quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Abundio Martínez

O que, você não foi ver o padre Rentería?
Fui. Mas me informaram que andava pelos montes.
Em qual monte?
Pois por esses ermos. A senhora sabe que andam na rebelião.
Quer dizer que ele também? Pobres de nós, Abundio.
Essa história não nos importa nada, mamãe Villa. Isso aí e nada para nós dá no mesmo. Sirva mais um. Assim meio disfarçado, já que o Gamaliel está é dormindo.
Mas não se esqueça de pedir à Refugio que rogue a Deus por mim, que necessito tanto.
Nem se angustie. É chegar e dizer. E até vou arrancar dela a promessa apalavrada, para o caso de ser necessário e para que a senhora deixe de aflições.
Isso, é isso mesmo que você deve fazer. Porque você sabe como as mulheres são. Assim, é preciso exigir delas que cumpram em seguidinha o combinado.
Abundio Martínez deixou outros 20 centavos em cima do balcão.
Pois me dá o outro meio litro, mãe Villa. E se quiser me dar ainda mais outro bocadinho, pois aí é assunto da senhora. A única coisa que eu lhe prometo é que este, sim, irei beber ao lado da finadinha; ao lado da minha Cuca.
Então vai de vez, antes que meu filho acorde. O humor dele azeda muito quando acorda depois de uma bebedeira. Vai voando e não se esqueça do meu pedido para a sua mulher.
Saiu do armazém espirrando. Aquilo lá era uma fumaceira só; mas, como tinham dito que assim subia mais depressa, bebeu um gole atrás do outro, abanando ar na boca com a fralda da camisa. Depois tratou de ir direto para casa, onde Refugio esperava por ele; mas torceu o caminho e desandou a andar rua acima, saindo do povoado por onde a vereda o levou.
Damiana! — chamou Pedro Páramo. — Venha ver o que quer esse homem que vem pelo caminho.
Abundio continuou avançando, dando tropeços, agachando a cabeça e às vezes andando de quatro. Sentia que a terra se retorcia, dava voltas em volta dele, e depois se soltava; ele corria para agarrá-la, e quando já tinha a terra nas mãos, ela tornava a ir embora, até que chegou na frente da figura de um senhor sentado ao lado de uma porta. Então, parou:
Uma caridade para enterrar minha mulher — disse.
Damiana Cisneros rezava: “Das armadilhas dos inimigos malvados, livrai-nos, Senhor.” E apontava para ele com as mãos fazendo o sinal da cruz.
Abundio Martínez viu a mulher com os olhos esbugalhados, pondo aquela cruz na sua frente, e estremeceu. Pensou que talvez o demônio o tivesse seguido até ali, e deu meia-volta, esperando encontrar alguma aparição ruim. Ao não ver ninguém, repetiu:
Venho pedir uma ajudazinha para enterrar a minha morta.
O sol dava às suas costas. Aquele sol recém-saído, quase frio, desfigurado pela poeira da terra.
A cara de Pedro Páramo escondeu-se debaixo das cobertas como se se escondesse da luz, enquanto se ouviam os gritos de Damiana saírem cada vez mais repetidos, atravessando os campos: “Estão matando dom Pedro!”
Abundio Martínez ouvia aquela mulher gritando. Não sabia o que fazer para acabar com aqueles gritos. Não encontrava a ponta de seus pensamentos. Sentia que os gritos da velha deviam estar sendo ouvidos muito lá longe. Talvez até sua mulher estivesse ouvindo, porque perfuravam as orelhas dele, embora não entendesse o que ela dizia. Pensou em sua mulher que estava estendida no catre, sozinha, lá no quintal da casa, onde ele a havia posto para que serenasse e não apestasse depressa. A Cuca, que ainda ontem se deitava com ele, bem viva, espojando feito potranca, e que o mordia e raspava seu nariz com o nariz dela. A que deu a ele aquele filhinho que morreu assim que nasceu, dizem que porque ela estava incapacitada: o mau-olhado e os frios e a queimação na pança e sei lá de quantos males sua mulher padecia, pelo que disse o doutor que foi vê-la à última hora, quando teve de vender seus burros para trazê-lo até aqui, por causa da cobrança tão alta que cobrou. E que não serviu para nada... A Cuca, que agora estava lá aguentando o relento, com os olhos fechados, já sem poder ver o amanhecer; nem este sol nem nenhum outro.
Uma ajuda! — disse. — Qualquer coisa.
Mas nem mesmo ele se ouviu. Os gritos daquela mulher o deixavam surdo.
Pelo caminho de Comala moveram-se uns pontinhos negros. De repente os pontinhos se converteram em homens que num instante chegaram aqui, perto dele. Damiana Cisneros parou de gritar. Desfez sua cruz. Agora tinha caído e abria a boca como se bocejasse.
Os homens que tinham vindo a levantaram do chão e a levaram para o interior da casa.
Aconteceu alguma coisa com o senhor, patrão? — perguntaram.
Apareceu a cara de Pedro Páramo, que só mexeu a cabeça.
Desarmaram Abundio, que ainda estava com o punhal cheio de sangue na mão:
Venha com a gente — disseram a ele. — Você de verdade se meteu numa boa.
E ele os seguiu.
Antes de entrar no povoado pediu licença a eles. Fez-se a um lado e ali vomitou uma coisa amarela como bílis. Jorros e jorros, como se tivesse engolido dez litros de água. Então sua cabeça começou a arder e sentiu a língua travada:
Estou bêbado — disse.
Regressou até onde estavam esperando por ele. Apoiou-se nos ombros deles, que o levaram arrastado, abrindo um sulco na terra com a ponta dos pés.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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