Um
dos signos do Lobo da Estepe era o de ser um noctívago. A manhã era
para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera
nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca
fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas
ideias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao
começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e,
ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo
e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade
de isolamento e de independência. Nunca existira um homem com tão
profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua
juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a
vida, preferia passar fome e andar mal vestido a sacrificar uma
parcela de sua independência. Nunca se vendera por dinheiro ou vida
fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que
aos olhos do mundo representa vantagens e regalias, a fim de
salvaguardar a sua liberdade. Nenhuma ideia lhe era mais odiosa e
terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários,
obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de
audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais
espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel.
Sabia subtrair-se a todas essas coisas, a custo de grandes
sacrifícios e nisso residia sua força e virtude, nisso era
inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firme e
retilíneo. Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu
sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que se dá com todos o que
buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por
ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém
a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma
satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino.
Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o
subserviente pela submissão, o luxuoso pela luxúria. O Lobo da
Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua
meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele,
jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre,
decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança
indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas
em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que
essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em
paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com
ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera
cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento. Havia
chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram
seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença.
O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar
atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e
nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social. Tinham-no agora
deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. Pelo
contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o
apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia
convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele,
ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida.
Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da
qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se,
uma atmosfera contra a qual não podia prevalecer nem a vontade nem o
ardente desejo.
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe
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