Foi
ali, no meio da praça, cheio da gente bichando na cantina. Zuzé
Paraza, pintor reformado, cuspiu migalhas do cigarro mata-ratos.
Depois, tossiu sacudindo a magreza do seu todo corpo. Então, assim
contam os que viram, ele vomitou um corvo vivo. O pássaro saiu
inteiro das entranhas dele. Estivera tanto tempo lá dentro que já
sabia falar. Embrulhado nos cuspes, ao princípio não parecia. A
gente rodou volta do Zuzé, espreitando o pássaro caído da sua
tosse. O bicho sacudiu os ranhos, levantou o bico e, para espanto
geral, disse as palavras. Sem boa pronúncia, mas com convicção. Os
presentes perguntaram:
— Está
falar, o gajo?
Riram-se,
alguns. Mas a voz das mulheres interrompeu-lhes:
— Não
riam-se.
Zuzé
Paraza aconselhou:
— Isto
não é um pássaro qualquer. É bom ter respeito.
— Ei,
Zuzé. Traduza lá o discurso dele. Você deve saber o dialeto do
corvo.
— Com
certeza, sei. Mas agora não, agora não quero traduzir. — Já
centro das atenções, acrescentou: — Esse corvo é dono de muitos
segredos.
E
arrumando a ave no ombro esquerdo, retirou-se. Atrás ficaram os
comentários. Agora já entendiam os ataques de tosse do pintor. Era
um pedaço de céu que estava-lhe dentro. Ou talvez eram as penas a
comicharem-lhe a garganta. As dúvidas somavam mais que as respostas.
— Um
homem pode parir nos pulmões?
— Dar
parto um pássaro? Só se o velho namorava as corvas lá nas árvores.
— Vão
ver que a alma da mulher falecida que transferiu no viúvo.
No
dia seguinte, Zuzé confirmou esta última versão. O corvo vinha lá
da fronteira da vida, ninhara nos seus interiores e escolhera o
momento público da sua aparição.
Os
outros que aproveitassem obter informações dos defuntos, situação
e paradeiro dos antepassados. O corvo, através da sua tradução,
responderia às perguntas. Os pedidos logo acorreram, numerosos. Zuzé
já não tinha quarto, era gabinete. Não dava conversa, eram
consultas. Prestava favores, adiava as datas, demorava atendimentos.
Pagava-se com tabela: morridos no ano corrente, cinquenta escudos;
comunicação com anos transactos, cento e cinquenta; mortos fora de
prazo, duzentos e cinquenta.
E
aqui entra na história Dona Candida, mulata de volumosa bondade,
mulher sem inimigo. Recém-viúva, já ex-viva. Casou rápido segunda
vez, desforrando os destemperos da ausência. Quando recasou,
escolheu Sulemane Amade, comerciante indiano da povoação. Não
tinha passado tempo desde que morrera Evaristo Muchanga, seu primeiro
marido.
Mas
Candida não podia guardar a vida dela. Seu corpo ainda estava para
ser mexido, podia até ser me. Verdade é que, nesse intervalo, nunca
foi muito viva. Era uma solitária de acidente, não de crença.
Nunca abrandou de ser mulher.
—
Casei. E depois? Preciso explicar o quê?
E
nestas palavras, Dona Candida começou sua queixa para Zuzé Paraza.
Quando se soube solicitado, o adivinho até adiantou a data da
consulta. Nunca tinha chegado uma mulata. Os préstimos de Zuzé
nunca tinham sido chamados tão acima.
— Não
sou qualquer, Sr. Paraza. Como é que me sucede uma coisa dessas?
