segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Na delegacia

Madame, queira comparecer com urgência ao Distrito. Seu filho está detido aqui.
Como? O senhor ligou errado. Meu filho detido? Meu filho vive há seis meses na Bélgica, estudando física.
E a senhora só tem esse?
Bom, tenho também o Caçulinha, de dez anos.
Pois é o Caçulinha.
O senhor está brincando comigo. Não acho graça nenhuma. Então um menino de dez anos foi parar na polícia?
Madame vem aqui e nós explicamos.
A senhora correu ao Distrito, apavorada. Lá estava o Caçulinha, cabeça baixa, silencioso.
Meu filho, mas você não foi ao colégio? Que foi que aconteceu?
Não se mostrou inclinado a responder.
Que foi que meu filho fez, seu comissário? Ele roubou? Ele matou?
Estava com um colega fazendo bagunça numa casa velha da rua Soares Cabral. Uma senhora que mora em frente telefonou avisando, e nós trouxemos os dois para cá. O outro garoto já foi entregue à mãe dele. Mas este diz que não quer voltar para casa.
A mãe sentiu uma espada muito fina atravessar-lhe o peito.
Que é isso, meu filho? Você não quer voltar para casa?
Continuava mudo.
Eu disse a ele, madame — continuou o comissário —, que se não voltasse para casa teria de ser entregue ao Juiz de Menores. Ele me perguntou o que é o Juiz de Menores. Eu expliquei, ele disse que ia pensar.
Meu filho, meu filhinho — disse a senhora, com voz trêmula —, então você não quer mais ficar com a gente? Prefere ser entregue ao Juiz de Menores?
Caçulinha conservava-se na retranca. O policial conduziu a senhora para outra sala.
O que esses garotos estavam fazendo é muito perigoso. Brincavam de explorar uma casa abandonada, onde à noite dormem marginais. Madame compreende, é preciso passar um susto nos dois.
A senhora voltou para perto de Caçulinha, transformada:
Sai daí já, seu vagabundo, e vamos para casa.
O mudo recuperou a fala:
Eu não posso voltar, mãe.
Não pode? Espera aí que eu te dou não pode. E levou-o pelo braço, ríspida.
Na rua, Caçulinha tentou negociar:
A senhora me deixa passar em Soares Cabral? Deixando, eu volto direito para casa, não faço mais besteira.
Passar em Soares Cabral, depois desse vexame? Você está louco.
Eu preciso, mãe. Tenho de pegar uma coisa lá.
Que coisa?
Não sei, mas tenho de pegar. Senão me chamam de covarde. Aceitei o desafio dos colegas, e se não trouxer um troço da casa velha para eles, fico desmoralizado.
Que troço?
O pessoal diz que lá dentro tem ferros para torturar escravo, essas coisas. Eu e o Edgar estávamos procurando, ele mais como testemunha, eu como explorador. Mãe, a senhora quer ver seu filho sujo no colégio, quer? Tenho de levar nem que seja um pedaço de cano velho, uma fechadura, uma telha.
A mãe estacou para pensar. Seu filho sujo no colégio? Nunca. Mas e o perigo dos marginais? E a polícia? E seu marido? Vá tudo para o inferno. Tomou uma resolução macha, e disse para Caçulinha:
Quer saber de uma coisa? Eu vou com você a Soares Cabral.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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