quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Trauma

Pais separados, o Artur, 12 anos, vivia com a mãe e passava os fins de semana com o pai. Quando chegava à casa do pai era submetido a um interrogatório. Sempre.
Como é que está sua mãe?
Sua mãe fala muito em mim?
Sua mãe arranjou namorado?
Ou:
Sua mãe tem visto alguém?
Quando voltava da casa do pai no domingo à noite, era submetido a outro interrogatório.
Como é que está o seu pai?
Seu pai fala em mim?
Seu pai está com alguma namorada?
Ou:
Seu pai está saindo com alguém? Saco.

* * *
Um dia a mãe disse para o Artur dizer ao seu pai que precisava falar com ele. Que quando ele trouxesse o Artur no domingo à noite era para entrar. Para conversarem. O pai achou ótimo. Também precisava conversar com a ex-mulher.
No domingo o pai entrou, a mãe mandou o Artur ir tomar banho, e antes que o pai pudesse se sentar, declarou:
Assim não vai dar, Gilson.
O quê?
Assim o Artur não vai poder continuar indo à sua casa.
Assim como?
Aquilo não é ambiente pra ele.
Por quê?
Ele me contou. Primeiro tentou esconder, mas eu apertei e ele acabou contando tudo.
Tudo o quê?!
As duas loiras. O hóspede travesti. As pílulas. Como é que você pôde, Gilson? Com o seu filho dentro de casa!
Peraí. Peralá. Que história é essa? Duas loiras? Travestis? Pílulas?
É. E ele vendo tudo.
Ele não viu nada!
É o que você pensa. Viu tudo. Me descreveu até as loiras. Uma magra, a outra mais cheinha. E as tatuagens do travesti. Ficou traumatizado.
Ele não viu nada porque não havia nada pra ver. É tudo invenção dele.
Por que o Artur iria inventar uma coisa dessas?
Não sei. Talvez por trauma, com o que ele tem visto aqui.
Aqui?!
É. O que ele ouve a noite inteira, quando seu namorado fica pra dormir.
Que namorado?!
Sei até o nome dele. Carlos Augusto. E que tem a metade da sua idade.
Ó Gilson, então você acha que eu... Isso é pura invenção do Artur!
Será? Ele me deu detalhes bem precisos. E do outro também.
Outro?!
Um que ele não sabe se é chinês ou japonês, e que leva uma malinha preta quando vocês vão pro quarto.
Artur! Venha cá!

* * *
Artur teve que pedir desculpas, mas deu resultado. Os interrogatórios acabaram. Hoje, de vez em quando, a mãe ainda começa a perguntar:
Seu pai...
Uma ruiva chamada Anabela e duas policiais militares.
Não. Sério, Artur.
Eu estou sendo sério.
A mãe ri e comenta: “Que imaginação.” Depois fica pensando: “E se for verdade?” Mas não pergunta mais nada.
O pai também tenta se controlar, mas às vezes não aguenta.
Sua mãe...
Agora anda com uma moça que parece homem, chamada Castro.
Não brinque com essas coisas, meu filho.
Eu não estou brincando.
O pai sacode a cabeça e ri, e pensa, “Esse garoto ainda vai nos sair um escritor...” E depois: “E se for verdade?” Mas não pergunta mais nada.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo

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