Parece-me
que a virtude é coisa diferente e mais nobre do que as inclinações
para a bondade que nascem em nós. As almas bem ajustadas por si
mesmas e bem nascidas seguem o mesmo andamento e apresentam nas suas
ações a mesma aparência que as virtuosas. Porém a virtude
significa não sei quê de maior e mais ativo do que, por uma índole
favorecida, deixar-se conduzir docemente e tranquilamente na esteira
da razão. Aquele que com uma doçura e complacência naturais
menosprezasse as ofensas recebidas faria coisa mui bela e digna de
louvor; mas aquele que, espicaçado e ultrajado até o âmago por uma
ofensa, se armasse com as armas da razão contra o furioso apetite de
vingança e após um grande conflito finalmente o dominasse, sem a
menor dúvida seria muito mais. Aquele agiria bem, e este
virtuosamente: uma ação poder-se-ia dizer bondade; a outra,
virtude, pois parece que o nome de virtude pressupõe dificuldade e
oposição, e que ela não pode se exercer sem combate. Talvez seja
por isso que chamamos Deus de bom, forte e liberal, e justo; mas não
O chamamos de virtuoso: Os Seus atos são todos naturais e sem
esforço.
Metelo,
o único de todos os senadores romanos a se ter proposto, pela força
da sua virtude, a resistir à violência de Saturnino, tribuno do
povo em Roma, que queria à viva força fazer passar uma lei injusta
em favor da plebe, e tendo assim incorrido nas penas capitais que
Saturnino estabelecera contra os que a rejeitassem, mantinha com os
que naquela situação extrema o conduziam à praça uma conversa
assim: que agir mal era coisa fácil demais e muito cobarde, e agir
bem quando não houvesse risco era coisa vulgar; mas agir bem quando
houvesse risco era o próprio ofício de um homem de virtude. Essas
palavras de Metelo representam-nos muito claramente o que eu queria
provar: que a virtude rejeita a comodidade como companhia; e que esse
caminho fácil, ameno e em suave declive, por onde se conduzem os
passos bem ajustados de uma boa inclinação natural, não é o da
verdadeira virtude. Ela pede um caminho áspero e espinhoso; quer ter
ou dificuldades externas para combater, como a de Metelo, por meio
das quais o destino se compraz em interromper o vigor da sua marcha,
ou dificuldades internas que lhe são provocadas pelos apetites
desordenados e pelas imperfeições de nossa condição.
Michel
de Montaigne, in
Ensaios
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