Abrindo
um parêntesis na agitação de uma vida pouquíssimo devota e
muitíssimo prática, todo o grande rebanho religioso resolveu,
durante três ou quatro dias, recordar-se de que outrora, lá em uma
velha cidade do Oriente, um pobre rapaz, por amor dos homens, se
deixou amavelmente pendurar numa cruz.
Recordou-se,
mas não como naqueles tempos em que a cristandade, com um pranto
mais ou menos verdadeiro, batia piedosamente nos peitos e se
mortificava e ralava os joelhos e passava semanas estragando o
estômago com um detestável e insulso bacalhau ascético.
Hoje
— ai! — as coisas mudaram.
Há
até algumas condenadas que não hesitam, nos dias da Paixão, em
meter dentes ímpios no saboroso “beef” cheio de pecados,
britanicamente tresandando a heresia. A religiosidade pacata que
transita pelas ruas, visita as igrejas, beija os pés do Senhor e
critica rindo a linguagem dos graves eclesiásticos que pregam
sermões de lágrimas, abandonou o antigo e salutar costume de
penetrar funebremente em fatos cor da treva, amarrar ao pescoço
gravatas tétricas e apresentar à gente um ar compungido de quem
acaba de receber o mais doloroso golpe que se pode imaginar.
Anda-se
com botas amarelas, chapéu branco, calças claras, coisas que são
apenas atenuadas pelo rigor de um ou outro paletó severamente escuro
e que traduzem uma crença muito dúbia, um fervor religioso muito
ambíguo.
Mas
que querem? É o progresso. Já não há necessidade de meter-se um
indivíduo numa cela e ali passar horas e horas prostrado, com
sangrentos calos nas rótulas, batendo nos peitos ou arrancando os
cabelos, faminto, a rezar com desespero, os olhos esbugalhados presos
no teto, como se estivesse vendo aparecer lá em cima o vulto do
amável Jesus tal qual ele estava quando o desceram do aviltante
instrumento de suplício — boca aberta, a cabeça pendida para um
lado, as mãos negras de sangue coalhado.
Há
processos modernos de adoração.
Chora-se
alegremente a morte do Redentor nos teatros, onde as empresas
suspendem temporariamente as representações de revistas idiotas e
de peças “gênero livre”, para oferecer ao público a Vida,
Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, coisa muito
bem-feita e pelos preços do costume. E os cartazes dos cinemas
proclamam também reproduções daquelas coisas peregrinas que S.
Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João ingenuamente introduziram em
seus evangelhos.
Magnífico!
Por cinco tostões, tem um cristão uma morte de Jesus em segunda
classe, com tudo que uma alma pia pode desejar — as pregações, as
curas milagrosas, os brinquedos infantis do pequeno Rabi e os bigodes
dos legionários romanos. É barato.
De
sorte que, com a desleal concorrência que os teatros fazem às
igrejas, vão os empresários penetrando suavemente na seara sagrada.
Essa
gente frivolamente religiosa nem se dá ao trabalho de comemorar a
sério a morte do pobre revolucionário judeu, a quem a posteridade
pregou um logro formidável e que é hoje representado por qualquer
comediante de revistas.
E
pensar que, há mil setecentos e cinquenta e sete anos, S. Policarpo
teve o louvável incômodo de ir de Esmirna a Roma conferenciar com
Santo Aniceto sobre a grave questão da Páscoa! Pensar que S. Vitor
e a Igreja do Oriente andaram numa grossa barulhada, por não terem
chegado a um acordo sobre o dia em que a cristandade devia comer um
carneiro e exercer outras práticas difíceis! Para nada serviram
tantos discursos, tanta condenação, tanta balbúrdia entre aqueles
respeitáveis santos, até que o concílio de Niceia resolvesse pôr
termo à questão.
Hoje
chega a parecer que se não estabelece distinção entre a mais séria
de todas as sextas-feiras e essas reles sextas-feiras ordinárias. E
o sábado é uma pândega, uma “aleluia” de todos os pecados.
Mandam-se
à fava as parcas roupas pretas que ainda surgiam por acaso, veste-se
qualquer cômoda vestimenta de “pierrot” ou de arlequim, pega-se
um lança-perfume e vai-se para a Avenida.
Ali
é que a vida é uma coisa deliciosa.
“Confeti”,
serpentinas, caras com pinturas artísticas, sorrisos tentadores e
postiços mostrando alvos dentes de porcelana...
Sublime!
A
semana passada foi-se, vai longe.
Agora
é o Carnaval, a patuscada, a alegria, a “evoé”, a “Filomena”...
Ah!
Venerandos sumos pontífices do segundo século! S. Policarpo, Santo
Irineu e outros que tais! Empertigados e simplórios bispos do
concílio de Niceia! — Felizmente estais mortos. Se pudésseis ver
o que aqui se passa mil novecentos e quinze anos depois da execução
do Messias, mandáveis à breca todas as controvérsias que tivestes
para reputar aquelas coisas da Páscoa.
Rio,
5 de abril de 1915
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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