Mas
uma tarde, já ao escurecer, como obedecendo um comando secreto,
todos os cachorros cessaram o que estavam fazendo, farejaram o ar,
limparam os pés e dispararam no rumo da tapera, atropelando gente e
se atropelando. Saíam de quintais, latadas, de monturos, ainda
arrastando gravetos e ramagens, derrubando cinza, cavacos, folhas
secas do lombo. Os bandos que saíam de cada rua iam desaguar no
largo, formando uma enchente que se despejava para a ponte, ganhava a
estrada e subia compacta para a tapera, deixando atrás um vazio
escuro que o ventinho fresco da boca da noite vinha preencher. Na
passagem estreita da ponte o aperto era tanto que se viam cachorros
avançando por cima dos outros, derramando-se para fora das grades e
despencando na pedreira lá embaixo, deixando na queda um risco de
grito a prumo.
As
pessoas ficaram sem saber o que pensar nem o que fazer, com medo de
se descontraírem antes da hora e terem de repor a máscara às
pressas. Não querendo fazer comentários prematuros, todos se
recolheram cedo para absorver no escuro as humilhações
desnecessárias e tão prontamente aceitas, quando não procuradas
espontaneamente.
Cada
um torturado pela sua vergonha particular, ninguém dormiu bem aquela
noite, nem mesmo os que se conservaram de lado desaprovando a
degradação geral com um simples abanar de cabeça; esses já
sentiam que desaprovar em silêncio é pouco menos do que aprovar, e
nem tinham o consolo barato dos que tiveram a coragem de aderir.
No
dia seguinte a cidade se esforçou por voltar à vida normal, e
ninguém quis falar nos cachorros; mas a lembrança deles estava em
toda a parte, no estrume deixado nos corredores das casas, nas
calçadas, na grama do largo; no cheiro de urina que empestava todos
os cantos; nos riscos de unhas feitos nas portas e paredes; nas penas
de galinha espalhadas pelos quintais e que até ainda voavam no ar,
no espanto ainda visível nos olhos das crianças e no
constrangimento dos adultos.
Parece
que Amâncio Mendes foi o primeiro a tocar no assunto, e do jeito que
ele falou deu a impressão de estar sondando, provocando. Mas ninguém
emendou conversa, ele sorriu, desviou.
— Estou
pensando em espichar a venda — disse ele com uma perna assentada no
balcão. — É só derrubar uma dessas paredes do lado, fazer um
puxado pra lá. Depois ponho fazendas, perfumaria, artigos finos.
— Então
vai ser uma loja — disse Dildélio. — Como a de seu Quinel.
— Ou
melhor. Vou contratar um bom empregado. Um ou dois.
— E
a freguesia? Seu Quinel anda se queixando da paradeira.
—
Freguesia tem. Vocês vão ver.
Os
presentes se olharam disfarçadamente. Entenderam.
— Dizem
que eles não compram nada. Têm de tudo lá. Recebem de fora.
— É,
é? Deixa dizerem. Enquanto vão dizendo, eu vou vendendo.
— E
quando eles forem embora? — Quem falou foi Manuel Florêncio,
sondando também.
— Eles
vão embora, é? Sabia não. Quem foi que disse?
—
Ninguém não. Mas um dia terão de ir.
— É,
é? Pois vá esperando.
Isso
inquietou os presentes. Com exceção de Amâncio, que agora era uma
espécie de advogado dos homens, ninguém sabia muito a respeito
deles, e o que ia sendo revelado era sempre assim, desagradável.
Então eles iam ficar. Fazendo o quê? Soltando cachorro na cidade
para assustar o povo?
—
Afinal de contas, o que é que eles
vieram cheirar aqui? — indagou Manuel Florêncio, não a Amâncio,
nem a ninguém, mas como quem deixa escapulir uma pergunta que há
muito o incomoda; mas todos olharam para Amâncio, reconhecendo que
só ele podia dar resposta.
Amâncio
não gostou da pergunta. Respondeu sério, repreendendo:
—
Cheirar, não. Ninguém veio cheirar
nada. Eles vieram trabalhar, trazer progresso. Se o povo não
entende, e fica de pé atrás, a culpa é do atraso, que é grande.
Mas eles vão trabalhar assim mesmo, vão tocar para a frente de
qualquer maneira. Quem não gostar que coma menos.
