Ilustração de Rodrigo Rosa
Talmente,
também, se carecia de tomar repouso e aguardo. Por meios e modos,
sortimos arranjados animais de montada, arranchamos dias numa fazenda
hospitaleira na Vereda do Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo
e o Acarí, em toda a parte a gente era recebida a bem. Tardou foi
para se ter sinal dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que
todos os moradores pertenciam do nosso lado. MedeiroVaz não
maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força,
nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as
pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes. Mas
os hermógenes e os cardões roubavam, defloravam demais,
determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam feito peste.
Na ocasião, o Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram
um mundo enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse.
Dando meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num
Burití-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa.
E guardava munição da mais de dez mil tiros de bala.
Por
que foi que não se fez combate, depois naqueles meses todos? A
verdade digo ao senhor: os soldados do Governo perseguiam a gente.
Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão Melo Franco ― esses não
davam espaço. E Medeiro Vaz pensava era um pensamento: a gente
mamparreasse de com eles não guerrear, não se esperdiçar ―
porque as nossas armas guardavam um destino só, de dever.
Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritís
ensinam, a gente varava para após. Se passava o Piratinga, que é
fundo, se passava: ou no Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então,
pegando mais por baixo, o São Domingos, no Vau do José Pedro. Se
não, subíamos beira desse, até às nascentes, no São
Dominguinhos. A ser o importante, que se tinha de estudar, era
avançar depressa nas boas passagens nas divisas, quando militar
vinha cismado empurrando. E preciso de saber os trechos de se descer
para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai
terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis
vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão
que dá som ― um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho:
de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se
chegava até no Jalapão ― quem conhece aquilo? ― tabuleiro
chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser
padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah,
quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de
um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada ― homens,
mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a
imagem da igreja ― tendo até bandinha-de-música, como vieram com
todos, parecendo nação de maracatú! Iam para os diamantes, tão
longe, eles mesmo dizendo! ...nos rios... Uns tocavam jumentos de
almocreve, outros carregavam suas coisas ― sacos de mantimentos,
trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. O padre, com
chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata
enchendo estrada, às poeiras, com o plequêio das alpercatas, as
velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria
para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de
religião, acompanhamos esses até à Vila da Pedra-de-Amolar. Lá
venta é da banda do poente, no tempo-das-águas; na seca, o vento
vem deste rumo daqui. O cortejo dos baianos dava parecença com uma
festa. No sertão, até enterro simples é festa.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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