A
vida é um beijo doce em boca amarga.
Depoimento
do feiticeiro
Nessa
manhã, ao chegarmos à pensão, fomos surpreendidos por um choro.
Provinha do quarto de Temporina. Encontramo-la debruçada sobre o
lavatório. Parecia ter vomitado. Mas não: ela simplesmente cuidava
que cada lágrima não tombasse no chão. Diz-se que lágrima de
enfeitiçada faz nascer no solo as mais estranhas coisas. Ficamos em
respeito, esperando que as lágrimas escoassem do rosto para a louça
branca. Depois, ela passou as mãos pelo rosto e falou:
—
Mataram meu irmão.
Seu
único irmão, o moço tonto que herdara os bens de Hortênsia. A
notícia era triste e colocava um novo elemento em toda aquela
estória. O moço explodira. Desta vez, porém, era uma explosão
real, dessas a que a guerra já antes nos havia habituado. Tão
simples quanto cruel: o moço pisara uma mina e as suas pernas se
separaram do corpo como um esfarrapado boneco de trapos. Antes de
chegar qualquer socorro ele se esvaíra em sangue. O italiano,
nervoso, me sacudiu:
— Foi
essa a explosão que ouvimos ontem em casa de seu pai.
Em
súbita decisão, Temporina enrolou uma capulana sobre a saia e
proclamou:
— Vou
sair!
— Você
não pode, Temporina.
Ainda
lhe segurei o braço. Mas não fui capaz de a prender. Ela
desapareceu no corredor. Intentei seguir no seu encalço. Em vão:
ela já se havia solvido entre as ruas. Voltei ao quarto de Massimo
Risi e, de novo, senti aquele presságio que me assaltara aquando do
primeiro rebentamento. Na cama do italiano, papéis revolvidos se
acumulavam. Massimo, em desespero, revirava as papeladas.
— Veja!
Apontava
os papéis e as fotos espalhados. Veja, veja, repetia. Apanhei umas
folhas ao acaso. Eram papéis em branco.
— Não
está nada escrito aqui.
—
Exatamente. E veja as fotos!
Eram
papéis de fotografia, mas em branco. Era esse o mistério —
aqueles papéis e aquelas imagens não eram virgens. Até ali estavam
maculados por letras, por imagens gravadas. Aqueles eram as provas,
os materiais que o italiano acumulava para mostrar aos seus chefes.
— Isto
tudo se apagou?!
— Tem
a certeza que não são outras folhas?
Massimo
se agarrou à cabeça:
— Estou
ficando maluco, não aguento mais.
Se
queixou de uma violenta dor de cabeça. Sugeri que saíssemos a
apanhar ares. Mas o italiano não tinha tempo para vagueações.
Saíamos, sim, rumo à administração para saber novidades.
No
caminho tivemos o extraordinário encontro: padre Muhando, liberto,
vagueando pelas ruas aos berros. Ainda o tentamos interpelar, mas ele
sacudiu-nos. Vociferava, possesso, contra Deus. Ele ter levado o
miúdo tonto, inominado, isso era imperdoável. Que Ele lhe havia de
pagar, aqui na terra pois o céu é demasiado tarde. O italiano se
admirou: afinal, o padre desistira de estar preso, se demitira do
sonho de sair?
— Aqui
não há verdadeira prisão — expliquei ao italiano.
À
entrada do edifício cruzamo-nos com Zeca Andorinho, o mais poderoso
feiticeiro da região. O homem saía furtivamente do gabinete do
administrador, conforme as ordens que lhe haviam sido dadas. De cada
vez que o mundo estremecesse, ele devia passar pela casa dos chefes a
tratar o lugar, afastando os maus-olhados.
Zeca
Andorinho nos fez sinal para que o seguíssemos e foi andando, rosto
escondido. Nós caminhávamos à sua trás até que ele parou no
abrigo de uma sombra. Dando de caras conosco, fixou o estrangeiro
como se o reconhecesse. Primeiro, falou na sua língua. Propositava,
pois ele falava português. Só depois de umas tantas frases se
dirigiu em português ao italiano.
— Eu
já lhe vi.
— Deve
ter sido por aí — respondeu Massimo Risi.
— Não,
vi-lhe lá na minha casa.
