Ao
amanhecer, grossas gotas de chuva caíram sobre a terra. Soavam ocas
ao estampar-se no pó branco e solto dos sulcos. Um pássaro
brincalhão cruzou no rés do chão e gemeu imitando o queixume de
uma criança; um pouco adiante ouviu-se que ele dava gemidos como de
cansaço, e ainda mais longe, lá onde o horizonte começava a se
abrir, soltou um soluço e depois uma gargalhada, para tornar a gemer
depois.
Fulgor
Sedano sentiu o cheiro da terra e saiu para ver como a chuva
deflorava os sulcos. Seus olhos pequenos se alegraram. Até aspirou
três bocadas daquele sabor e sorriu até mostrar os dentes.
“Que
coisa!” — disse ele. “Outro bom ano está chegando.” E
acrescentou: “Vem, aguinha, vem. Deixe-se cair até cansar! Depois
corre mais para lá, lembre-se que abrimos a terra inteira para a
lavoura, só para você se dar esse gostinho.”
E
soltou o riso.
O
pássaro brincalhão que acabava de percorrer os campos passou quase
na frente dele e gemeu um gemido desgarrado.
A
água apertou sua chuva até que lá por onde começava o amanhecer,
o céu se fechou e pareceu que a escuridão, que já estava indo
embora, regressava.
A
porta grande da Media Luna rangeu ao abrir, empapada pela brisa.
Foram saindo primeiro dois, depois outros dois, e mais outros dois, e
assim até somarem duzentos homens a cavalo que se esparramaram pelos
campos chuvosos.
— É
preciso arrebanhar o gado do Enmedio para lá do que foi Estagua, e o
de Estagua é preciso encurralar lá para os montes de Vilmayo — ia
ordenando Fulgor Sedano conforme eles saíam. — E agora mesmo, que
as águas estão despencando em cima de nós!
Disse
isso tantas vezes que os últimos só ouviam: “Daqui para lá e de
lá para mais para lá!”
Todos
e cada um levavam a mão ao chapelão para dar a entender que tinham
entendido.
E
quando o último homem mal havia acabado de sair, entrou a todo
galope Miguel Páramo, que, sem deter sua carreira, apeou do cavalo
quase no nariz de Fulgor, deixando que o cavalo buscasse sozinho seu
cocho.
— E
de onde você vem a essas horas, rapaz?
— De
ordenhar.
—
Ordenhar quem?
— Você
não adivinha?
— Deve
ser de ordenhar a Dorotea Perneta, a única que gosta de bebês.
— Você
é um imbecil, Fulgor; mas não por culpa sua.
E
saiu, sem tirar as esporas, atrás de almoço.
Na
cozinha, Damiana Cisneros também fez a ele a mesma pergunta:
— Vindo
de onde, Miguel?
— De
aí pelas vizinhanças, visitando mães.
— Não
é para se zangar. Disfarce. Como quer que eu prepare os ovos?
— Do
jeito que você gosta.
— Estou
falando direito com você, Miguel.
— Está
bem, Damiana. Não se preocupe. Escuta aqui, você conhece uma tal de
Dorotea Perneta?
—
Conheço. E se você quiser vê-la, está
logo aí fora. Madruga sempre para vir até aqui atrás do café da
manhã. É uma que traz um embrulhinho de pano dentro do xale e fica
embalando e dizendo que é seu filho. Parece que aconteceu alguma
desgraça lá em seus tempos; mas, como nunca fala, ninguém sabe o
que aconteceu. Vive de esmola.
—
Maldito velho! Vou armar uma para ele que
vai ser de fazer redemoinho em seus olhos.
Depois
ficou pensando se aquela mulher não lhe serviria para alguma coisa.
E, sem duvidar um instante, foi até a porta dos fundos da cozinha e
chamou Dorotea:
— Venha
até aqui, que eu quero propor um trato — disse a ela.
E
quem saberá que tipo de proposta faria, mas o fato é que quando
entrou de novo esfregava as mãos:
— Mande
logo esses ovos! — gritou para Damiana. E acrescentou: — De hoje
em diante você vai dar de comer a essa mulher a mesma coisa que dá
para mim, e não importa o que aconteça.
Enquanto
isso, Fulgor Sedano foi até o celeiro revisar a altura do milho.
Estava preocupado com a escassez porque ainda faltava muito para a
colheita. Para falar a verdade, mal haviam acabado de semear. “Quero
só ver se dá.” Depois, continuou: “Esse rapaz! Igualzinho ao
pai; mas começou cedo demais. A esse passo, acho que não vai
conseguir. Esqueci de mencionar a ele que ontem chegaram aqui com a
acusação de que ele tinha matado alguém. Se continuar assim...”
Suspirou
e tratou de imaginar por onde andariam os vaqueiros. Mas o potro
alazão de Miguel Páramo, que raspava o focinho contra a cerca, o
distraiu. “Nem para tirar a sela”, pensou. “E não vai tirar.
Pelo menos dom Pedro é mais responsável com a gente, e tem lá seus
momentos de calma. Só que mima muito esse Miguel. Ontem contei a ele
o que o filho tinha feito, e me respondeu: ‘Pense que fui eu,
Fulgor; ele é incapaz de fazer isso: ainda não tem nem força para
matar alguém. Para isso é preciso ter os rins deste tamanhão.’
Pôs as mãos assim, como se medisse uma abóbora. ‘Bote em mim a
culpa de tudo que ele fizer’.”
—
Miguel há de lhe dar muitas dores de
cabeça, dom Pedro. Ele gosta de criar caso.
— Deixa
ele se mexer. É só um menino. Quantos anos fez? Deve ser uns 17.
Não é isso, Fulgor?
— Pode
ser. Lembro que foi trazido logo depois de nascer, como se fosse
ontem; mas é tão violento e vive tão depressa que às vezes acho
que está apostando corrida com o tempo. Vai acabar perdendo, o
senhor haverá de ver.
— Ainda
é uma criança, Fulgor.
— Será
o que o senhor quiser, dom Pedro; mas essa mulher que veio ontem
chorar aqui, alegando que o senhor seu filho tinha matado seu marido,
estava desconsolada e sem remédio. Eu sei medir o desconsolo, dom
Pedro. E essa mulher carregava quilos dele. Ofereci a ela 50
hectolitros de milho para que esquecesse o assunto; mas ela não
quis. Então prometi que arranjaríamos um jeito de corrigir o dano.
Mas ela não se conformou.
— De
quem se tratava?
— É
gente que eu não conheço.
— Então
você não tem por que se preocupar, Fulgor. Essa gente não existe.
Chegou
ao celeiro e sentiu o calor do milho. Tomou em suas mãos um punhado
para ver se não tinha sido pego pelo gorgulho. Mediu a altura:
“Renderá” disse. “Assim que o pasto crescer não vamos mais
precisar de dar milho para o gado. Tem de sobra.”
De
volta olhou o céu cheio de nuvens: “Teremos água durante um bom
tempo.” E se esqueceu de todo o resto.
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
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