sábado, 10 de fevereiro de 2018

A senhora quer sambar

Geneci...
Senhora?
Preciso falar com você.
O que foi? O almoço não estava bom?
O almoço estava ótimo. Não é isso. Precisamos conversar.
Aqui na cozinha?
Aqui mesmo. O seu patrão não pode ouvir.
Sim, senhora.
Você...
Foi o copo que eu quebrei?
Quer ficar quieta e me escutar?
Sim, senhora.
Não foi o copo. Você vai sair na escola, certo?
Vou, sim senhora. Mas se a senhora quiser que eu venha na Terça...
Não é isso, Geneci!
Desculpe.
É que eu... Geneci, eu queria sair na sua escola.
Mas...
Ou fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não agüento ficar fora do Carnaval.
Mas...
Vocês não têm, sei lá, uma ala das patroas? Qualquer coisa.
Se a senhora tivesse me falado antes...
Eu sei. Agora é tarde. Para a fantasia e tudo o mais. Mas eu improviso uma baiana. Deusa grega, que é só um lençol.
Não sei...
Saio na bateria. Empurrando alegoria.
Olhe que não é fácil...
Eu sei. Mas eu quero participar. Eu até sambo direitinho. Você nunca me viu sambar? Nos bailes do clube, por exemplo. Toca um samba e lá vou eu. Até acho que tenho um pé na cozinha. Quer dizer. Desculpe.
Tudo bem.
Eu também sou povo, Geneci! Quando vejo uma escola passar, fico toda arrepiada.
Mas a senhora pode assistir.
Mas eu quero participar, você não entende? No meio da massa. Sentir o que o povo sente. Vibrar, cantar, pular, suar.
Olhe...
Por que só vocês podem ser povo? Eu também tenho direito.
Não sei...
Se precisar pagar, eu pago.
Não é isso. É que...
Está bem. Olhe aqui. Não preciso nem sair na avenida. Posso costurar. Ajudar a organizar o pessoal. Ajudar no transporte. O Alfa Romeo está aí mesmo. Tem a Caravan, se o patrão não der falta. É a emoção de participar que me interessa, entende? Poder dizer "a minha escola...". Eu teria assunto para o resto do ano. Minhas amigas ficariam loucas de inveja. Alguns iam torcer o nariz, claro. Mas eu não sou assim. Eu sou legal. Eu não sou legal com você, Geneci? Sempre tratei você de igual para igual.
Tratou, sim senhora.
Meu Deus, a ama-de-leite da minha mãe era preta!
Sim, senhora.
Geneci, é um favor que você me faz. Em nome da nossa velha amizade. Faço qualquer coisa pela nossa escola, Geneci.
Bom, se a senhora está mesmo disposta...
Qualquer coisa, Geneci.
É que o Rudinei e Fátima Araci não têm com quem ficar.
Quem?
Minhas crianças.
Ah.
Se a senhora pudesse ficar com eles enquanto eu desfilo...
Certo. Bom. Vou pensar. Depois a gente vê.
Eu posso trazer elas e...
Já disse que vou pensar, Geneci. Sirva o cafezinho na sala.
Luís Fernando Veríssimo

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