quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A última tontura do moço tonto

A vida é um beijo doce em boca amarga.
Depoimento do feiticeiro

Nessa manhã, ao chegarmos à pensão, fomos surpreendidos por um choro. Provinha do quarto de Temporina. Encontramo-la debruçada sobre o lavatório. Parecia ter vomitado. Mas não: ela simplesmente cuidava que cada lágrima não tombasse no chão. Diz-se que lágrima de enfeitiçada faz nascer no solo as mais estranhas coisas. Ficamos em respeito, esperando que as lágrimas escoassem do rosto para a louça branca. Depois, ela passou as mãos pelo rosto e falou:
Mataram meu irmão.
Seu único irmão, o moço tonto que herdara os bens de Hortênsia. A notícia era triste e colocava um novo elemento em toda aquela estória. O moço explodira. Desta vez, porém, era uma explosão real, dessas a que a guerra já antes nos havia habituado. Tão simples quanto cruel: o moço pisara uma mina e as suas pernas se separaram do corpo como um esfarrapado boneco de trapos. Antes de chegar qualquer socorro ele se esvaíra em sangue. O italiano, nervoso, me sacudiu:
Foi essa a explosão que ouvimos ontem em casa de seu pai.
Em súbita decisão, Temporina enrolou uma capulana sobre a saia e proclamou:
Vou sair!
Você não pode, Temporina.
Ainda lhe segurei o braço. Mas não fui capaz de a prender. Ela desapareceu no corredor. Intentei seguir no seu encalço. Em vão: ela já se havia solvido entre as ruas. Voltei ao quarto de Massimo Risi e, de novo, senti aquele presságio que me assaltara aquando do primeiro rebentamento. Na cama do italiano, papéis revolvidos se acumulavam. Massimo, em desespero, revirava as papeladas.
Veja!
Apontava os papéis e as fotos espalhados. Veja, veja, repetia. Apanhei umas folhas ao acaso. Eram papéis em branco.
Não está nada escrito aqui.
Exatamente. E veja as fotos!
Eram papéis de fotografia, mas em branco. Era esse o mistério — aqueles papéis e aquelas imagens não eram virgens. Até ali estavam maculados por letras, por imagens gravadas. Aqueles eram as provas, os materiais que o italiano acumulava para mostrar aos seus chefes.
Isto tudo se apagou?!
Tem a certeza que não são outras folhas?
Massimo se agarrou à cabeça:
Estou ficando maluco, não aguento mais.
Se queixou de uma violenta dor de cabeça. Sugeri que saíssemos a apanhar ares. Mas o italiano não tinha tempo para vagueações. Saíamos, sim, rumo à administração para saber novidades.
No caminho tivemos o extraordinário encontro: padre Muhando, liberto, vagueando pelas ruas aos berros. Ainda o tentamos interpelar, mas ele sacudiu-nos. Vociferava, possesso, contra Deus. Ele ter levado o miúdo tonto, inominado, isso era imperdoável. Que Ele lhe havia de pagar, aqui na terra pois o céu é demasiado tarde. O italiano se admirou: afinal, o padre desistira de estar preso, se demitira do sonho de sair?
Aqui não há verdadeira prisão — expliquei ao italiano.
À entrada do edifício cruzamo-nos com Zeca Andorinho, o mais poderoso feiticeiro da região. O homem saía furtivamente do gabinete do administrador, conforme as ordens que lhe haviam sido dadas. De cada vez que o mundo estremecesse, ele devia passar pela casa dos chefes a tratar o lugar, afastando os maus-olhados.
Zeca Andorinho nos fez sinal para que o seguíssemos e foi andando, rosto escondido. Nós caminhávamos à sua trás até que ele parou no abrigo de uma sombra. Dando de caras conosco, fixou o estrangeiro como se o reconhecesse. Primeiro, falou na sua língua. Propositava, pois ele falava português. Só depois de umas tantas frases se dirigiu em português ao italiano.
Eu já lhe vi.
Deve ter sido por aí — respondeu Massimo Risi.