A
gorda senhora explicou suas aflições: o segundo casamento decorria
sem demais. Até que o novo marido, o Sulemane, passou a sofrer de
estranhos ataques. Aconteciam à noite, nos momentos em que
preparavam namoros. Ela tirava o soutiã, o Sulemane chegava-se,
pesado. Era então que aparecia o feitiço: grunhidos em lugar da
fala, babas nos lábios, vesgueira nos olhos. Sulemane, confessava
ela, o meu Sulemane salta da cama e assim, todo despido, gatinha,
fareja, esfrega no chão e, por fim, focinha no tapete. Depois, todo
suado, o coitadinho pede água, acaba um garrafão. Não fica
logo-logo o mesmo: demora a recuperar. Gagueja, só ouve do direito e
adormece de olhos abertos. A noite inteira, aqueles olhos tortos a
mentir que olham, um horror. Ai, Sr. Zuzé, me salve. Sofro de mais,
até tenho dúvidas de Deus. Isto é obra de Evaristo, maldição
dele. Éramos felizes eu e Sulemane. Agora, nós ambos já somos
três. Meu Deus, por que não esperei? Por que ele não me deixa?
Zuzé
Paraza cruzou as mãos, acariciou o corvo. Tinha suas suspeitas:
Evaristo era de raça negra, natural da região. Dona Candida, com
certeza não cumprira as cerimônias da tradição para afastar a
morte do primeiro marido. Engano seu, ela cumprira.
—
Cerimônias completas?
—
Claro, Sr. Paraza.
— Mas
como? A senhora assim mulata da sua pele, quase branca da sua alma?
— Ele
era preto, o senhor sabe. Pedido foi da família dele, eu segui.
Paraza,
intrigado, parece ainda duvidar.
— Matou
o cabrito?
— Matei
— O
bicho gritou enquanto a senhora cantava?
—
Gritou, sim.
— E
que mais, Dona Candida?
— Fui
ao rio lavar-me da morte dele. Levaram-me as vivas, banharam comigo.
Tiraram um vidro e cortaram-me aqui, nas virilhas. Disseram que era
ali que o meu marido dormia. Coitadas, se soubessem onde o Evaristo
dormia...
— E
o sangue saiu bem?
—
Hemorragia completa. As vivas viram.
Pelo
sangue disseram que me entendia bem com ele. Não desmenti, preferi
assim.
Zuzé
Paraza meditou, teatroso. Depois, soltou o corvo. O bicho esvoaçou e
pousou no ombro amplo da Candida. Ela encolheu as carnes, arrepiada
das cócegas. Espreitou o animal, desconfiada. Olhado assim, o corvo
era feio por de mais. Quem quiser apreciar a beleza de um pássaro
não pode olhar as patas. Os pés das aves guardam o seu passado
escamoso, herança dos rastejantes lagartos.
O
corvo rodou no poleiro redondo da mulata.
—
Desculpe, Sr. Zuzé: ele não me vai
cagar em cima?
— Não
fale, Dona Candida. O bicho precisa concentrar.
Por
fim, o pássaro pronunciou-se. Zuzé escutava de olhos fechados,
ocupado no esforço da tradução.
— Que
foi que disse ele?
— Não
foi o pássaro que falou. Foi o Varisto.
—
Evaristo?— desconfiou ela. — Com
aquela voz?
— Falou
através do bico, não esqueça. A gorda ficou séria, ganhando
créditos.
— Sr.
Zuzé aproveite a ligação para lhe pedir... peça-lhe...
Arrependendo-se,
Dona Candida desiste do intermediário e começa ela de berrar no
corvo poleirado no seu ombro:
—
Evaristo, me deixa em paz. Faça-me o
favor, deixa-me sozinha, sossegada na minha vida.
O
pássaro, incomodado com a gritaria, saltou do poiso. Paraza impôs a
ordem:
— Dona
Candida não vale a pena agitar. Viu? O pássaro sustou.
A
consultante, esgotada, chorou.
— A
senhora escutou o pedido do falecido?
Com
a cabeça, ela negou. Ouvira só o corvo, igual aos demais, desses
que saltitam nos coqueiros.
— O
falecido, Dona Candida, está pedir uma mala cheia com roupa dele,
dessa que ele costumava usar.
— Roupa
dele? Já não tenho. Eu não disse que pratiquei essas vossas
cerimônias? Rasguei, esburaquei a roupa, quando ele morreu. Foi
assim que me mandaram. Disseram que devia fazer buracos para a roupa
soltar o último suspiro. Sim, eu sei: se fosse agora não cortava
nada. Aproveitava tudo. Mas naquele tempo, Sr. Paraza…
— É
uma maçada, Dona Candida. O defunto está mesmo precisado. Nem
imagina os frios que dão lá nos mortos.
A
mulata ficou parada, imaginando Evaristo tremendo, sem amparo dos
tecidos. Apesar das maldades que ele causara, não merecia tal
vingança. Remediou os ditos: havia de roubar as roupas do Sulemane e
trazer tudo num embrulho escondido.
— O
Sutemane não pode saber disto. Meu Deus, se ele desconfia!
— Fica
descansada, Dona Candida. Ninguém vai saber. Só eu e o corvo.
E,
no último instante, antes de sair, a gorda:
— Como
será que o Evaristo pode aceitar, naquele ciúme que levou para o
outro mundo, como é que pode aceitar a roupa do meu novo marido?
—
Aceita. Roupas são roupas. O frio manda
mais que ciúme.
— Tem
a certeza, Sr. Paraza?
—
Experiência que tenho é essa. Os mortos
ficam friorentos porque são ventados e chuviscados. Daí que ganham
inveja da quentura dos vivos. Vai ver, Dona Candida, que essa roupa
vai acalmar as vinganças do Evaristo.
E
a gorda mulata confessou o seu receio, nem bem com os mortos nem bem
com os vivos:
— O
meu medo, agora, é o Sulemane. Ele mata-me, a mim e ao senhor.
Zuzé
Paraza levantou-se, confiante. Colocou a mão no braço da cliente e
acalmou-a:
—
Estive assim pensageiro, Dona Candida. E
encontrei a solução. A senhora que vai descobrir o roubo e
comunicar o seu marido. Pronto, foi um ladrão qualquer, há tantos
deles aqui.
Uma
semana depois, chegou uma mala cheiinha. Calas, camisas, cuecas,
gravatas, tudo. Uma fortuna. Zuzé começou de experimentar o fato
castanho. Estava largo, medida era de um comerciante, homem de
esperar sentado, comer bem. Enquanto ele, um pintor, puxava tamanho
menor. Era tão magro que nem pulgas nem piolhos lhe escolhiam.
Procurou
na mala uma gravata a condizer. Havia mais de dez. Junto com cuecas
de perna comprida, pegas sem remendos. Sulemane devia ter ficado
descuecado. O seu guarda-fato era agora um guarda-nada.
Vestido
das aldrabices da sua invenção, Zuzé Paraza puxou a garrafa de
xicadjú. Para festejar, somou mais de dez copos. Foi então que o
álcool começou a aldrabar a esperteza dele, também. Havia uma voz
que teimava de dentro:
— Essas
roupas são minhas próprias, não foi ninguém que deu, não vieram
de nenhuma parte. São minhas!
E
assim, convencido que era dono dos enfeites, decidiu sair, gingar
fora. Parou na cantina, mostrou as vaidades, casacado, gravatado. As
vozes em volta encheram-se de invejas:
—
Aquela roupa não é dele. Parece já vi
um algum com ela.
E
os presentes, lembrando, chegaram ao dono: eram de Sulemane Amade.
Exatamente, eram. Como foram parar aquelas roupas no Zuzé, sacana,
telefonista das almas? Roubou, o gajo. Esse corveiro entrou na casa
do Sulemane. E partiram a avisar o indiano.
Desconhecendo
as manobras, Zuzé continuou exibindo suas despertenças. O corvo
acompanhava-o, grasnando-lhe em cima. Ele, desendireitando-se, fazia
o coro.
Foi
então que, no cruzamento da cantina, surgiu Sulemane, espumando
fúrias. Avançou no pintor e apertou-lhe o pescoço. Zuzé balançava
dentro do fato largo.
— Onde
é que tiraste este fato, ladrão?