Ninguém
disse nada. Todos ficaram olhando para o chão, para os sacos de
gêneros, para as mercadorias penduradas, para as moscas enervantes.
Amâncio parecia saber alguma coisa, devia saber, mas teimava em
desconversar, em fazer mistério — ou pelo prazer de irritar ou
porque não podia mesmo falar, ordem dos homens, proibição.
Mas
Manuel Florêncio, positivo, meticuloso, incômodo, não ia se
conformar. Torcendo um fio de sobrancelha, real ou imaginário, falou
olhando para o chão:
—
Engraçado. Eles vieram trabalhar, trazer
progresso, fazer o bem. Então por que ficam entocados lá longe,
cercados, fechados, não se abrem com ninguém, e quando querem se
distrair soltam cachorros em cima da gente?
— Já
vem você — disse Amâncio. — Você não entende, está de cabeça
cheia. Ninguém aqui entende. Os homens estão trabalhando. Eu estive
lá, eu vi.
—
Esteve lá jogando peteca. Se isso é
trabalhar…
Amâncio
fungou, derrubou o cigarro, apanhou; tornou a derrubar, pisou em cima
com raiva, como quem mata um bicho venenoso, escorpião, lacraia.
— Não
é nada disso — gritou, por fim. — Ouviram cantar o galo. Eu
sabia que iam avacalhar. O culpado é o Geminiano. Ele vai ver
comigo. Pretete fedido.
— Você
é quem ouviu cantar o galo. Geminiano nem quis falar. Quem contou
foi o menino.
— Seja
quem for, fez fuxico. Mas não faz mal. Podem falar até rachar o
papo. Estou com os homens, o resto é muxingo de gongomé macho. Quem
não gostar tire a ceroula e pise em cima.
Quando
acabou de falar, Amâncio estava fungando forte, os dentes cerrados.
A raiva era tanta que ele teve de riscar vários paus de fósforos
para poder acender um cigarro. Era difícil discutir qualquer assunto
com Amâncio. Sempre que ele ficava sem defesa caía na valentia e os
outros recuavam. Brigar dá trabalho, e na maioria das vezes não
paga a pena. Amâncio mesmo era um exemplo. Das brigas que vencia —
quase todas — não ficava satisfeito com nenhuma. Passada a raiva,
esfriada a cabeça, não havia muita diferença entre ele e o
vencido. Em muitos casos, vencer briga não é melhor do que perder.
Para que então andar brigando à toa?
— Bom
— disse Manuel Florêncio —, você diz que eles estão
trabalhando e que no fim nós todos vamos lucrar. Então eu acredito
e fico esperando.
Amâncio
olhou para ele agradecido, desconfiado. Aquele Manuel às vezes dava
raiva, às vezes também dava alegria. Manuel era mestre em evitar
briga sem correr. Era mestre em muitas coisas que uma pessoa deve
saber para poder viver neste mundo difícil. Manuel Osório de
Almeida Florêncio. Manuel bobo. Manuel ladino. Manuel amigo.
— Vamos
tomar uma calcinada todo mundo — disse Amâncio virando-se para a
prateleira para providenciar garrafa e copos.
Os
outros se animaram, preparando a boca, antecipando; mas Manuel,
sentado nas mãos apoiadas num caixote, disse sem alarde:
— Tomem
vocês. Eu agradeço.
— Me
esqueci que ele é contra. Está aprendendo para santo — disse
Amâncio. Muitos riram, Amâncio sorriu satisfeito, Manuel explicou:
— É
o estômago. Não aguento nem o cheiro.
— Tampa
o nariz e vira — sugeriu um.
— Não
compensa. Prefiro olhar.
— Então
come um pé de moleque. Um beiju. Qualquer coisa — disse Amâncio
mandando.
Manuel
aceitou um beiju para evitar crítica, enquanto os outros iam
virando, careteando, bufando e cuspindo. Se era tão bom, para que
tanta resistência, tanto esforço?
Manuel
demorou-se um pouco mais, riu, conversou, deu uma desculpa e saiu.
Aquela função iria longe, terminaria em tocata de viola e cantaria,
com algumas discussões no meio, depois a galopada de Amâncio pelas
ruas, os tiros a esmo, os insultos diante das casas fechadas,
trancadas, escoradas, depois o sono largado em alguma vala de
arrabalde; Manuel tinha de estar descansado para o trabalho de
procura e salvamento.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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