Não, vi-lhe lá na minha casa.
Impossível, nunca fui lá — e me pedindo confirmação: — Fomos lá alguma vez?
Entre, que essa luz lhe faz ainda piorar a dor da cabeça.
Massimo se perturbou. Como sabia ele de sua enxaqueca?
Entre, aqui no escuro você se sente melhorzito.
Estávamos à entrada de uma das duas casas de Andorinho. Massimo entrou, ficando à espera que o outro dissesse o que havia a fazer. O feiticeiro ordenou que estendesse as pernas e se descalçasse. Desta vez, tive mesmo que traduzir. O feiticeiro deixara de falar português. Passou a usar a língua local, se exprimindo com olhos cerrados:
Há uma mulher que veio ter comigo.
Que mulher?
Ela me pediu que eu fizesse um serviço.
Fiz sinal ao italiano para que não falasse. O feiticeiro já não lhe daria ouvidos. O velho, sempre de pálpebra descida, parecia variar sobre assunto não chamado. Disse que havia feitiços chamados de likaho. Uma diversidade desses feitiços, cada qual feito de diferente animal. Havia likaho de lagarto: os homens inchavam no ventre. Sucedia o mesmo com os ambiciosos — os fulanos eram comidos pela barriga. Havia o likaho de formiga e os enfeitiçados emagreciam até ficarem do tamanho do inseto. O italiano me olhou de soslaio e eu adivinhei o seu receio. Seria aquele o feitiço que o visitara no seu pesadelo? Zeca Andorinho ensaiou uma pausa, como se ponderasse a confissão. Depois, falou:
Agora esse likaho dos soldados é de sapo.
De sapo?
Os tipos engordam até ficarem como o imbondeiro. E depois eles já não cabem no tamanho e se arrebentam.
Fazia esse feitiço por encomenda dos homens de Tizangara. Ciúme dos locais contra os visitantes. Inveja de suas riquezas, ostentadas só para fazer suas esposas tontearem. Carecia-se de castigo contra os olhares compridos dos machos estrangeiros. Sobretudo, se fardados de soldados das Nações Unidas.
Foi este feitiço que usei contra esses gafanhotos.
Massimo já sabia: os gafanhotos eram os capacetes azuis. Afinal, aquele feitiço começava onde todo o homem começa — no namoro. À medida que ia avançando ficava quente e o seu corpo se desconformava. O enfeitiçado inchava, sem dar conta. Crescia como o sapo face a seu próprio medo. Até que, no preciso momento do orgasmo, explodia.
O feiticeiro, por fim, abriu os olhos e revisitou a sala como se acabasse de entrar. Fixou o estrangeiro e lhe sorriu:
Agora, lhe pergunto uma indelicadeza.
Esteja à vontade.
Você namorou com aquela moça-velha do hotel...
Não. Eu só sonhei.
Diga-me, de homem: só sonhou mesmo? Na sua roupa não aconteceu nada?
O italiano ficou calado. No seu rosto se lia a pergunta: então, por que não explodira? Mas ele estava tão medroso que não articulou palavra. O feiticeiro respondeu à pergunta que ele não fizera.
Você recebeu um tratamento.
Tratamento?
O senhor está imunizado. Fui eu que lhe fiz o likaho do cágado. Para lhe proteger.
O senhor me enfeitiçou? E por que razão o fez? — Foi uma mulher que encomendou o serviço de lhe vacinar.
Massimo misturava medos com receios, pavores com temores. Medo do desconhecido, receio de acreditar, pavor das doenças, temores dos feitiços. Ele só repetia:
Uma mulher?
Deixe isso, meu irmão.
Mas que mulher?
Escusa: você nunca irá saber.
Pergunto mais uma vez: que mulher?
Você não quer saber desses gajos, os explodidos? Então, ligue a sua máquina que eu vou falar sobre o caso do zambiano. E dos outros, também. Ligue lá o gravador. Mas, a propósito, não trouxe uma garrafinha para soltar a palavra?
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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