O
pintor queria explicar mas desconseguia. Em volta, o corvo saltitava,
tentando pousar-lhe na cabeça instável. Quando o indiano aliviou,
Zuzé murmurou:
—
Sulemane, não me mate. Não roubei. Esta
roupa fui dado.
O
indiano não abandonara violências. Mudara de táctica: do pescoço
para pontapés. Zuzé pulava em concorrência com o corvo.
— Quem
te deu a minha roupa, grande aldrabão?
— Pára
de me dar pontapés! Vou explicar.
Zuzé
Paraza aproveitou uma trégua e atirou, certeiro:
— Foi
a tua mulher, Sulemane. Foi Dona Candida que me deu essa roupa.
—
Candida deu-te? Mentira, sacana.
Choveram
murros, pontapés, bofetadas. A assistência, em volta, aplaudia.
— Fala
verdade, Paraza. Não me vergonhes com essa história da minha
mulher.
Mas
o velho pintor não falava, demasiado ocupado em se desviar das
porradas. Uma dessas bofetadas que voava na direção do nariz do
Paraza foi embater no pássaro.
Arremessado,
o corvo volteou no chão, asa partida, esperneando os finais. Todos
pararam volta da agonia da ave. As vozes aflitas:
—
Sulemane se você mataste o corvo, estás
mal com a sua vida.
— Estou
mal, o caraças! Quem é que acredita num corvo a falar com
espíritos?
Zuzé
a sangrar do nariz respondeu, com gravidade:
— Se
você num acredita, deixa. Mas esse corvo que deste porrada vai-lhe
trazer desgraça.
Má
lembrança do Zuzé Paraza. O indiano recomeçou a pancadaria. Duas
porradas foram dadas, três falharam. O pintor diminua resistência.
O álcool no seu sangue atrapalhava-lhe os desvios. Até que um soco
derruba Zuzé. Desamparado, cai em cima do corvo. No meio da poeira
Zuzé Paraza retira o pássaro morto debaixo de si. Ergue o corvo
mágico e aponta-o para o indiano.
—
Mataste o pássaro, Sulemane! Estás
lixado. Vais ver que o que te vai acontecer! Há-des gatinhar como um
porco!
Então,
deu-se o incrível. Sulemane começa as tremuras, grunhidos, roncos,
babas e espuma. Cai sobre os joelhos, rasteja, revolve-se nas areias.
O povo aterrado foge: a maldição do Zuzé ficara verdade. Sulemane,
convulso, parece uma galinha a quem se cortou a cabeça. Por fim,
pára, cansado dos demônios que o sacudiram. Zuzé sabe que a seguir
ele vai sentir sede. Aproveita e ordena:
— Vais
ficar com sede, seu porco-espinho! Vais chorar por água!
Provas
do poder de Zuzé estavam ali: o Sulemane joelhado suplicando água,
chorando para que matassem a sede que o matava.
A
notícia, como um relâmpago, correu a povoação. Afinal, esse Zuzé!
Era mesmo, o gajo. Dono de bruxezas, realmente. No dia seguinte,
todos levan-taram cedo. Correram a casa de Zuzé Paraza. Todos
queriam ver o pintor, todos queriam-lhe pedir favor, encomendar
felicidades.
Quando
chegaram, encontraram a casa vazia. Zuzé Paraza tinha partido.
Procuram no horizonte vestígios do adivinho. Mas os olhares morreram
nos capins do longe onde os grilos se calam. Revistaram a casa
abandonada. O velho tinha levado todas as coisas. Ficara uma gaiola
pendurada no teto. Baloiava, viva, hóspede do silêncio. Com o medo
crescendo dentro, os visitantes saíram para as traseiras. Foi então
que, no pátio, viram o sinal da maldição: um pássaro morto,
desenterrado. Sobre a vida quieta soprava uma brisa que, aos poucos,
arrancava e lançava no ar as penas magras do corvo falador.
Aceitando
o aviso, os habitantes começaram a abandonar a povoação. Saíram
em grupos uns, sozinhos outros, e por muitos dias vaguearam errantes
como as penas que o vento desmanchava na distância.
Mia
Couto, in Vozes anoitecidas
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