“O que é que
você diria de um médico que espreme um furúnculo? Espremido o
furúnculo, o pus espirra e o seu mau cheiro empesteia o ar. De quem
é o fedor? Do furúnculo ou do médico? Eu sou um espremedor de
furúnculos. As pessoas sentem o fedor e acham que o mau cheiro é
meu. Não se dão conta de que o mau cheiro é deles... Deus cria. Eu
testo.
“Hoje, no mundo
moderno, essa função tem o nome de ‘controle de qualidade’.
Empresa que não controla a qualidade dos seus produtos vai à
falência. Eu sou o encarregado do controle de qualidade deste mundo
de Deus. O pedreiro meia-colher faz uma parede fora do prumo. Eu
olho, vejo a parede torta, vou lá e derrubo a parede. Se a casa
fosse sua você permitiria que a parede continuasse? Sou malvado por
proceder assim? E na fábrica de porcelanas eu vou batendo nos pratos
para ver se não há trincas. Se o prato faz música desafinada, eu
não tenho pena: quebro o prato. No mundo de Deus tudo tem de ser
perfeito. Vou visitar a sua casa, linda, lustrosa, perfumada. Um
visitante normal ficaria na sala de visitas. Mas eu sou abelhudo: vou
logo espiar debaixo da cama para ver se a vassoura fez a limpeza
devida. Se está suja, eu dou um sopro forte e as pulgas começam a
pular. Eu sou o culpado? Fui eu que criei as pulgas? Me acusam de
malcheiroso, sulfuroso, expelidor de gases fétidos. Errado. Eu só
cutuco. A fedentina não é minha. Perguntem a Freud. Os
psicanalistas fazem o mesmo que eu. Freud diria que estou certo. Não
sou eu que ponho demônios dentro dos homens. São eles, os homens,
que os chamam, alimentam e abrigam. Eu só abro os quartos e os
demônios saem. Me digam: sou eu o culpado?
“Levo minha
missão a sério. Carrego sempre comigo os meus instrumentos de
teste, uma bigorna e um martelo. Deus testou a fé de Abraão. Teste
duro. Acho até que Jeová exagerou. Ordenou que ele sacrificasse o
seu único filho adolescente sobre um altar. E o pior: ele levou a
ordem de Deus a sério e levou o menino para o monte Moriá para
cortar o seu pescoço. Se Deus lhe pedisse, pessoa religiosa, que
você cortasse o pescoço do seu filho, você obedeceria? Eu
concluiria que Jeová tinha endoidado e tratava de procurar um Deus
menos sanguinário. Mas não era para levar a sério. Era só um
teste.
“Foi isso também
que o Espírito de Deus fez com Jesus. Empurrou-o para um deserto,
lugar de solidão. Para quê? Para ser testado por mim. E o teste
foram quarenta dias sem comer.
“Sou eu quem diz
a palavra final sobre a qualidade dos homens e das mulheres. Minha
bigorna e o meu martelo dizem sempre a verdade.
“Um dos meus
alunos mais brilhantes, Sigmund Freud, empreendeu a tremenda tarefa
de transformar a ‘arte do teste’ em ‘ciência do teste’. Ele
pensava — e nisso estava certo — que somos como os bordados.
Bordados têm um lado direito bonito que se mostra às pessoas, e um
lado avesso, que é uma barafunda de linhas. Temos um lado direito
que mostramos para todo mundo, e um lado do avesso, que escondemos. A
ciência que ele criou, a que deu o nome de psicanálise, análise da
alma, é uma série de artifícios para se ver o lado do avesso da
pessoa que ela tenta desesperadamente esconder. Quando lhe chegava um
paciente todo produzido, ele logo lhe pedia: ‘Mostre-me o seu
traseiro...’.
“Essa é a minha
tarefa: mostrar o traseiro das pessoas...
“Os pregadores
não entendem. Quando veem uma pessoa estrebuchando, babando espumas,
caindo no chão e rosnando como porco, dizem logo: ‘Está possuída
pelo Demônio...’. E se põem a exorcizar-me. Mas aquela coisa
horrível não sou eu. Como você pode ver, eu sou educado e
elegante. Aquela pessoa está possuída pelo seu próprio traseiro...
“Sabe que isso
vale também para a literatura? Os textos têm um lado direito e um
lado avesso. A Adélia Prado, mulher religiosa, certa de que a poesia
a salvaria, dizia que o seu caminho na poesia era ‘o caminho
apócrifo de entender a palavra pelo seu reverso, captar a mensagem
pelo arauto...’ (Adélia Prado, Poesia reunida, p. 61).
“Um outro
especialista em ver as coisas pelo avesso foi o filósofo Friedrich
Nietzsche. Tinha uma sabedoria de milênios e uma alma de menino. Mas
ele me fez uma injustiça. Disse que Deus é riso e que eu sou
seriedade: Deus faz voar e eu faço afundar... Nada mais longe da
verdade. O traseiro sempre provoca riso. Drummond entendeu melhor.
Veja o que ele escreveu do traseiro: ‘A bunda, que engraçada, está
sempre sorrindo. Não lhe importa o que vai pela frente do corpo. A
bunda basta-se. A bunda se diverte por conta própria. Lá vai
sorrindo a bunda...’ (Amor natural, p. 25).
“Os judeus são
sábios. Dizem que Deus ri. Certo. Tudo deve rir. O avesso faz rir. É
feito piada. Vai o contador contando sua anedota, lado direito e, de
repente, ele dá uma cambalhota, o avesso aparece no final,
surpreendendo a todos os que ouvem. E o riso explode.
“Pois Deus,
cansado da seriedade dos homens que não sabem ver o avesso, pediu-me
que contasse algumas das estórias bíblicas, pelo avesso. São
tantas as estórias: a estória que prova que Deus é carnívoro e
despreza os vegetarianos, do amor de Deus pelos carecas, do jegue que
falou hebraico, do peixe que engoliu um homem sem mastigar e não
ficou engasgado, da rainha que gostava de comer galetos al primo
canto, da terapia alternativa para curar velhos agonizantes, do monte
dos prepúcios, do primeiro homem-bomba...”
Com essas palavras,
ele terminou a conversa e disse: “Agora tenho de ir. Outro dia eu
volto. Gosto de conversar com você. Você me entende. Até domingo
que vem...”.
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário