Quando
uma amiga norte-americana me disse que eu ia penar no frio de Iowa,
dei de ombros e respondi que os amazonenses têm pele de sucuri. Mas
ela estava certa.
A
terceira semana de outubro daquele ano já distante foi suportável;
em novembro os escritores dos trópicos adquiriram um ar triste, de
palmeiras transplantadas para um mundo gelado. Nossos refúgios em
Iowa City eram o cineclube, a maravilhosa livraria Prairie Lights e
os bares. A complicação começou na madrugada de 18 de novembro,
quando o alarme contra incêndio disparou no nosso alojamento, onde
moravam estudantes da Universidade de Iowa. Os 26 escritores de
quatro continentes ocupavam o sétimo e último andar, e eu só tive
tempo de pegar meu casaco e descer as escadas aos tropeços,
empurrado por uma turba de poetas e narradores desesperados, ouvindo
vozes em espanhol, alemão, russo, polonês, árabe, hebraico, suaíli
e, suponho, em urdu e hindi. Essas vozes de Babel abandonavam as
alturas para vencer a distância entre o céu da cama morna e o
inferno do gelo exterior.
Em
novembro eu já era amigo da espanhola Anatxu e do argentino Rodrigo.
Um russo, cujo nome não recordo, nos acompanhava aos bares e ao
cineclube. No outro lado da rua, nós quatro olhávamos para o
edifício, esperando sinais de fumaça, enquanto os bombeiros
verificavam se era alarme falso ou fogo de verdade. O russo tirou uma
garrafinha de vodca do bolso e nos ofereceu um gole. Ele era o único
que, além de não sentir frio, ria dos friorentos. Depois de
esvaziarmos a garrafinha, o russo, como um mágico da estepe, sacou
outra do bolso e abriu-a. Quando Rodrigo perguntou se essa garrafa
era para nós, o russo disse: “Egg Zactl”, com a mesma
pronúncia de Pnin, a personagem patética do romance de Nabokov.
Rodrigo deu uma gargalhada, e logo depois os bombeiros deram a boa
notícia de que se tratava de um alarme falso. Subimos de elevador
até o sétimo andar e, no dia seguinte, voltamos à Prairie Lights,
ao cineclube, ao mesmo bar onde nós quatro bebíamos e conversávamos
sobre cinema e literatura. Lá pelas tantas, quando falávamos em
espanhol, o russo boiava, e só lhe restava beber e ouvir, com ar
perplexo.
Na
madrugada do dia 29 o alarme disparou de novo, e dessa vez decidi que
era preferível morrer asfixiado ou queimado a suportar o frio
siberiano de Iowa. Permaneci quieto, encasulado no cobertor, ouvindo
o tropel e as vozes em pânico. Depois ouvimos a mesma versão dos
bombeiros: travessura de algum estudante que disparara o alarme.
Em
dezembro era impossível sair do quarto aquecido. Da janela eu via
uma paisagem branca com árvores desfolhadas. Uma tarde só tive
ânimo de correr até a Prairie Lights e pegar um romance que eu
encomendara. Anatxu, nossa amiga espanhola, quis ficar em Iowa; o
russo e suas garrafinhas haviam sumido; eu e Rodrigo decidimos ir
embora: ele foi para Nova York, eu fugi do frio e de alarmes falsos e
viajei para o sul, onde vi o rio Mississippi e as extensas plantações
de milho e algodão. Depois desci até New Orleans e naveguei no
grande rio, um dos meus sonhos antigos.
Em
New Orleans algumas coisas me fizeram lembrar Belém e o Norte do
Brasil: a culinária picante, herança das culturas indígena,
africana e europeia; o clima quente e úmido; uma indolência sem
culpa; pequenas casas de madeira onde morava a pobreza. No Vieux
Carré da cidade, entre a Jackson Square e a Royal Street, procurei e
encontrei ruas estreitas com casas avarandadas. Não senti o cheiro
de jasmim, nem de açúcar, bananas ou maconha. O ar parecia parado:
o ar do porto, úmido e morno. Tampouco ouvi acordes de piano de
alguma composição de Gershwin. Mas, diante de uma casa avarandada
no Bairro Francês, uma palmeira estranhamente agitada projetava
sombras também estranhas na calçada.
O
romance que eu acabara de ler na viagem ainda estava vivo na minha
memória. Atrás de um muro de tijolos imaginei a casa onde, numa
festa de artistas, o jovem médico e nada sedutor Harry Wilbourne
apaixona-se por Charlotte Rittenmeyer: uma mulher casada, mãe de
duas filhas. Possuídos por um idealismo teimoso e louco, esses dois
ingênuos vivem onze meses siderados por um amor romântico, cujo
desfecho será trágico, dignamente trágico.
Eu
estava longe de Iowa City e agora seguia de perto uma das histórias
narradas no romance que eu havia lido. Depois fui ao Mississippi e
visitei Pascagoula, que ainda mantinha resquícios do antigo vilarejo
de pescadores da década de 1930. Lá, me deparei com o cenário da
tragédia romanesca e conheci um escritor de Utah. Quando ele soube
que eu era brasileiro, me perguntou o que eu estava fazendo naquele
fim de mundo.
“O
mesmo que você”, eu disse, apontando o livro que ele segurava.
Era
a primeira edição do romance Palmeiras selvagens, de William
Faulkner.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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