Antes
do amanhecer de um 25 de dezembro procurei ansioso pelos pacotes
coloridos deixados por um trenó de outro mundo, e os encontrei
pendurados nos galhos do jambeiro. Gostava dessa árvore porque em
sua folhagem espessa piscavam luzes coloridas e os jambos, de um
vermelho vivo, pareciam corações de veludo.
De
manhã cedo perguntei à minha mãe por que Papai Noel se esquecera
de deixar alguns presentes. Ela disse que era assim mesmo: com tantas
crianças por aí, como é que o velho ia dar conta de todos os
presentes? Quem sabe se no próximo ano…?
Mas
no ano seguinte alguém na escola espalhou que Papai Noel só existia
para crianças ingênuas. Dei adeus à ânsia e ao jambeiro
iluminado, jantei com os adultos e fiquei acordado, ouvindo tio Adam,
que provocava risos em todos, menos em tio Ghodor.
Adam
era ansioso para enriquecer, mas um ansioso distraído nos negócios.
Recordo as frases que ele disse na noite natalina de 1961: “Vocês
vão ver: no próximo Natal, este que vos fala será um magnata”.
Um
ano depois, quando ele estacionou sua lambreta velha na calçada da
nossa casa, tio Ghodor disse: “Chegou o magnata no seu conversível
de duas rodas”.
Conversaram
sobre o recente empreendimento de Adam, um fiasco que deixara o
infeliz empreendedor endividado e Ghodor, tenso, porque este pagava
as dívidas do irmão. Pagou por dois anos seguidos. Na noite de
Natal do terceiro ano, Ghodor disse: “Nessa família, eu sou o
Papai Noel e o Adam é a única criança, um meninão de trinta e
cinco anos. Chega de aventuras, Adam”.
“Mas
tive uma ideia incrível, Ghodor.”
Tio
Ghodor pôs as mãos na nuca, ergueu a cabeça para as estrelas e
disse ao irmão: “Guarda essa tua ideia, pelo amor de Deus. O Papai
Noel aqui está no vermelho”.
“Mas
é uma ideia luminosa”, disse Adam. “Queres ser meu sócio?”
“Nem
morto”, disse o irmão. “Por que eu seria sócio de mais um dos
teus fracassos?”
Então
Adam, perseverante e iluminado, pediu empréstimo a um banco e abriu
uma sorveteria em abril do ano seguinte. No começo foi um estrondo.
Era como se Adam tivesse encontrado seu destino de magnata. Ria
sozinho, mas eu e meus amigos também ríamos, porque tomávamos
sorvetes de graça. Ah, o perfume ácido do cupuaçu, o sabor
singular do tucumã na massa cremosa… Adam dizia que era uma
receita italiana adaptada às frutas do Amazonas. E quanto movimento!
A sorveteria vivia cheia; meu tio, aspirante a magnata, era magnânimo
com os empregados e com os amigos. E Adam tinha mais amigos que
clientes. Até Ghodor pagava os sorvetes, mas a multidão de amigos
de Adam comprava fiado.
“Adam
é muito querido na cidade”, disse minha mãe, no auge da
sorveteria.
“Queridíssimo”,
concordou meu pai. “E muito mais ingênuo do que querido. Não dou
seis meses para essa sorveteria derreter…”
O
tio generoso e amoroso, mas moroso no comércio, pensou tarde demais
num dos entraves para qualquer negócio em Manaus: o apagão. Os
blecautes ocorriam sem aviso prévio: nossa única certeza é que
eram infalíveis e duradouros. Adam comprou um gerador que ficava
desligado durante a madrugada. Os inúmeros amigos e poucos clientes
da sorveteria não queriam tomar suco amornado, e sim sorvete.
Em
novembro a sorveteria fechou. Ghodor socorreu o irmão, mas este teve
de vender sua casa, sua lambreta velha e os anéis que iam brilhar
nas mãos de sua recente namorada, uma beleza cabocla muito mais
vaidosa que idosa. Até os copinhos de papel foram a leilão.
Na
noite de Natal meu tio falido chegou à nossa casa depois da ceia.
Esse Adam dos becos e igarapés de Manaus entrou na sala sem sua Eva
cabocla. Por comiseração ou cansaço, ninguém zombou dele.
Meu
tio envelheceu com sonhos de magnata, sempre inspirado por ideias
luminosas, nas quais só ele acreditava. Falia e fracassava com a
nobreza de um perdedor que desconhece a amargura e o ressentimento.
Mas esse perdedor me dava romances, e também moedas para que eu
visse filmes no Éden e em outras salas escuras, onde as aventuras
eróticas nem sempre aconteciam na tela. Ele foi o Noel da minha
primeira e última juventude. Um Noel magro, moreno, elegante e
altaneiro, péssimo jogador e bom bebedor nas horas vagas, que não
eram poucas. E um compassivo contumaz, capaz de esvaziar os bolsos
quando via crianças descalças, de pés esfolados, oferecendo
serviços de engraxate sob o sol pecaminoso de Manaus.
Não
há noite natalina em que a figura de Adam não surja viva diante de
mim, mesmo sabendo que ele e os outros estão todos deitados,
dormindo, profundamente, como no belo poema de Manuel Bandeira.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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