quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Da virtude e da bondade

Parece-me que a virtude é coisa diferente e mais nobre do que as inclinações para a bondade que nascem em nós. As almas bem ajustadas por si mesmas e bem nascidas seguem o mesmo andamento e apresentam nas suas ações a mesma aparência que as virtuosas. Porém a virtude significa não sei quê de maior e mais ativo do que, por uma índole favorecida, deixar-se conduzir docemente e tranquilamente na esteira da razão. Aquele que com uma doçura e complacência naturais menosprezasse as ofensas recebidas faria coisa mui bela e digna de louvor; mas aquele que, espicaçado e ultrajado até o âmago por uma ofensa, se armasse com as armas da razão contra o furioso apetite de vingança e após um grande conflito finalmente o dominasse, sem a menor dúvida seria muito mais. Aquele agiria bem, e este virtuosamente: uma ação poder-se-ia dizer bondade; a outra, virtude, pois parece que o nome de virtude pressupõe dificuldade e oposição, e que ela não pode se exercer sem combate. Talvez seja por isso que chamamos Deus de bom, forte e liberal, e justo; mas não O chamamos de virtuoso: Os Seus atos são todos naturais e sem esforço.
Metelo, o único de todos os senadores romanos a se ter proposto, pela força da sua virtude, a resistir à violência de Saturnino, tribuno do povo em Roma, que queria à viva força fazer passar uma lei injusta em favor da plebe, e tendo assim incorrido nas penas capitais que Saturnino estabelecera contra os que a rejeitassem, mantinha com os que naquela situação extrema o conduziam à praça uma conversa assim: que agir mal era coisa fácil demais e muito cobarde, e agir bem quando não houvesse risco era coisa vulgar; mas agir bem quando houvesse risco era o próprio ofício de um homem de virtude. Essas palavras de Metelo representam-nos muito claramente o que eu queria provar: que a virtude rejeita a comodidade como companhia; e que esse caminho fácil, ameno e em suave declive, por onde se conduzem os passos bem ajustados de uma boa inclinação natural, não é o da verdadeira virtude. Ela pede um caminho áspero e espinhoso; quer ter ou dificuldades externas para combater, como a de Metelo, por meio das quais o destino se compraz em interromper o vigor da sua marcha, ou dificuldades internas que lhe são provocadas pelos apetites desordenados e pelas imperfeições de nossa condição.
Michel de Montaigne, in Ensaios

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