Antes
de 1958, Ari Barroso implicava muito com o futebol do Garrincha.
Dum
episódio característico me lembro muito bem. Ari transmitia na tevê
um jogo do Botafogo e dizia pausado: “Garrincha com a bola. Vai
driblar. É claro. Vai driblar de novo. Vai perder a bola. Olha ali,
um saçarico pra cá, outro pra lá. Garrincha passa pelo adversário.
Assim também não é possível. Vocês estão vendo? Garrincha vai
driblar de novo. Vai perder. Por que ele não centrou logo? Claro que
vai perder. Gol de Garrincha.” A última frase veio seca e
mal-humorada: também o Mi fora driblado lá na tribuna.
Principalmente
por causa de Garrincha, ele e eu pegávamos discussões
animadíssimas, que não só acabavam alegremente: já eram
entremeadas de brincadeiras. Uma vez, no aceso da paixão, apelei
para a linha dura e lhe disse a sentença fatal: “Você não
entende nada de futebol!” Mi, apanhado de surpresa, achou
engraçadíssima minha (falsa) opinião e ficou sacudido por tremores
de riso durante mais de meia hora.
Aí
veio a Copa da Suécia. Ouvi as irradiações num bar de Ipanema na
companhia de amigos. Ari ainda não dera as caras. João Condé,
tendo aparecido apenas no jogo com a Inglaterra (0 a 0), fora
proibido de voltar. Terminada a partida com os suecos... Bem, não é
difícil imaginar. Um senhor desconhecido, que ouvira o jogo a suar
frio e extremamente pálido, como se fora ao vivo a descrição do
Apocalipse, continuava em transe, hirto e bestificado, enquanto a
turma o arrastava como um robô pela dança carnavalesca e
enfiava-lhe pela boca paralisada grandes goladas de uísque. Darwin
Brandão parou o bonde no peito e ofereceu uísque a motorneiro,
condutor e passageiros. Os dois primeiros desceram para a
confraternização, mas recusando a bebida: já vinham do Bar Vinte
com uma garrafa de pinga. Mal
terminado o jogo (tudo acontece em Ipanema), surgiu também no bar
uma duquesa da França.
Uma
duquesa no duro, dessas que ainda têm castelo, e cujos antepassados
foram protegidos ou perseguidos por Luís XI. Chegara há pouco tempo
da França e não falava português. Mas o repórter Nestor Leite,
também conhecido por Boca Negra, há muitos anos que “tribo” na
Amazônia e se instalou no Rio. Nestor entendeu perfeitamente o que a
duquesa dizia: tinha torcido pela França, évidemment,
évidemment...
Tendo a França perdido, passara a torcer pelo Brasil, évidemment...
Nestor abraçou a duquesa com uma ternura derramada de gratidão e
comandou imediatamente uma champanha. A duquesa afirmou com veemência
que preferia um chope, e todos nós acreditamos, menos o Nestor. Veio
a champanha, muito nacional e meio morna, sempre sob os protestos da
elegante e simpática duquesa.
Não
sei se o leitor se lembra duma fabulosa champanha que jorra numa cena
do filme Les
Enfants du Paradis.
Pois a do Nestor foi muito mais fabulosa: jorrou com uma força de
jato de poço de petróleo, e inundou os cabelos tratados, o vestido
de seda, a alma nobre da duquesa. Foi uma festa. Raimundo Nogueira,
Haroldo Barbosa e Fernando Lobo tinham fugido da raia, por prudência
de ordem coronária, e pescavam sem rádio na Barra da Tijuca.
Ouvindo o foguetório, vieram em desabalada para Ipanema. Invadiram o
bar com quilos de talco (reminiscência do carnaval pernambucano).
Uma
cortina branca envolvia tudo e todas as pessoas quando ouvi uma voz
que vinha da porta a clamar meu nome e sobrenome. Era o Ari, que
continuou à porta gesticulando.
Atenuada
a cerração de talco, vi que a sua expressão era dessa rara
plenitude que limpa do rosto humano o desencanto, a decepção, o
medo.
Ainda
na porta, ele gritava para mim, escandindo as sílabas a seu modo: -
Estou aqui para penitenciar-me! É o maior! É o maior! Que beleza,
meu Deus! Que beleza! O Garrincha é o maior gênio que já houve
neste país! Que beleza! Que beleza!!
Paulo
Mendes Campos,
in O
gol é necessário
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