— O que, você
não foi ver o padre Rentería?
— Fui. Mas me
informaram que andava pelos montes.
— Em qual monte?
— Pois por esses
ermos. A senhora sabe que andam na rebelião.
— Quer dizer que
ele também? Pobres de nós, Abundio.
— Essa história
não nos importa nada, mamãe Villa. Isso aí e nada para nós dá no
mesmo. Sirva mais um. Assim meio disfarçado, já que o Gamaliel está
é dormindo.
— Mas não se
esqueça de pedir à Refugio que rogue a Deus por mim, que necessito
tanto.
— Nem se
angustie. É chegar e dizer. E até vou arrancar dela a promessa
apalavrada, para o caso de ser necessário e para que a senhora deixe
de aflições.
— Isso, é isso
mesmo que você deve fazer. Porque você sabe como as mulheres são.
Assim, é preciso exigir delas que cumpram em seguidinha o combinado.
Abundio Martínez
deixou outros 20 centavos em cima do balcão.
— Pois me dá o
outro meio litro, mãe Villa. E se quiser me dar ainda mais outro
bocadinho, pois aí é assunto da senhora. A única coisa que eu lhe
prometo é que este, sim, irei beber ao lado da finadinha; ao lado da
minha Cuca.
— Então vai de
vez, antes que meu filho acorde. O humor dele azeda muito quando
acorda depois de uma bebedeira. Vai voando e não se esqueça do meu
pedido para a sua mulher.
Saiu do armazém
espirrando. Aquilo lá era uma fumaceira só; mas, como tinham dito
que assim subia mais depressa, bebeu um gole atrás do outro,
abanando ar na boca com a fralda da camisa. Depois tratou de ir
direto para casa, onde Refugio esperava por ele; mas torceu o caminho
e desandou a andar rua acima, saindo do povoado por onde a vereda o
levou.
— Damiana! —
chamou Pedro Páramo. — Venha ver o que quer esse homem que vem
pelo caminho.
Abundio continuou
avançando, dando tropeços, agachando a cabeça e às vezes andando
de quatro. Sentia que a terra se retorcia, dava voltas em volta dele,
e depois se soltava; ele corria para agarrá-la, e quando já tinha a
terra nas mãos, ela tornava a ir embora, até que chegou na frente
da figura de um senhor sentado ao lado de uma porta. Então, parou:
— Uma caridade
para enterrar minha mulher — disse.
Damiana Cisneros
rezava: “Das armadilhas dos inimigos malvados, livrai-nos, Senhor.”
E apontava para ele com as mãos fazendo o sinal da cruz.
Abundio Martínez
viu a mulher com os olhos esbugalhados, pondo aquela cruz na sua
frente, e estremeceu. Pensou que talvez o demônio o tivesse seguido
até ali, e deu meia-volta, esperando encontrar alguma aparição
ruim. Ao não ver ninguém, repetiu:
— Venho pedir uma
ajudazinha para enterrar a minha morta.
O sol dava às suas
costas. Aquele sol recém-saído, quase frio, desfigurado pela poeira
da terra.
A cara de Pedro
Páramo escondeu-se debaixo das cobertas como se se escondesse da
luz, enquanto se ouviam os gritos de Damiana saírem cada vez mais
repetidos, atravessando os campos: “Estão matando dom Pedro!”
Abundio Martínez
ouvia aquela mulher gritando. Não sabia o que fazer para acabar com
aqueles gritos. Não encontrava a ponta de seus pensamentos. Sentia
que os gritos da velha deviam estar sendo ouvidos muito lá longe.
Talvez até sua mulher estivesse ouvindo, porque perfuravam as
orelhas dele, embora não entendesse o que ela dizia. Pensou em sua
mulher que estava estendida no catre, sozinha, lá no quintal da
casa, onde ele a havia posto para que serenasse e não apestasse
depressa. A Cuca, que ainda ontem se deitava com ele, bem viva,
espojando feito potranca, e que o mordia e raspava seu nariz com o
nariz dela. A que deu a ele aquele filhinho que morreu assim que
nasceu, dizem que porque ela estava incapacitada: o mau-olhado e os
frios e a queimação na pança e sei lá de quantos males sua mulher
padecia, pelo que disse o doutor que foi vê-la à última hora,
quando teve de vender seus burros para trazê-lo até aqui, por causa
da cobrança tão alta que cobrou. E que não serviu para nada... A
Cuca, que agora estava lá aguentando o relento, com os olhos
fechados, já sem poder ver o amanhecer; nem este sol nem nenhum
outro.
— Uma ajuda! —
disse. — Qualquer coisa.
Mas nem mesmo ele
se ouviu. Os gritos daquela mulher o deixavam surdo.
Pelo caminho de
Comala moveram-se uns pontinhos negros. De repente os pontinhos se
converteram em homens que num instante chegaram aqui, perto dele.
Damiana Cisneros parou de gritar. Desfez sua cruz. Agora tinha caído
e abria a boca como se bocejasse.
Os homens que
tinham vindo a levantaram do chão e a levaram para o interior da
casa.
— Aconteceu
alguma coisa com o senhor, patrão? — perguntaram.
Apareceu a cara de
Pedro Páramo, que só mexeu a cabeça.
Desarmaram Abundio,
que ainda estava com o punhal cheio de sangue na mão:
— Venha com a
gente — disseram a ele. — Você de verdade se meteu numa boa.
E ele os seguiu.
Antes de entrar no
povoado pediu licença a eles. Fez-se a um lado e ali vomitou uma
coisa amarela como bílis. Jorros e jorros, como se tivesse engolido
dez litros de água. Então sua cabeça começou a arder e sentiu a
língua travada:
— Estou bêbado —
disse.
Regressou até onde
estavam esperando por ele. Apoiou-se nos ombros deles, que o levaram
arrastado, abrindo um sulco na terra com a ponta dos pés.
Juan Rulfo,
in Pedro Páramo
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