terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O subsolo - 8

Ha, ha, ha! Mas tal vontade, no fundo, nem ao menos existe! – interrompem-me os senhores com uma gargalhada. Na nossa época, a ciência já conseguiu dissecar a tal ponto o homem, que já é do nosso conhecimento que a vontade e o assim chamado livre-arbítrio não passam de...
Um momento, senhores, eu mesmo queria começar dessa maneira. Confesso que até me assustei. Um instante atrás por pouco eu não quis gritar que a vontade depende sabe o diabo de que, coisa que, talvez, devamos agradecer a Deus, mas lembrei-me da ciência e... me calei. E nesse instante os senhores começaram a falar. Porque, de fato, bem, se algum dia encontrarem mesmo a fórmula de todos os nossos desejos e caprichos, ou seja, aquilo de que eles dependem, as leis segundo as quais eles se produzem, como precisamente se espalham, que objetivos eles buscam num caso ou noutro, etc., ou seja, se encontrarem uma verdadeira fórmula matemática – aí talvez o homem imediatamente deixe de ter vontade e, digo mais, ele seguramente fará isso. Quem vai querer ter vontade de acordo com uma tabela? E ainda: no mesmo instante o homem se transformará num pedal de órgão ou em algo no gênero; porque o que é esse homem sem desejos, sem vontade, sem seu próprio querer, senão um pedal de órgão? Que acham disso? Examinemos as probabilidades: pode isso acontecer ou não?
Hum... – concluem os senhores. Nossos desejos, na sua maioria, são equivocados devido a uma avaliação errada das nossas vantagens. Se às vezes queremos coisas absurdas, isso se deve ao fato de que nessa coisa absurda nós vemos, por burrice nossa, um caminho mais curto para obtermos uma vantagem antecipadamente presumida. Bem, quando tudo isso estiver explicado e exposto numericamente no papel (o que é perfeitamente possível, porque é indigno e sem sentido crer antecipadamente que haja leis da natureza que o homem nunca descobrirá), então, evidentemente, não existirão as chamadas vontades. Pois, se a vontade um dia coincidir completamente com a razão, nós iremos raciocinar e não querer, propriamente, porque é impossível, por exemplo, conservando a razão, desejar coisas sem sentido, indo, desse modo, conscientemente contra a razão e desejando algo que nos prejudique... E, como todos os desejos e raciocínios poderão ser realmente calculados, pois algum dia serão descobertas as leis do nosso assim chamado livre-arbítrio, então, conseqüentemente, além de anedotas, também será possível estabelecer-se algo como uma tabela, de tal modo que nós realmente teremos desejos de acordo com essa tabela. Porque se, por exemplo, um dia me provarem com cálculos que se eu fiz um gesto obsceno com o dedo para alguém isso se deu precisamente porque não poderia deixar de fazê-lo, e porque era exatamente aquele dedo que eu deveria mostrar, então o que restará de livre em mim, especialmente se sou uma pessoa instruída e com um curso completo de ciência em algum lugar? Pois nesse caso eu vou poder calcular antecipadamente toda a minha vida futura por um período de trinta anos; em síntese, se isso for implantado, não nos restará nada a fazer; de todo modo, teremos de aceitar. E, de maneira geral, devemos repetir para nós mesmos sem descanso que, forçosamente, num determinado minuto e em certas condições, a natureza não pede a nossa opinião; que é necessário aceitá-la tal como ela é, e não como nós a fantasiamos, e se, de fato, almejamos chegar a uma tabela e a um calendário e a... bem, nem que seja a um tubo de ensaio, então, que se há de fazer, é preciso admitir também o tubo de ensaio! Senão ele mesmo se admitirá, sem esperar por sua aprovação…
Pois é, senhores... Justamente neste ponto é que eu me enrasquei! Perdoem-me por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou seja, talvez a vigésima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca saberá; isso pode não consolar, mas por que não dizê-lo?); já a natureza humana, esta age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente – e, mesmo mentindo, está vivendo. Desconfio de que os senhores estão olhando para mim com pena; estão repetindo que é impossível um homem evoluído e esclarecido, em suma, um homem do futuro, vir a querer conscientemente para si algo desvantajoso; que isso é matemática. Concordo plenamente, de fato é matemática. Mas repito pela centésima vez: há apenas um caso em que o homem é capaz de, proposital e conscientemente, desejar para si algo até mesmo nocivo, idiota, até mesmo idiotíssimo, e é precisamente quando quer defender o direito de desejar para si mesmo algo idiotíssimo e não ficar obrigado a desejar para si apenas o que é inteligente. Isso é a suprema idiotice, isso é um capricho pessoal e, na verdade, senhores, pode ser o que de mais vantajoso haja na Terra para os nossos semelhantes, principalmente em certos casos. E, particularmente, pode ser mais vantajoso do que todas as vantagens, mesmo no caso de nos causar um mal indiscutível e de contradizer as conclusões mais corretas de nossa razão quanto a vantagens – porque pelo menos conserva para nós o mais importante e o mais caro, ou seja, nossa personalidade e nossa individualidade. Alguns afirmam que isso é de fato o que é mais caro ao ser humano; a vontade pode, se assim o desejar, coincidir com a razão, especialmente se não abusar desta e usá-la com parcimônia; é uma coisa útil e às vezes elogiável. Mas a vontade, muito freqüentemente, e até mesmo na maior parte das vezes, discorda completa e teimosamente da razão, e... e... Sabem os senhores que isso também é útil e às vezes até elogiável? Senhores, admitamos que o homem não