O que me inebriou quando voltei a Paris,
em setembro de 1929, foi primeiramente minha liberdade. Com ela
sonhara desde a infância, quando “brincava de gente grande” com
minha irmã. Já disse como ansiava apaixonadamente por ela, quando
estudante. Repentinamente eu a possuía; a cada gesto eu me
maravilhava com minha leveza. Ao abrir os olhos pela manhã,
agitava-me jubilante. Por volta dos meus doze anos, sofrera por não
ter um canto meu em casa. Lendo em Mon Journal a história de
uma colegial inglesa, contemplara com nostalgia o cromo que
representava o quarto dela: uma carteira, um sofá, prateleiras
cheias de livros; entre aquelas paredes de cores vivas, ela
trabalhava, lia, tomava chá, sem testemunhas: como a invejava!
Entrevira pela primeira vez uma existência mais favorecida do que a
minha. E eis que afinal eu também estava em minha casa! Minha avó
livrara-se de todas as poltronas, mesinhas e bibelôs de seu salão.
Eu comprara móveis de bétula que minha irmã ajudara a envernizar
de escuro. Tinha uma mesa, duas cadeiras, um grande baú que servia
também de assento, prateleiras para meus livros, um sofá combinando
com o papel alaranjado das paredes. Da sacada de meu quinto andar, eu
dominava os plátanos da rua Denfert-Rochereau e o Lion de Belfort.
Aquecia-me com um fogareiro vermelho a querosene que cheirava mal, e
eu gostava desse cheiro porque sentia que defendia minha solidão.
Que alegria poder fechar a porta e passar dias ao abrigo de todos os
olhares! Durante muito tempo permaneci indiferente ao aspecto do
ambiente em que vivia; talvez por causa da ilustração de Mon
Journal, preferia os quartos que ofereciam um sofá e
prateleiras, mas eu me acomodava em qualquer canto; bastava-me apenas
poder fechar a porta para me sentir plenamente satisfeita.
Pagava uma pensão a minha avó e ela me
tratava com a mesma discrição com que tratava os outros inquilinos;
ninguém controlava minhas idas e vindas. Podia voltar para casa de
madrugada ou ler a noite inteira, dormir ao meio-dia, ficar
emparedada vinte e quatro horas seguidas, sair para a rua
subitamente. Almoçava um borscht no Dominique, jantava na
Coupole uma xícara de chocolate. Gostava do chocolate, do borscht,
das longas sestas, das noites sem sono, mas apreciava sobretudo meu
capricho. Quase nada o contrariava. Constatei alegremente que “a
seriedade da existência”, com que os adultos me tinham enchido os
ouvidos, na verdade não pesava muito na balança. Passar nos exames
não fora brincadeira; estudara seriamente, tivera medo de levar
bomba, tropeçara em obstáculos e cansara-me. Agora não encontrava
resistências, sentia-me de férias, e para sempre. Alguns alunos
particulares e uma substituição no Liceu Victor-Duruy garantiam-me
o pão de cada dia; essas tarefas não me aborreciam de modo algum,
pois, executando-as, parecia que me entregava a um novo jogo: o jogo
de ser adulta. Diligenciar para arranjar uns tapirs, discutir
com diretoras e pais de alunos, organizar meu orçamento, pedir
emprestado, pagar, calcular, todas essas atividades me divertiam
porque as enfrentava pela primeira vez. Recordo com que alegria
recebi meu primeiro cheque. Tinha a impressão de iludir alguém.
Nunca me interessei muito por roupas;
entretanto, tive prazer em vestir-me de acordo com minha vontade.
Ainda estava de luto pela morte de meu avô e não desejava chocar;
comprei um manto, um gorro e escarpins cinzentos; mandei fazer um
vestido para combinar e outro preto e branco. Reagindo contra os
tecidos de algodão e de lã que me tinham obrigado a usar, escolhi
tecidos sedosos: crepe da china e outro tecido muito feio que estava
na moda naquele inverno, um veludo grosso. Todas as manhãs
pintava-me com extravagância: uma placa vermelha em cada maçã,
muito pó de arroz, batom. Achava absurdo que as pessoas se vestissem
com mais apuro nos domingos do que nos dias de semana; para mim,
todos os dias seriam feriados então eu me enfeitava em todas as
circunstâncias da mesma maneira. Percebia que o crepe da china e o
veludo grosso pareciam algo deslocados nos corredores do liceu, que
meus escarpins estariam menos acalcanhados se não os tivesse
arrastado o dia inteiro sobre os paralelepípedos de Paris, mas eu
não ligava. A toalete era uma dessas coisas que eu não levava a
sério.
Instalava-me, arranjava as coisas,
recebia amigos, saía; mas eram apenas preliminares. Quando Sartre
voltou para Paris, em meados de outubro, uma nova vida começou
realmente.
Simone de Beauvoir, in A força
da idade
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