segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Necessidade de alegria

O ator que fazia o papel de Cristo no espetáculo de Nova Jerusalém ficou tão compenetrado da magnitude da tarefa que, de ano para ano, mais exigia de si mesmo, tanto na representação como na vida rotineira.
Não que pretendesse copiar o modelo divino, mas sentia necessidade de aperfeiçoar-se moralmente, jamais se permitindo a prática de ações menos nobres. E exagerou em contenção e silêncio.
Sua vida tornou-se complicada, pois os amigos de bar o estranhavam, os colegas de trabalho no escritório da Empetur (Empresa Pernambucana de Turismo) passaram a olhá-lo com espanto, e em casa a mulher reclamava do seu alheamento.
No sexto ano de encenação do drama sacro, estava irreconhecível. Emagrecera, tinha expressão sombria no olhar, e repetia maquinalmente as palavras tradicionais. Seu desempenho deixou a desejar.
Foi advertido pela Empetur e pela crítica: devia ser durante o ano um homem alegre, descontraído, para tornar-se perfeito intérprete da Paixão na hora certa. Além do mais, até a chegada a Jerusalém, Jesus era jovial e costumava ir a festas.
Ele não atendeu às ponderações, acabou destituído do papel, abandonou a família, e dizem que se alimenta de gafanhotos no agreste.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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