seja um idiota. (Realmente não se pode afirmar que ele seja um idiota, pelo menos pela única razão de que, se ele fosse um idiota, quem então seria inteligente?) Mas, se não é um idiota, ao menos é monstruosamente ingrato. Penso até que a melhor definição para o homem é: um ser bípede e ingrato. Mas isso ainda não é tudo, esse não é o seu pior defeito: seu defeito mais grave é sua constante má conduta. Sim, constante, desde o dilúvio universal até o período schleswig-holsteiniano dos destinos da humanidade. A má conduta e, por conseqüência, a falta de bom senso, pois há muito tempo se sabe que a falta de bom senso é resultado da má conduta. Tentem lançar uma olhada na história da humanidade; que vêem os senhores? É grandiosa? Talvez até seja grandiosa; qual não será, por exemplo, o valor de um Colosso de Rodes? Não é à toa que o sr. Anaiévski nos informa que, na opinião de alguns, esse colosso foi obra humana, ao passo que, para outros, ele foi criado pela própria natureza. Os senhores acham a humanidade multicolorida? Vá lá, é mesmo multicolorida; quanto valeria, por exemplo, a simples descrição, em todos os séculos e em todos os povos, somente das fardas de gala de militares e civis? E se acrescentarmos as fardas de serviço, aí então é de morrer. Nenhum historiador resistiria à tentação de fazê-lo. Os senhores consideram a humanidade monótona? Talvez seja monótona: brigas e mais brigas; brigavam antes, brigam agora – concordem comigo que isso é monótono até demais. Em suma, tudo se pode dizer da história universal, tudo que possa ocorrer à imaginação mais perturbada. Só uma coisa não se pode dizer: que ela seja sensata. Os senhores engasgariam na primeira palavra. E vejam até o que acontece volta e meia: constantemente aparecem na vida pessoas tão corretas e sensatas, tão sábias e amantes do gênero humano que assumem como seu objetivo de vida comportar-se da maneira mais correta e sensata possível para, por assim dizer, ser uma luz para os demais, provando para eles que é possível de fato viver neste mundo de maneira correta e sensata. E daí? Sabe-se que muitos desses amantes do gênero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns já no fim da vida, traíram a si mesmos, dando margem a anedotas, algumas até bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de características tão estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que há na Terra, mergulhem-no de cabeça na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam à superfície; dêem-lhe tal bem-estar econômico, de modo que não lhe reste nada mais a fazer, além de dormir, comer pães de mel e tratar de garantir a continuação da história universal – pois os senhores verão que, mesmo assim, ele, o homem, por pura ingratidão, por galhofa, há de fazer besteira. Porá em risco até os pães de mel e desejará intencionalmente o absurdo mais prejudicial, a coisa, do ponto de vista econômico, mais sem pé nem cabeça, unicamente para adicionar a toda essa sensatez positiva seu elemento fantástico prejudicial. Ele desejará conservar consigo precisamente seus sonhos fantásticos, sua estupidez mais torpe, com a finalidade de afirmar para si mesmo (como se isso fosse mesmo absolutamente imprescindível) que os homens continuam a ser homens, e não teclas de piano, as quais, embora sejam tocadas pelas próprias mãos das leis da natureza, estão ameaçadas de serem tocadas até chegar ao ponto em que, além do calendário, não será possível desejar-se mais nada. Mas isto ainda não é tudo: mesmo que se constate que ele é de fato uma tecla de piano, mesmo que isso lhe seja demonstrado pelas ciências naturais e pela matemática, nem assim ele criará juízo e propositalmente fará alguma coisa oposta, unicamente por ingratidão; de fato, para impor a sua vontade. E, no caso de não possuir os meios para isso, ele inventará a destruição e o caos, inventará diversos sofrimentos e acabará por impor sua vontade! Ele lançará ao mundo sua maldição e, como só o homem é capaz de amaldiçoar (isso é um privilégio seu, o que ele tem de mais importante e que o distingue dos outros animais), talvez ele consiga o que procura apenas com a maldição, ou seja, realmente talvez se convença de que é um homem, e não uma tecla de piano! Se os senhores disserem que tudo isso também pode ser calculado pela tabela – o caos, a treva, a maldição, de modo que a mera possibilidade de cálculo prévio pare tudo e a razão triunfe –, então nesse caso o homem ficará propositalmente louco, para ficar privado da razão e defender sua opinião! Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda a questão humana, creio, resume-se, na realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele é um homem, e não uma tecla! Ainda que arriscando sua pele, ele tentará prová-lo; ainda que se comporte como um troglodita, ele tentará prová-lo. E, depois disso, como não pecar, como não se felicitar por ainda não existirem tais coisas, e a vontade, por enquanto, depender só Deus sabe de quê...
Os senhores gritam-me (se é que ainda me concedem a honra de gritar comigo) que ninguém está me tirando a vontade; que todo o esforço que fazem é para, de alguma forma, conseguir que a minha vontade espontaneamente, por si mesma, passe a coincidir com meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmética.
Mas que nada, senhores! Que vontade própria vai existir quando chegarmos às tabelas e à aritmética, quando só houver dois e dois são quatro? Dois mais dois serão sempre quatro, mesmo sem a minha vontade. Será que vontade própria desse tipo pode existir?
Dostoeivski, in Notas do subsolo

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