segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Conversa com o Diabo - II

O que é que você diria de um médico que espreme um furúnculo? Espremido o furúnculo, o pus espirra e o seu mau cheiro empesteia o ar. De quem é o fedor? Do furúnculo ou do médico? Eu sou um espremedor de furúnculos. As pessoas sentem o fedor e acham que o mau cheiro é meu. Não se dão conta de que o mau cheiro é deles... Deus cria. Eu testo.
Hoje, no mundo moderno, essa função tem o nome de ‘controle de qualidade’. Empresa que não controla a qualidade dos seus produtos vai à falência. Eu sou o encarregado do controle de qualidade deste mundo de Deus. O pedreiro meia-colher faz uma parede fora do prumo. Eu olho, vejo a parede torta, vou lá e derrubo a parede. Se a casa fosse sua você permitiria que a parede continuasse? Sou malvado por proceder assim? E na fábrica de porcelanas eu vou batendo nos pratos para ver se não há trincas. Se o prato faz música desafinada, eu não tenho pena: quebro o prato. No mundo de Deus tudo tem de ser perfeito. Vou visitar a sua casa, linda, lustrosa, perfumada. Um visitante normal ficaria na sala de visitas. Mas eu sou abelhudo: vou logo espiar debaixo da cama para ver se a vassoura fez a limpeza devida. Se está suja, eu dou um sopro forte e as pulgas começam a pular. Eu sou o culpado? Fui eu que criei as pulgas? Me acusam de malcheiroso, sulfuroso, expelidor de gases fétidos. Errado. Eu só cutuco. A fedentina não é minha. Perguntem a Freud. Os psicanalistas fazem o mesmo que eu. Freud diria que estou certo. Não sou eu que ponho demônios dentro dos homens. São eles, os homens, que os chamam, alimentam e abrigam. Eu só abro os quartos e os demônios saem. Me digam: sou eu o culpado?
Levo minha missão a sério. Carrego sempre comigo os meus instrumentos de teste, uma bigorna e um martelo. Deus testou a fé de Abraão. Teste duro. Acho até que Jeová exagerou. Ordenou que ele sacrificasse o seu único filho adolescente sobre um altar. E o pior: ele levou a ordem de Deus a sério e levou o menino para o monte Moriá para cortar o seu pescoço. Se Deus lhe pedisse, pessoa religiosa, que você cortasse o pescoço do seu filho, você obedeceria? Eu concluiria que Jeová tinha endoidado e tratava de procurar um Deus menos sanguinário. Mas não era para levar a sério. Era só um teste.
Foi isso também que o Espírito de Deus fez com Jesus. Empurrou-o para um deserto, lugar de solidão. Para quê? Para ser testado por mim. E o teste foram quarenta dias sem comer.
Sou eu quem diz a palavra final sobre a qualidade dos homens e das mulheres. Minha bigorna e o meu martelo dizem sempre a verdade.
Um dos meus alunos mais brilhantes, Sigmund Freud, empreendeu a tremenda tarefa de transformar a ‘arte do teste’ em ‘ciência do teste’. Ele pensava — e nisso estava certo — que somos como os bordados. Bordados têm um lado direito bonito que se mostra às pessoas, e um lado avesso, que é uma barafunda de linhas. Temos um lado direito que mostramos para todo mundo, e um lado do avesso, que escondemos. A ciência que ele criou, a que deu o nome de psicanálise, análise da alma, é uma série de artifícios para se ver o lado do avesso da pessoa que ela tenta desesperadamente esconder. Quando lhe chegava um paciente todo produzido, ele logo lhe pedia: ‘Mostre-me o seu traseiro...’.
Essa é a minha tarefa: mostrar o traseiro das pessoas...
Os pregadores não entendem. Quando veem uma pessoa estrebuchando, babando espumas, caindo no chão e rosnando como porco, dizem logo: ‘Está possuída pelo Demônio...’. E se põem a exorcizar-me. Mas aquela coisa horrível não sou eu. Como você pode ver, eu sou educado e elegante. Aquela pessoa está possuída pelo seu próprio traseiro...
Sabe que isso vale também para a literatura? Os textos têm um lado direito e um lado avesso. A Adélia Prado, mulher religiosa, certa de que a poesia a salvaria, dizia que o seu caminho na poesia era ‘o caminho apócrifo de entender a palavra pelo seu reverso, captar a mensagem pelo arauto...’ (Adélia Prado, Poesia reunida, p. 61).
Um outro especialista em ver as coisas pelo avesso foi o filósofo Friedrich Nietzsche. Tinha uma sabedoria de milênios e uma alma de menino. Mas ele me fez uma injustiça. Disse que Deus é riso e que eu sou seriedade: Deus faz voar e eu faço afundar... Nada mais longe da verdade. O traseiro sempre provoca riso. Drummond entendeu melhor. Veja o que ele escreveu do traseiro: ‘A bunda, que engraçada, está sempre sorrindo. Não lhe importa o que vai pela frente do corpo. A bunda basta-se. A bunda se diverte por conta própria. Lá vai sorrindo a bunda...’ (Amor natural, p. 25).
Os judeus são sábios. Dizem que Deus ri. Certo. Tudo deve rir. O avesso faz rir. É feito piada. Vai o contador contando sua anedota, lado direito e, de repente, ele dá uma cambalhota, o avesso aparece no final, surpreendendo a todos os que ouvem. E o riso explode.
Pois Deus, cansado da seriedade dos homens que não sabem ver o avesso, pediu-me que contasse algumas das estórias bíblicas, pelo avesso. São tantas as estórias: a estória que prova que Deus é carnívoro e despreza os vegetarianos, do amor de Deus pelos carecas, do jegue que falou hebraico, do peixe que engoliu um homem sem mastigar e não ficou engasgado, da rainha que gostava de comer galetos al primo canto, da terapia alternativa para curar velhos agonizantes, do monte dos prepúcios, do primeiro homem-bomba...”
Com essas palavras, ele terminou a conversa e disse: “Agora tenho de ir. Outro dia eu volto. Gosto de conversar com você. Você me entende. Até domingo que vem...”.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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