforto religioso, que lhe nego. Para a satisfação estética, a convicção intelectual é desnecessária, de modo que podemos escolher, quando assim desejarmos, a metafísica que nos dê o máximo disso. Para o conforto religioso, por outro lado, a crença é essencial, e estou afirmando que não obtemos conforto religioso da metafísica em que acreditamos.
É possível, no entanto, introduzir um refinamento nesse argumento adotando-se uma teoria mais ou menos mística da emoção estética. Pode-se defender que, apesar de nunca sermos capazes de experimentar completamente a Realidade como ela é de verdade, algumas experiências aproximam-se dela mais do que outras, e tais experiências, pode-se dizer, são propiciadas pela arte e pela filosofia. E, sob a influência das experiências que a arte e a filosofia às vezes nos propiciam, parece fácil adotar essa visão. Para aqueles que têm paixão pela metafísica, provavelmente não existe emoção tão rica e linda, tão completamente desejável, quanto a noção mística, que a filosofia às vezes propicia, de um mundo transformado pela visão beatífica. Como Bradley diz, ainda, “Alguns de um modo, outros de outro, parece que tocamos as coisas que existem além do mundo visível e que entramos em comunhão com elas. De diversas maneiras encontramos algo mais elevado, que tanto nos sustenta quanto nos humilha, tanto nos castra quanto nos apoia. E, em algumas pessoas, o esforço intelectual para compreender o Universo é uma das maneiras principais para assim experimentar a Divindade. (...) E isso parece ser”, ele prossegue, “outra razão para que algumas pessoas se dediquem ao estudo da verdade suprema.”
Mas será que também não é essa uma razão para esperar que tais pessoas não encontrem a verdade suprema? Se é que de fato a verdade suprema carrega qualquer semelhança com as doutrinas apresentadas em Appearance and Reality. Não nego o valor da emoção, mas nego sim que, rigorosamente falando, seja ela, em qualquer sentido específico, uma visão beatífica ou uma experiência relativa à Divindade. Em certo sentido, é claro, toda experiência é uma experiência relativa à Divindade, mas, em outro, como toda experiência se acha igualmente no tempo, e a Divindade é atemporal, nenhuma experiência é a experiência da Divindade – “como tal”, eu teria que completar, não sem pedantismo. O abismo entre a Aparência e a Realidade é tão profundo que não temos qualquer base, até onde posso ver, para considerar algumas experiências mais próximas do que outras da experiência perfeita da Realidade. O valor das experiências em questão deve, portanto, basear-se inteiramente em sua qualidade emocional, e não, como Bradley parece sugerir, em algum grau superior de verdade que se possa atribuir a elas. Mas, se assim é, elas são, no máximo, os consolos da filosofice, e não da filosofia. Constituem uma razão para a busca da verdade derradeira, já que são flores que devem ser colhidas ao longo do caminho; mas não constituem uma recompensa por sua obtenção, já que como tudo parece sugerir, as flores só crescem no início da estrada, desaparecendo muito antes de termos alcançado o final da nossa jornada.
A visão que defendi sem dúvida não é inspiradora, nem algo que, se aceito de maneira generalizada, provavelmente incentivaria o estudo da filosofia. Eu poderia justificar meu texto, se assim o desejasse, com a máxima de que “onde tudo está podre, é função do homem gritar peixe fedido”. Mas prefiro sugerir que a metafísica, quando busca ocupar o lugar da religião, realmente entendeu sua missão de maneira errada. Que seja capaz de ocupar esse lugar eu admito; mas ela o faz, afirmo, à custa de ser uma má metafísica. Por que não reconhecer que a metafísica, assim como a ciência, justifica-se pela curiosidade intelectual, devendo ser guiada apenas pela curiosidade intelectual? O desejo de encontrar conforto na metafísica produziu, todos precisamos reconhecer, uma grande quantidade de raciocínio falacioso e de desonestidade intelectual. Disso, pelo menos, o abandono da religião nos livraria. E, como a curiosidade intelectual existe em algumas pessoas, é provável que servisse para libertá-las de certas ilusões que persistem até hoje. “O homem”, para citar Bradley mais uma vez, “cuja natureza é tal que pretende consumar seu principal desejo por um único caminho, vai tentar encontrá-lo nesse caminho, seja qual for ele, e independentemente do que o mundo ache disso; se não o fizer, será um homem desprezível.”
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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