—
Impossível, nunca fui lá — e
me pedindo confirmação: — Fomos lá alguma vez?
—
Entre, que essa luz lhe faz ainda
piorar a dor da cabeça.
Massimo
se perturbou. Como sabia ele de sua enxaqueca?
—
Entre, aqui no escuro você se sente
melhorzito.
Estávamos à entrada de uma das duas
casas de Andorinho. Massimo entrou, ficando à espera que o outro
dissesse o que havia a fazer. O feiticeiro ordenou que estendesse as
pernas e se descalçasse. Desta vez, tive mesmo que traduzir. O
feiticeiro deixara de falar português. Passou a usar a língua
local, se exprimindo com olhos cerrados:
— Há
uma mulher que veio ter comigo.
— Que
mulher?
— Ela
me pediu que eu fizesse um serviço.
Fiz
sinal ao italiano para que não falasse. O feiticeiro já não lhe
daria ouvidos. O velho, sempre de pálpebra descida, parecia variar
sobre assunto não chamado. Disse que havia feitiços chamados de
likaho. Uma diversidade desses feitiços, cada qual feito de
diferente animal. Havia likaho de lagarto: os homens inchavam no
ventre. Sucedia o mesmo com os ambiciosos — os fulanos eram comidos
pela barriga. Havia o likaho de formiga e os enfeitiçados emagreciam
até ficarem do tamanho do inseto. O italiano me olhou de soslaio e
eu adivinhei o seu receio. Seria aquele o feitiço que o visitara no
seu pesadelo? Zeca Andorinho ensaiou uma pausa, como se ponderasse a
confissão. Depois, falou:
— Agora
esse likaho dos soldados é de sapo.
— De
sapo?
— Os
tipos engordam até ficarem como o imbondeiro. E depois eles já não
cabem no tamanho e se arrebentam.
Fazia
esse feitiço por encomenda dos homens de Tizangara. Ciúme dos
locais contra os visitantes. Inveja de suas riquezas, ostentadas só
para fazer suas esposas tontearem. Carecia-se de castigo contra os
olhares compridos dos machos estrangeiros. Sobretudo, se fardados de
soldados das Nações Unidas.
— Foi
este feitiço que usei contra esses gafanhotos.
Massimo
já sabia: os gafanhotos eram os capacetes azuis. Afinal, aquele
feitiço começava onde todo o homem começa — no namoro. À medida
que ia avançando ficava quente e o seu corpo se desconformava. O
enfeitiçado inchava, sem dar conta. Crescia como o sapo face a seu
próprio medo. Até que, no preciso momento do orgasmo, explodia.
O
feiticeiro, por fim, abriu os olhos e revisitou a sala como se
acabasse de entrar. Fixou o estrangeiro e lhe sorriu:
—
Agora, lhe pergunto uma indelicadeza.
—
Esteja à vontade.
— Você
namorou com aquela moça-velha do hotel...
— Não.
Eu só sonhei.
—
Diga-me, de homem: só sonhou mesmo?
Na sua roupa não aconteceu nada?
O
italiano ficou calado. No seu rosto se lia a pergunta: então, por
que não explodira? Mas ele estava tão medroso que não articulou
palavra. O feiticeiro respondeu à pergunta que ele não fizera.
— Você
recebeu um tratamento.
—
Tratamento?
— O
senhor está imunizado. Fui eu que lhe fiz o likaho do cágado. Para
lhe proteger.
— O
senhor me enfeitiçou? E por que razão o fez? — Foi uma mulher que
encomendou o serviço de lhe vacinar.
Massimo
misturava medos com receios, pavores com temores. Medo do
desconhecido, receio de acreditar, pavor das doenças, temores dos
feitiços. Ele só repetia:
— Uma
mulher?
— Deixe
isso, meu irmão.
— Mas
que mulher?
—
Escusa: você nunca irá saber.
—
Pergunto mais uma vez: que mulher?
— Você
não quer saber desses gajos, os explodidos? Então, ligue a sua
máquina que eu vou falar sobre o caso do zambiano. E dos outros,
também. Ligue lá o gravador. Mas, a propósito, não trouxe uma
garrafinha para soltar a palavra?
Mia
Couto, in
O último voo do flamingo
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