Essa
qualidade de leitura, que permite ao leitor possuir um texto não
apenas lendo atentamente as palavras, mas tomando-as parte de si
mesmo, nem sempre foi considerada uma bênção. Há 23 séculos, nas
proximidades das muralhas de Atenas, à sombra de um plátano junto a
margem de um rio, um jovem de quem sabemos pouco mais que o nome,
Fedro, lia para Sócrates um discurso de um certo Lísias, a quem
Fedro admirava apaixonadamente. O jovem ouvira o discurso (cumprindo
o dever de amante) várias vezes e no final obtivera uma versão
escrita que estudou muito, até sabê-lo de cor.
Então,
ansioso por compartilhar sua descoberta (como os leitores adoram
fazer), buscara um público em Sócrates. O filósofo, adivinhando
que Fedro trazia o texto do discurso escondido sob o manto, pediu-lhe
que lesse o original, em vez de recitá-lo. “Não vou deixar que
exercite sua oratória comigo, quando o próprio Lísias está aqui
presente”, disse Sócrates ao jovem entusiasmado.
O
diálogo antigo tratava sobretudo da natureza do amor, mas a conversa
foi mudando de rumo alegremente e, mais para o fim, o tema passou a
ser a arte das letras. Um dia, contou Sócrates a Pedro, o deus Thot
do Egito, inventor dos dados, do jogo de damas, dos números, da
geometria, da astronomia e da escrita, visitou o rei do Egito e
ofereceu-lhe essas invenções para que as passasse ao seu povo, O
rei discutiu os méritos e as desvantagens de cada um dos presentes
do deus, até que Thot chegou à arte da escrita: “Eis aqui um ramo
do conhecimento que irá melhorar a memória do povo; minha
descoberta proporciona uma receita para a memória e para a
sabedoria”. Mas o rei não ficou impressionado: “Se os homens
aprenderem isso, o olvido se implantará em suas almas; eles deixarão
de exercitar a memória, pois confiarão no que está escrito, e
chamarão as coisas à lembrança não de dentro de si mesmos, mas
por meio de marcas externas. O que descobristes não é uma receita
para a memória, mas um lembrete. E não é sabedoria verdadeira o
que ofereceis a vossos discípulos, mas apenas sua aparência, pois,
ao lhes contar muitas coisas sem lhes ensinar nada, fareis com que
pareçam saber muito, embora, em boa parte, não saibam nada. E
enquanto homens cheios não de sabedoria, mas do conceito de
sabedoria, eles serão um fardo para seus companheiros”. Um leitor,
Sócrates advertia a Fedro, “precisa ser singularmente simplório
para acreditar que as palavras escritas podem fazer mais do que
recordar a alguém o que ele já sabe”.
Fedro,
convencido pelo raciocínio do ancião, concordou. E Sócrates
prosseguiu: “Sabes, Fedro, essa é a coisa esquisita em relação à
escrita, aquilo que a torna realmente análoga à pintura. O trabalho
do pintor ergue-se diante de nós como se as pinturas estivessem
vivas, mas, se alguém as questiona, elas mantêm um silêncio
majestoso.
Acontece
a mesma coisa com as palavras escritas: elas parecem falar contigo
como se fossem inteligentes, mas, se lhes perguntas qualquer coisa
sobre o que estão dizendo, por desejo de saber mais, elas ficam
repetindo a mesma coisa sem parar”. Para Sócrates, o texto lido
não passava de palavras, nas quais signo e significado
sobrepunham-se com precisão desconcertante.
Interpretação,
exegese, glosa, comentário, associação, refutação, sentido
alegórico e simbólico, tudo advinha não do próprio texto, mas do
leitor. O texto, como um retrato pintado, dizia somente “a lua de
Atenas”; era o leitor quem lhe atribuía uma face de marfim cheia,
um céu escuro profundo, uma paisagem de ruínas antigas ao longo das
quais Sócrates outrora caminhava.
Por
volta do ano 1250, no prefácio ao Bestiaire d'amour, o
chanceler da catedral de Amiens, Richard de Fournival, discordou da
posição de Sócrates e propôs que, como toda a humanidade deseja
conhecer e tem pouco tempo de vida, ela deve se basear no
conhecimento reunido por outros para aumentar a riqueza de seus
próprios conhecimentos. Para tanto; Deus deu à alma humana o dom da
memória, ao qual temos acesso por meio dos sentidos da visão e da
audição. De Fourníval aprofundou a noção de Sócrates. O caminho
para a visão, disse ele, consistia de peintures, imagens; o
caminho para a audição, de paroles, palavras. O mérito
delas não estava apenas em expor uma imagem ou texto sem nenhum
progresso ou variação, mas em recriar no espaço e no tempo do
leitor aquilo que fora concebido e expresso em imagens e palavras em
outra época e sob céus diferentes. Argumentava De Fournival:
“Quando alguém vê uma história pintada, seja de Tróia ou outra
coisa, veem-se aqueles nobres feitos que foram realizados no passado
exatamente como se ainda estivessem presentes. E o mesmo acontece ao
se ouvir um texto, pois, quando ouvimos uma história lida em voz
alta, escutando os eventos, vemo-los no presente. E, quando lês,
essa escrita com peinture e parole irá tornar-me
presente em tua memória, mesmo quando não estou fisicamente diante
de ti”. Ler, segundo De Fournival, enriquecia o presente e
atualizava o passado; a memória prolongava essas qualidades no
futuro. Para ele, o livro, não o leitor, preservava e transmitia a
memória.
O
texto escrito, no tempo de Sócrates, não era um instrumento comum.
Embora existissem livros em número considerável na Atenas do século
v a.C. e um comércio incipiente de livros, a prática da leitura
privada só se estabeleceu plenamente um século depois, no tempo de
Aristóteles - um dos primeiros leitores a reunir uma coleção
importante de manuscritos para uso próprio. Era por meio da conversa
que as pessoas aprendiam e passavam adiante conhecimentos, e Sócrates
pertence a uma linhagem de mestres orais que inclui Moisés, Buda e
Jesus Cristo, o qual uma única vez, dizem-nos, escreveu algumas
palavras na areia apagando-as em seguida. Para Sócrates, os livros
eram auxílios à memória e ao conhecimento, mas os verdadeiros
eruditos não deveriam precisar deles. Poucos anos depois, seus
discípulos Platão e Xenofonte lembraram em um livro essa opinião
depreciativa sobre livros, e a memória deles de sua memória foi
assim preservada para nós, seus futuros leitores.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
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